Lucas Herzog[1]
1. Introdução[2]
Autor central na elaboração teórica dos princípios do liberalismo político, ou defensor da imposição de uma ordem legal baseada no chicote aos cidadãos de segunda classe? Articulador da ideia da legitimidade da autoridade política como produto do consenso, ou um crítico da fragilidade do instrumental calculista tipicamente liberal? Essas são algumas das leituras que intérpretes contemporâneos divulgaram a respeito da obra de John Locke, teórico político cujos escritos acompanharam o desenrolar do século XVII. Os diferentes diagnósticos a respeito de seus textos refletem as distintas perspectivas adotadas na compreensão dos autores clássicos. Estas variam desde interpretações anacrônicas que buscam extrair o sentido das ideias passadas a partir de expectativas ligadas ao tempo presente, até ensaios que se orientam em perspectiva oposta, ancorando o olhar sobre esses autores a partir de seu contexto histórico – tanto político quanto intelectual.
O presente trabalho, inclinado à segunda orientação metodológica descrita, não pretende equacionar a controvérsia ao redor da classificação de John Locke como um autor liberal ou antiliberal. Como argumenta Ostrensky (2011), um esforço na direção que aqui me proponho não poderia se furtar de uma análise ampliada da produção do autor, ainda que muitos intérpretes limitem o escopo de seus estudos a trechos selecionados de poucas obras. Considerando o risco de cair na armadilha da “mitologia da coerência” (Skinner, 1988), evitarei afirmar um rótulo classificativo, buscando, alternativamente, analisar a articulação entre conceitos que julgo relevantes na obra de Locke, sobretudo em seu trabalho mais conhecido, o Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de 1689.
Os conceitos escolhidos para este estudo – propriedade e autoridade – são justificados por entender que a relação entre eles é articulada de maneira distinta entre autores defensores de um Locke liberal e autores críticos dessa primeira vertente. Na impossibilidade de tratar desse debate de forma ampliada, buscarei argumentos que mobilizem essa relação de diferentes formas, aproveitando, também, uma leitura direta do Capítulo V – Da Propriedade – do Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Como será visto, a não-intervenção do Estado sobre a propriedade particular é um dos pilares que sustentam a afirmação de que John Locke seria um precursor na defesa de um governo limitado, mas também opera para a construção de um ideário em que apenas os homens possuidores seriam os governantes legítimos de uma sociedade (Stanton, 2018).
Considerando o objetivo enunciado, buscarei identificar os autores aos quais o filósofo inglês se contrapunha, no contexto histórico em que essas ideias foram divulgadas. Para tanto, uma referência central será A discourse on property – John Locke and his Adversaries, de James Tully (1983). Outros intérpretes dos textos do filósofo inglês serão aproveitados, alguns dos quais preocupados diretamente com a inserção de Locke dentro de uma tradição liberal do pensamento político.
2. Contexto político e intelectual da obra[3]
Os Dois Tratados sobre o Governo Civil, de John Locke, são frutos de um debate teórico identificável levando em conta o contexto ao qual o autor estava inserido. Para Stanton (2018), a motivação da obra passa pela contraposição teórica ao governo arbitrário e absolutista, que diversos autores contemporâneos a Locke defendiam. Para uma investida dessa natureza, não poderia ser outro seu adversário principal senão Robert Filmer, mentor teórico do patriarcalismo desse tempo, cujos escritos mais notórios foram aqueles que defendiam o direito divino dos reis (Arneson, 2015).
Historicamente, é provável que Locke tenha tido contato com o Patriarcha, de Filmer, ao redor do ano 1680, em meio à “Crise da Exclusão” (1679-1681), quando os dois principais grupos políticos britânicos – Whigs e Tories – se contrapuseram em relação à ascensão ao trono de Jaime, Duque de York, por sua conversão ao catolicismo. O receio whig era de que o reinado de Jaime terminasse em uma monarquia católica arbitrária, suprimindo os controles sobre sua conduta (Dunn, 1969). Os textos de Filmer eram vistos como uma tentativa de legitimação da posição Tory e parecem ter motivado Locke – que já trabalhava junto com outros autores em textos contrários às ideias de Filmer – a publicar sua própria doutrina política oferecendo uma alternativa à defesa do absolutismo (cf. Tully, 1983, p. 53).
Apesar da proximidade com os whigs, Locke recusa o apelo tradicional do grupo à força prescritiva da história e opta por elaborar seus conceitos à luz da teoria do direito natural. Não se trata de um acaso, considerando a crítica explícita de Filmer sobre a inconsistência lógica e confusão que o direito natural legava à teoria política, sobretudo na explicação das origens jusnaturalistas da propriedade oferecida por Grócio. Partindo da audiência que almejava atingir, Locke precisava fundamentar sua teoria sobre o governo a partir de uma ideia de propriedade coerente com os princípios do direito natural de maneira convincente, evitando cair na armadilha crítica de Filmer[4].
A opção pelo vocabulário jusnaturalista trazia implicações adicionais para Locke. Defendê-lo significaria, também, ressignificar seu uso da maneira como haviam feito Grócio e Pufendorf. Para esses dois autores, o direito natural era consistente com a construção de teorias racionalistas do absolutismo. Grócio buscava aplicar sua concepção de direito natural ao ser humano racional, entendido como aquele interessado em sua própria preservação (Stanton, 2018, p. 7). Esse imperativo era compatível com o direito de se defender à força quando espoliado e a posse de bens era consistente e justa com o direito natural da preservação individual[5]. Na passagem do estado natural para a sociedade política – dada pela necessidade de fracionar o mundo em termos territoriais e materiais – a instituição da propriedade privada ocorreria por meio de um acordo que garantisse ao proprietário o direito de excluir os outros, independentemente do uso que daria à terra. A feição convencional da propriedade retirava dos súditos a possibilidade de apelar a um princípio natural de justiça para avaliar uma dada distribuição de bens: uma vez feito o acordo, a distribuição da propriedade era justa por princípio.
Da mesma forma, Pufendorf baseava sua teoria sobre os direitos em um conceito “daquilo que era de cada um” (suum), mas rejeitava o critério defendido por Grócio, segundo o qual o primeiro que pegasse determinado bem poderia reivindicá-lo como seu. Para Pufendorf, a noção de que algo pertenceria a alguém demandava um acordo anterior, não havendo critério natural capaz de criá-la. Se considerado o imperativo da autopreservação no estado de natureza, mesmo a adoção de um critério como do “primeiro pegador” deveria conter uma exceção para dar conta daqueles em extrema necessidade, o que reforçaria o caráter pactuado da delimitação da propriedade privada.
Mesmo sem concordarem sobre os critérios – naturais ou convencionais – que delimitam o que é de cada um, Grócio e Pufendorf partem de concepções jusnaturalistas para montarem o argumento de que a instituição da propriedade privada é garantida pelo pacto. Como argumenta Tully (1983, p. 89), “É precisamente porque a propriedade é convencional para Grócio e Pufendorf que o status quo é validado”. O enfrentamento do pensamento absolutista não poderia se furtar a rebater uma visão sobre a propriedade que fechava o caminho para a resistência. É nesse contexto intelectual que John Locke tratará da propriedade no Capítulo V do Segundo Tratado sobre o Governo Civil.
3. Propriedade natural e propriedade acordada no Capítulo V
A terminologia jusnaturalista da teoria política de Locke fica claramente marcada ao longo do Capítulo V. Fundamentando a propriedade a partir da razão natural e do direito à preservação humana, Locke declara que seu objetivo passa pela demonstração da “maneira [como] os homens podem vir a ter uma propriedade em diversas partes daquilo que Deus deu em comum à humanidade, e isso sem nenhum pacto expresso por parte de todos os membros da comunidade” (Locke, 1998, p. 406). Ou seja, partindo de um estado natural em que ninguém tem domínio privado sobre as coisas, deve ser possível justificar a apropriação a partir dos ditames de uma razão natural.
O primeiro passo na construção desse argumento consiste na afirmação de que todo homem é detentor de si próprio, ou seja, proprietário de si[6], retirando de qualquer outro o direito sobre sua pessoa – consequentemente, todo trabalho de um corpo e suas obras são propriedade dessa pessoa. Em outras palavras, o que faz algo ser de alguém é o trabalho empregado pelo homem sobre um objeto em estado natural. O trabalho, portanto, é o acréscimo de algo de si sobre um objeto antes comum, mas que agora só lhe pertence, retirando dos outros homens o direito sobre ele.
O mero ato de colher um fruto seria suficiente para constituir propriedade sobre o objeto e independeria do consentimento de outros. Mesmo sem a necessidade de uma autorização, existem condições para o reconhecimento desse direito de propriedade, como o não-desperdício, refletindo a preocupação em justificar a propriedade pelas vantagens que o homem poderia retirar dela: “Nada foi feito por Deus para que o homem estrague ou destrua” (Locke, 1998, p. 412). Isto é, o mundo concedido por Deus não foi entregue incondicionalmente, mas para que o homem trabalhe e melhore-o a partir de seu esforço – só assim a propriedade estaria estabelecida, impedindo que outro a reivindicasse para si.
Arneson (2015) chama atenção para as regras morais que regulam a aquisição da propriedade em Locke, sobretudo o imperativo do “melhoramento” do mundo e a preservação de nosso gênero. Isso levanta uma dificuldade dentro da teoria de Locke, ensejando questões que não são tratadas diretamente pelo autor inglês: um proprietário perde sua propriedade caso deixe de usar a terra de maneira produtiva? É possível pensar em um critério que separe terras produtivas de terras improdutivas? Ou, ainda, se a fundamentação moral passa pela preservação da humanidade, como um todo, não faria sentido desapropriar uma pessoa se houver alguém apto a empregar meios mais produtivos para cultivar aquele pedaço de terra? Essas questões não são atacadas por Locke porque sua teoria sobre a propriedade no estado natural ancora-se na premissa da abundância material, relegando a outro plano a possibilidade de conflito em torno de uma mesma fração de terra: “Ninguém poderia julgar-se prejudicado pelo fato de outro homem beber, mesmo que tenha tomado um bom gole, se houvesse todo um rio da mesma água sobrando para saciar sua sede” (Locke, 1998, p. 414).
O que romperia com a ideia de propriedade natural e com o equilíbrio não-conflituoso garantido pela abundância seria a criação do dinheiro e o acordo que permitiu o acúmulo de posses para além das capacidades gerenciais de uma única pessoa:
[…] uma coisa ouso afirmar: que a mesma regra da propriedade segundo a qual cada homem deve ter tanto quanto possa usar estaria ainda em vigor no mundo, sem prejuízo para ninguém, conquanto há terra bastante ao mundo para o dobro dos habitantes, se a invenção do dinheiro e o acordo tácito dos homens no sentido de lhe acordar um valor não houvesse introduzido (por consenso) posses maiores e um direito a estas (Locke, 1998, p. 416).
Com o aumento populacional e a possibilidade de acúmulo de metais, a condição de abundância seria finalmente substituída pela de escassez, dando origem à propriedade criada via consentimento. É a partir da convenção que a desigualdade passa a se manifestar sistematicamente, com os homens aceitando que uma parcela da população seja proprietária de uma fração maior de terras, recebendo ouro e prata em troca dos excessos. Se, em princípio, o trabalho criava título de propriedade sobre as posses comuns, o surgimento do dinheiro e da escassez possibilitou a conformação de uma propriedade acordada, em que “as leis regulamentam o direito de propriedade, e a posse da terra é determinada por legislações positivas” (Locke, 1998, p. 428).
Ainda que a teoria da propriedade natural de Locke não seja historicamente construída – não estando sujeita, então, à sua verificação empírica – fica evidente que a não-escassez é uma condição fundamental para a justificação da propriedade privada e que essa condição apresenta dificuldades estruturais. Arneson (2015) ressalta que, uma vez reivindicadas as terras valiosas, um problema de ordem moral aparece: a legitimidade das gerações antecedentes monopolizarem a apropriação das terras comuns, impedindo as gerações futuras de disporem dessas mesmas oportunidades. Na mesma linha, ao argumentar que o valor atribuído ao dinheiro é puramente convencional, necessariamente devem fazer parte do acordo todas as consequências nefastas decorrentes de sua adoção, como a possibilidade de acumulação e desigualdade de posses. Por outros meios, voltamos ao problema de justificar uma dada distribuição com base no consenso[7].
Independente dessas e outras dificuldades que a teoria da propriedade de Locke possa enfrentar, parece claro que seus esforços principais são direcionados a dialogar com seus adversários teóricos, sobretudo Filmer e sua defesa do direito paterno natural e ilimitado sobre a propriedade privada. Para desmontar o “maravilhoso sistema” filmeriano, Locke ataca diretamente suas premissas teológicas, arquitetando uma teoria da propriedade natural que difere daquela de Filmer em diversos pontos. Entre eles, cabe destacar que, enquanto Filmer via a propriedade natural como um direito conferido a Adão, Locke estendia esse direito a todos os homens. Ademais, a propriedade em Locke possui um fim específico, moral e teologicamente justificado, enquanto para Filmer esse fim corresponderia à simples vontade incondicionada do proprietário (Tully, 1983). Essa relação entre justificação e finalidade da propriedade parece ser um ponto de tensionamento entre intérpretes do pensamento de John Locke, como tentarei demonstrar adiante.
4. Propriedade e autoridade: as diferentes interpretações de John Locke
Um autor apresentado por Stanton (2018) como representante da visão de um Locke liberal é o jurista austríaco Hans Kelsen. De fato, para este último, Locke teria moldado a ideologia da democracia moderna pela articulação entre liberdade e propriedade, unidas em elo inseparável. Kelsen não é o primeiro teórico a atribuir a Locke a paternidade de uma chamada “ideologia moderna”. Harold Laski, por exemplo, chega a afirmar que o inglês seria o “profeta mais representativo” da era moderna, encontrando nele ideias fundadoras de uma crença capitalista, como a visão de que os proprietários seriam os legítimos governantes da sociedade (Laski, 1936).
Em Kelsen, a defesa da doutrina de Locke como precursora do liberalismo é construída em quatro tempos, sendo o primeiro deles a constatação de que o objetivo central de Locke em suas obras – sem delimitar alguma obra, especificamente – seria deduzir uma justificação da propriedade particular de uma fonte alternativa às escrituras, afirmando um objetivo secularizante em toda obra do filósofo inglês. Porém, uma vez recusada a justificação divina, a que recorrer? Para o austríaco, Locke teria sido um precursor em justificar a propriedade com base apenas na necessidade de subsistência (autopreservação) dos indivíduos. Não surpreende, assim, a associação que Kelsen faz entre propriedade de si e liberdade pessoal, enfatizando que o trabalho seria uma função dessa liberdade, de modo que a propriedade de si é, também, a propriedade de seu próprio trabalho. Como a propriedade particular é resultante dessa junção da necessidade de subsistência com a liberdade pessoal – mediada pelo trabalho – a relação entre propriedade e liberdade é direta. Com isso, o austríaco constrói uma fundamentação do governo civil consistente com a finalidade de preservar a propriedade, de modo que governo algum poderia abolir esse direito.
Em relação às premissas apresentadas, parece haver uma inconsistência entre atribuir a Locke esse esforço secularizante e os argumentos apresentados no Capítulo V do Segundo Tratado. Toda fundamentação moral sobre a aquisição da propriedade em estado natural – longamente demonstrada no capítulo – passa por apelos a propósitos divinos, como demonstra Arneson (2015), articulando uma relação entre a justificação moral e a finalidade do uso da terra pelos homens. A própria noção de autopreservação não é inconsequente, mas constitui verdadeiramente um dever, pois deriva de um comando divino, pelo qual os homens são os responsáveis máximos pela preservação do gênero humano. Tully (1983) é ainda mais direto ao afirmar que a construção da noção de propriedade apresentada por Locke é idêntica à encontrada nas escrituras.
A identificação da propriedade de si como liberdade pessoal, em Kelsen, toca diretamente na relação entre propriedade e autoridade e traz implicações adicionais sobre a teoria lockiana. É certo que Locke formula uma concepção de propriedade de si no Capítulo V, mas sua fundamentação da propriedade privada natural – e o equilíbrio não-conflituoso de seu estado de natureza – depende de uma série de outras condições, como a abundância e a impossibilidade de acúmulo de bens imperecíveis, que são ignoradas na formulação liberal sobre a passagem desse estado natural para uma sociedade política, em que a propriedade privada parte do pactuado. Ao simplesmente equivaler propriedade de si com liberdade e derivar uma finalidade de governo dessa identidade, perde-se da análise a dimensão distributiva desse pacto fundador, elemento que parece ambíguo na própria formulação original de Locke e que lança questões sobre a radicalidade da posição do autor.
Em outras palavras, a construção do argumento de Kelsen – e, me parece, de parte significativa dos intérpretes liberais da teoria política de Locke – perde uma dimensão substancial da relação entre propriedade e autoridade: em um tempo em que o critério de cidadania era essencialmente censitário, a distribuição da propriedade fundiária molda toda uma estrutura de poder – conforme bem pontua Ostrensky (2011). Há inevitável tensionamento entre propriedade de si e propriedade fundiária: se a propriedade de si – ou a liberdade, se quiser – é propriedade de todo homem e não pode ser tomada de ninguém, não poderia ela ser o fundamento da cidadania?[8] Tanto mais considerando que a propriedade fundiária é fruto de acordo, regulada pela legislação positiva de cada país, e fundamentalmente desigual, pelas razões já estabelecidas por Locke[9]. De certa forma, embora Locke reconheça no direito natural o fundamento da propriedade, legitima a desigualdade e oferece uma convidativa teoria da autoridade política que empodera o cidadão – proprietário – a resistir ao governo usurpador.
A proteção advinda do direito natural da propriedade constituída foi um importante argumento construído por Locke que atacou diretamente a ideia de um soberano absoluto, como defendiam Filmer, Grócio e Pufendorf. Sua justificação da propriedade natural com base na finalidade divina da autopreservação também superava diretamente a defesa de uma propriedade incondicionada, como a de Filmer. Além de derrubar seus oponentes intelectuais, sua teoria sobre a propriedade oferecia implicações práticas imediatas, como a invalidade da taxação sem consentimento, objeto de forte controvérsia na década de 1680 na Inglaterra. Mais do que simplesmente formular uma justificação contra o confisco abusivo da coroa inglesa, Locke elaborou uma teoria da resistência, empoderando cada um dos cidadãos proprietários para o confronto contra seu monarca (Tully, 1983, p. 172).
A radicalidade do argumento de Locke, contudo, depende de qual propriedade elegemos para definir como elemento constituinte da estrutura de poder de uma sociedade. Para Tully (1983), a propriedade em Locke significa qualquer forma de direito e por isso inclui todas as pessoas. Por outro lado, como sugere Ostrensky (2011), Locke não abraça essa radicalidade e chancela, inclusive por meio do direito natural, as desigualdades de posses, cujos desdobramentos para o reconhecimento de cidadania em seu tempo são mais do que conhecidos.
Se não é possível em um esforço tão direcionado quanto o aqui apresentado tecer considerações gerais sobre o debate clássico sobre a existência ou não de um Locke liberal – esforço que, como já pontuamos, demandaria um estudo muito mais completo da obra do autor – esperamos ter conseguido ao menos explorar como a relação entre autoridade e propriedade é um desdobramento importante e necessário do estudo do Capítulo V do Segundo Tratado. Mesmo assim, tendo em vista o contexto político e intelectual ao qual o autor estava inserido, parece possível descartar algumas leituras apressadas de sua teoria sobre a propriedade, que encontram secularização onde predomina a justificação moral teológica da propriedade particular. É certo que insistir nessa secularização torna o autor mais atraente aos olhares contemporâneos, inseridos em debates de outros tempos, extrapolando o diálogo que o filósofo inglês estabeleceu com seus adversários intelectuais. Contudo, o risco do anacronismo analítico supera os eventuais benefícios que essa leitura possa oferecer, sendo preferível evitar atribuir ao autor clássico a articulação de ideias que ainda estavam distantes de florescer naquele mundo.
* Este texto não reflete necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ARNESON, R. Locke and the Liberal Tradition. In: STUART, M. A Companion to Locke. [S.l.]: [s.n.], 2015.
DUNN, J. The Political Thought of John Locke. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
KELLY, P. Locke and Filmer: was Laslett so wrong after all? The Locke Newsletter, 1977. 77-86.
LASKI, H. The rise of European Liberalism. [S.l.]: [s.n.], 1936.
LOCKE, J. Dois Tratados sobre o governo. [S.l.]: Martins Fontes, 1998.
OSTRENSKY, E. Um Outro Locke. 2011. Disponível em: <https://www.academia.edu/12169382/Um_outro_Locke_E_O_s_conflicted_copy_2011_06_01_>.
SKINNER, Q. Meaning and understanding in the history of ideas, in: TULLY, J. Meaning and Context, Cambridge, Polity Press, 1988.
STANTON, T. John Locke and the fable of liberalism. The Historical Journal, Cambridge, 2018. 1-26.
TULLY, J. A discourse on property – John Locke and his adversaries. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
[1] Aluno de mestrado do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP. Contato: lucas.herzog@usp.br
[2] Agradeço aos comentários da Profa. Eunice Ostrensky, que muito me auxiliaram na revisão deste trabalho. Os erros e omissões restantes são de inteira responsabilidade do autor.
[3] Esta seção, ainda que aproveitando passagens de outras fontes secundárias, seguirá de perto a estrutura do Capítulo IV – The Background to chapter five of the Second Tratise – de Tully (1983).
[4] Uma breve descrição desse ambiente político e intelectual já fornece evidências para demonstrar que um objetivo central de Locke passava por responder a uma dada teoria sobre o governo, articulando, inclusive, sua conhecida teoria da resistência, como já foi bem identificado por Kelly (1977). A formulação mais clara da relação entre propriedade e autoridade, portanto, deve ser lida à luz desse objetivo, bem como seu apelo ao direito natural como fundamentação de sua teoria. Como afirma Tully (1983, p. 55): “[…] a presença e o conhecimento disseminado da crítica de Filmer fazem com que uma consistente teoria jusnaturalista sobre a propriedade fosse uma pré-condição necessária para alcançar o objetivo principal de Locke; uma teoria da resistência convincente” (tradução própria).
[5] Aquilo que era adquirido pela pessoa passaria a fazer parte do suum, definido como aquilo que é “naturalmente próprio” e protegido, portanto, por um ideal natural de justiça cujo corolário imediato é a abstenção daquilo que pertence a outro (Tully, 1983, p. 81).
[6] A relação mais clara entre propriedade de si e propriedade privada entendida como propriedade material é tratada por Ostrensky (2011) e será mencionada mais adiante, na próxima seção.
[7] Arneson (2015) argumenta que, mesmo descartando a ideia do consentimento tácito sobre o uso do dinheiro, a noção de que, em um cenário de escassez, as pessoas estariam melhores sob um regime de propriedade privada do que sob o uso comum continuado da terra seria suficiente para justificar a propriedade privada. Isso porque a privatização das posses gera incentivos para a criação de mais riquezas e, no que certamente se aproxima de um argumento utilitarista comum em autores liberais contemporâneos, todos ganhariam com esse crescimento da economia, ainda que alguns melhorem mais do que outros.
[8] “Um dos argumentos dos levellers era o de que o critério da propriedade fundiária excluiria do governo homens com um genuíno interesse na continuação ou revisão desse governo. No entanto, esses homens sem propriedade imobiliária possuiriam um bem muito superior a esta: a vida, aquilo que Deus e a natureza lhe concederam” (Ostrensky, 2011, p. 24).
[9] Como bem sintetiza James Tully: “[…] a distribuição convencional recebe proteção natural: ‘ainda que a divisão da propriedade não possa ser prescrita pela lei natural, uma vez que essa divisão foi feita e as esferas de dominium foram distribuídas, a lei natural proíbe o roubo, ou a usurpação indevida de propriedade alheia’” (Tully, 1983, p. 171, tradução própria).
Fonte Imagética: Wikimedia Commons. John Locke by Richard Westmacott. 17 jul. 2015. Fotografia de Stephen Dickson. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:John_Locke_by_Richard_Westmacott.jpg >.Acesso em: 12 maio 2023.