O Boletim Lua Nova divulga o Manifesto contra o Desmonte das Políticas de Combate à Tortura no Brasil, publicado em evento realizado pelo Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo em parceria com o CEDEC. O evento, na íntegra, pode ser assistido aqui.
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“Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”
Artigo 5° da Declaração Universal dos Direitos Humanos
“Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”
Artigo 5, inciso III da Constituição Federal de 1988
No Brasil, desde a Constituição Federal (1988) e densificando a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), a prática da tortura é absolutamente proibida. Sucessivamente, governos posteriores à promulgação da atual Carta Magna confirmaram a vedação total da tortura, ratificando tratados internacionais sobre o tema.
Ainda no alvorecer da Constituição Cidadã, em 9 de dezembro de 1989, o presidente José Sarney promulgou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, elaborada no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Dois anos depois, em 1991, o então presidente Fernando Collor promulgou a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 1984.
Em 1997, Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.455/1997, definido os crimes de tortura no Brasil. Em 2001, após apreciação do Relatório apresentado pelo Estado brasileiro ao Comitê contra a Tortura da ONU, a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou Campanha Permanente Contra a Tortura, levantando dados sobre sua prática, capacitando operadores jurídicos, fortalecendo corregedorias de polícias, fomentando atuação judicial garantista.
Em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promulgou mais um dispositivo desenvolvido nas Nações Unidas: o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Em 2013, através da Lei 12.847/2013, foi instituído o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criados o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Ainda durante esse ano, a presidenta Dilma Roussef, pelo Decreto 8.154/2013, regulamentou o funcionamento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a composição e o funcionamento do Comitê Nacional e dispôs sobre o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Isso tudo mudou a partir de 2019. Já em junho, Jair Bolsonaro assinou o Decreto 9.831/2019 exonerando todos os 08 peritos(as) do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura que se encontravam em efetivo gozo do mandato. De uma equipe de 11 prevista em Lei, eles(as) passaram a ter suas funções consideradas trabalho voluntário, sem remuneração e sem apoio logístico administrativo, financeiro e institucional para a realização de suas atividades.
Preocupados com os efeitos dessa ação, peritos do Subcomitê das Nações Unidas sobre Prevenção da Tortura (SPT) visitaram o Brasil em fevereiro de 2022. Sensível à relevância do tema, evidenciada pela grande mobilização de diversos segmentos da sociedade, em especial ativistas, movimentos e organizações de direitos humanos, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF e anulou o Decreto.
Ao golpear e desativar o principal mecanismo de combate à tortura, de previsão internacional, o governo do Presidente Jair Bolsonaro atua flagrantemente contra as normas assumidas pelo Brasil, assim como descumpre o Decreto 8.154/2013, que regulamentou o funcionamento e a existência de um sistema nacional voltado ao combate e prevenção da prática.
Nos últimos 3 anos e 8 meses, o governo também paralisou a análise dos pedidos de reparação de familiares de mortos e desaparecidos políticos. A Comissão de Anistia, principal órgão de recepção, análise e encaminhamento dos casos, foi aparelhada após a mudança na composição de seus membros. Ainda em 2022, o órgão sofreu ameaça de extinção sem que seus trabalhos tenham sido finalizados.
Indiferente às vítimas passadas, presentes e futuras, Bolsonaro ainda se posiciona como apoiador e incitador dos crimes de tortura e um perigosíssimo insuflador da prática em âmbito federal. Durante seu governo, os depoimentos de tortura de presos a juízes em audiências de custódia aumentaram vertiginosamente e devem atingir recorde até o final do mandato. Pelo menos 44,2 mil denúncias foram colhidas até agora pelo Conselho Nacional de Justiça.
Nós, abaixo assinados, repudiamos veementemente todas as incitações públicas de apoio à tortura, de escárnio para com as vítimas e sobreviventes, da indiferença manifesta ao sofrimento dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e do incentivo direto e indireto à prática nas prisões e centros de detenção. A gestão do Presidente Jair Bolsonaro, por sua idolatria efusiva e cega aos torturadores do passado, deve ser responsabilizado.
Temos certeza de que um Brasil sem tortura depende, hoje e no futuro, de brasileiros e brasileiros que levantem suas vozes e as façam ecoar afirmando, de modo peremptório, suas escolhas em defesa da vida, da liberdade e da dignidade da pessoa humana só possíveis numa democracia.
Abaixo subscrevemo-nos:
Andrei Koerner
Professor doutor da Universidade Estadual de Campinas, colaborador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, – Lua Nova. Revista de Cultura e Política, – Dados (Rio de Janeiro) e – Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vice-coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA.
Amelinha Teles
Coordenadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares e membra da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Ary Plonski
Professor Titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (Departamento de Administração) e Professor Associado da Escola Politécnica (Departamento de Engenharia de Produção) da USP. É Diretor do Instituto de Estudos Avançados, Coordenador Científico do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica e Vice-coordenador do Centro de Inovação da USP.
Belisário Santos Junior
Membro da Comissão Paulo Evaristo Arns, preside a Comissão de Direitos Humanos do IASP e membro do comitê executivo (ExCo) da Comissão Internacional de Juristas de Genebra
Bruno Fedri
Psicólogo. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Foi coordenador geral do Centro de Referência e Apoio à Vítima – CRAVI – da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, onde também atuou como psicólogo e coordenador técnico entre os anos de 2008 e 2021.
Carla Vreche
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tem como tema de pesquisa o processo de construção da Convenção Contra a Tortura da ONU. É pesquisadora associada no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e membra do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA.
Gabrielle de Abreu
Historiadora e coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog.
Janaina Teles
Professora da universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e do curso de especialização em Direitos Humanos e Lutas Sociais do CAAF/UNIFESP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Secretaria geral do Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado (IEVE) e membra da Comissão de familiares Mortos e Desaparecidos Políticos
José Ribamar de Araújo e Silva
Foi ouvidor de Segurança e do Sistema Penitenciário do Estado do maranhão, onde ajudou na composição e implantação da Ouvidoria e do Comitê Estadual de Prevenção à Tortura. Foi perito do Mecanismo nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Jamil Chade
Eleito um dos 40 jornalistas mais admirados no Brasil e melhor correspondente brasileiro no exterior. É membro de uma rede de especialistas no combate à corrupção organizada pela Transparência Internacional.
Luciano Mariz Maia
Professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Ex-Vice Procurador Geral da República do Brasil
Ludmila Murta
É doutora em Direitos Humanos pela USP, professora efetiva no Instituto Federal Minas Gerais – IFMG Campus Sabará e membra do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA.
Paulo Endo
É psicanalista, professor livre-docente do IPUSP. Coordena o Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do IEA. É um dos organizadores do Coletivo Psicanalistas pela Democracia. Assessor de los Territorios Clinicos de la Memória (Argentina) e membro da Memory Studies Association Global e America Latina(MSA). Foi membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e do Grupo Multidisciplinar de Peritos Independentes de Combate à Tortura da SEDH.
Paulo Vannuchi
Membro da Comissão Paulo Evaristo Arns. Foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA). Foi um dos responsáveis pelo dossiê entregue à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre a tortura praticada pela ditadura militar. Sob a coordenação de Dom Paulo Evaristo Arns, foi membro da equipe do Projeto Brasil: Nunca Mais.
Rogério Sotilli
Atualmente é diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi Secretário Especial de Direitos Humanos do Governo Federal, Secretário Municipal de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo, Secretário Executivo da Secretaria Geral da Presidência e Secretário-Executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É Mestre em História pela PUC-SP.
Wilder Tayler
Presidente do Conselho de Administração da Instituição Nacional de Direitos Humanos e da Ouvidoria da República do Uruguay. Foi secretario geral da Comissão Internacional de Juristas (Genebra). Foi consultor Jurídico da Anistia Internacional onde atuou como Diretor do programa das Américas. Foi vice-presidente do Subcomitê das nações Unidas para a Prevenção da Tortura (2007-2014) e Diretor Jurídico da Human Rights Watch (1997-2007).
Referência Imagética:
Marble bench “Torture is Barbaric” – artwork by Jenny Holzer, 1987 (Créditos: Marcus Ganahl, via Unsplash). Disponível em <https://unsplash.com/photos/KN-4v2ESjrY>. Acesso em 27 set 2022.