Brenda Carranza[1]
Ana Claudia Teixeira[2]
Essa é uma pergunta que nos fizemos numa longa caminhada num parque campineiro. Empolgadas começamos a fazer conexões sobre a possível aproximação performática entre o bolsonarismo e alguns grupos ultraconservadores católicos e nos perguntamos se haveria alguma afinidade que reforça mecanismos de desdemocratização institucional. Mais passeios, mais perguntas, mais associações. Resolvemos, então, juntar as nossas pesquisas e nossas bagagens teóricas, por um lado sócio-antropologia da religião, por outro ciência política. Das caminhadas animadas para as idas e voltas de versões do artigo que virou promessa para socializarmos as nossas reflexões matinais.
Assim, começamos por focar num conflito católico, gerado em torno da Campanha Ecumênica da Fraternidade de 2021, organizada pelo CONIC (Conselho Nacional de Igrejas), quando o Centro Cultural Dom Bosco (CDB) desafiou a autoridade da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros) ao deflagrar uma anticampanha. Mais perguntas: quais os mecanismos e conteúdos utilizados para deslegitimar a iniciativa e as instituições religiosas? Quais as semelhanças desses conteúdos e performáticas se assemelham ao fenômeno bolsonarista e da extrema direita internacional? Quanto esse episódio reverbera outro tipo de ameaças e violências aos setores progressistas nos últimos anos no Brasil? Qual a novidade que a direita cristã, católica e evangélica, apresenta na relação entre religião e política? Quais os desafios teóricos e políticos que esse caso nos apresenta para compreender o declínio da democracia no país?
Para dar consistência empírica a possíveis respostas nos propusemos construir um corpus de evidências netnográficas que possibilitassem a análise da produção de mídias que circularam nas redes sociais, reverberando o conflito entre a CNBB e o Centro Dom Bosco.
Registramos que o atrito começa em fevereiro de 2021, quando conservadores católicos, bispos e grupos de leigos deflagraram uma contracampanha para boicotar a V Campanha Ecumênica da Fraternidade (CEF) nas dioceses de todo o Brasil. Os fiéis católicos foram incentivados a não fazer doações econômicas no domingo de Ramos, dia em que o dinheiro da coleta é destinado para obras sociais, sustentadas pelos projetos da Igreja católica e das igrejas que participam na Campanha.
Por meio de outdoors e lives no YouTube difundidas nas redes sociais, questionaram os materiais produzidos pela comissão responsável e atacaram de forma beligerante os seus idealizadores. Para o CDB, a Campanha Ecumênica da Fraternidade é uma mobilização religiosa da “extrema esquerda revolucionária” infiltrada na CNBB e no CONIC. Ambas instituições são acusadas pelo CDB de espalhar, nas mais de 500 dioceses católicas, temas caros à ala “esquerdista” das igrejas, tais como a reivindicação dos direitos das minorias, respeito à diversidade religiosa e às culturas indígenas, bem como a denúncia do racismo, feminicídio e violências doméstica e contra a comunidade LGBTQI+.
Autodefinidos como uma comunidade aliada da “verdadeira doutrina” da Igreja católica, o CDB afirma promover a formação de “soldados de Cristo” por meio da via espiritual e intelectual para atuar na cultura defendendo a fé verdadeira. Ao mesmo tempo, resguarda o que compreende por verdadeira tradição católica. Sentem o imperativo de sinalizar os erros doutrinais e disciplinares em que incorrem tanto a hierarquia quanto os fiéis católicos. Por isso, o CDB encampou o ataque sistemático à CEF de 2021, acusando de “ideológico” o conteúdo do documento de estudo da Campanha, denominado de Texto-Base, e alertando para possíveis infiltrações políticas na sua elaboração.
Duas questões perturbaram o CDB, fundado no Rio de Janeiro em 2016: a participação ecumênica na elaboração dos documentos da Campanha e as questões de gênero que neles são abordadas. Numa sequência de cinco vídeos gravados pelo CDB, disseminados pelas redes sociais e aqui analisados, mostram-se quatro aspectos a destacar: o teor acusatório das afirmações, um acirramento das relações entre as alas progressista e conservadora do catolicismo; certa afinidade linguística e performática com grupos que promovem a polarização social, como é o caso dos grupos radicais bolsonaristas; e a maneira de colocar a denominada “ideologia de gênero” no epicentro da contraofensiva à iniciativa da CFE/2021.
O argumento que sustentamos em nosso artigo, “Ultraconservadorismo Católico: Mimeses dos Mecanismos da Erosão Democrática Brasileira”, é que a forma como o CDB agiu é muito próxima das maneiras pelas quais setores do bolsonarismo agem. Não apenas o conteúdo como também as formas são bem próximas ao mesmo processo observado por outros analistas da extrema direita mundial. Em geral, as indagações sobre as direitas no Brasil, quando estudam o papel das igrejas, estão muito focadas nos setores neopentecostais. Nosso objeto se dirigiu aos católicos conservadores que têm realizado alianças para atuar politicamente com setores conservadores de outras igrejas cristãs em instâncias legislativas e de governos, tanto federal quanto estaduais e municipais.
As nossas indagações são sempre orientadas por perguntas, tanto nas caminhadas quanto na escrita. Por isso, nosso argumento foi construído em torno de algumas outras perguntas como: o quanto a forma de agir do CDB se aproxima de outros episódios violentos e ameaçadores a setores progressistas vivenciados nos últimos anos no Brasil? Sabendo que a direita católica sempre esteve atuante na sociedade brasileira, o que este episódio aponta em termos de novidade?
No fundo estávamos, também, preocupadas por compreender o sentido e as gramáticas políticas que articulam os discursos e narrativas que circularam nos materiais produzidos pelo CDB. Isso significou que deveríamos ir além das recorrências linguísticas nos materiais disponíveis, exercitando-nos na procura de conectores com eventos e materiais que “pairam” em torno do corpus empírico que construímos. E, se possível, detectar as regras de produção e circulação de sentido desses discursos, na procura de evidências de como, para seus autores e receptores, têm sentido esse investimento.
Para responder às perguntas e demonstrar nosso argumento, examinamos o site e os vídeos disponíveis no canal YouTube do Centro Dom Bosco. Realizamos ainda uma entrevista com a Secretária Geral do CONIC, responsável pela condução dos trabalhos de preparação e divulgação da Campanha, e que foi duramente atacada durante a contraofensiva movida pelo CDB.
Concluímos que os conteúdos e mecanismos empregados pelo CDB para deslegitimar a Campanha da Fraternidade Ecumênica e seus promotores são ataques aos direitos democráticos. Observamos ainda a virulência com que pretendem a eliminação de todos os que divergem do Centro Dom Bosco. Mas, também, apontamos o que consideramos as três novidades desse comportamento representativo da direita cristã, tanto nacional quanto internacional, e das afinidades performáticas com o bolsonarismo. Tais singularidades encontram-se na ordem das estratégias utilizadas pelos grupos ultraconservadores religiosos, tais como: a disrupção, própria do caráter militante desses grupos; a juridificação da moralidade pública, por meio da implementação de processos judiciais e a presença de seus membros na esfera legislativa; e, finalmente, a convicção que os ultraconservadores têm de serem parte da maioria demográfica e religiosa do Brasil, o que os autoriza, segundo eles, a perseguir aqueles identificados como inimigos da religião e da nação, que pretendem seja cristã.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Professora pesquisadora no Departamento de Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp). Professora visitante no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Email: brenda_poveda@terra.com.br
[2] Professora colaboradora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp). Email: anacct@unicamp.br
Fonte Imagética: Cartaz da V Campanha da Fraternidade Ecumênica (Créditos: CNBB, junho 2020). Disponível em <https://www.cnbb.org.br/escolhido-o-cartaz-da-campanha-da-fraternidade-ecumenica-de-2021-fraternidade-e-dialogo-compromisso-de-amor/>. Acesso em 25 set 2023.