Antipartidarismo, intolerância e liderança antissistema no Brasil de Bolsonaro
Ednaldo Ribeiro[1]
Julian Borba[2]
As eleições de 2018 levaram ao poder um líder populista de direita com discurso fortemente antissistema que constantemente deslegitimava instituições centrais do sistema político nacional, como os partidos. Fuks, Ribeiro e Borba (FUKS; RIBEIRO; BORBA, 2021) apontaram que nesse contexto eleitoral o antipartidarismo generalizado, ou seja, direcionando a todas as legendas, cresceu e foi bastante relevante para o resultado final da disputa.
Logo no primeiro ano de mandato, todavia, o discurso de Bolsonaro e de seus aliados foi gradualmente mudando no que diz respeito principalmente aos partidos políticos. Ainda que o discurso antissistema continuasse na forma de ataques ao Supremo, o presidente se rendeu ao bloco popularmente conhecido como Centrão, ao qual declarou pertencer desde sempre[3].
Essa estratégia ambígua e vacilante do presidente teria afetado as disposições do eleitorado em relação aos partidos políticos? Combinando a literatura sobre tolerância política e sentimentos partidários, mas também dialogando com proposições sobre o efeito de mensagens e posições de lideranças políticas sobre pensamentos e emoções dos eleitores médios (BRADY; SNIDERMAN, 1985; ZAJONC, 1980), investigamos se houve aumento ou redução da antipatia por alguns dos principais partidos nacionais adotando uma perspectiva que considera a extensão e a intensidade dos sentimentos direcionados a essas instituições.
O antipartidarismo tem sido investigado pelo menos desde a década de 1990 como um fenômeno de alcance global (POGUNTKE; SCARROW, 1996). Duas abordagens principais podem ser localizadas nessa agenda: uma culturalista que entende os sentimentos negativos a essas instituições como parte de postura antissistema mais ampla e, empiricamente, considera todas as legendas de um sistema como alvos (MONTERO et al., 2004; POGUNTKE; SCARROW, 1996); e outra que enfatiza aversões seletivas por parte dos eleitores em razão de identificações partidárias positivas (ABRAMOWITZ; WEBSTER, 2016).
O partidarismo negativo estudado nessa última abordagem é atitude de rejeição à legendas competidoras no mercado político (ABRAMOWITZ; WEBSTER, 2016; MICHAEL MCGREGOR; CARUANA; STEPHENSON, 2015) e sua expressão comportamental é a rejeição de candidaturas rivais.
A literatura nacional incorporou essa temática em suas agendas de pesquisa e, em síntese, os estudos atestam a relevância dessa fase negativa da identificação partidária principalmente para as escolhas eleitorais (CARREIRÃO; KINZO, 2004; RIBEIRO; CARREIRÃO; BORBA, 2016; SAMUELS, 2006). Até muito recentemente o partidarismo negativo nacional, todavia, se concentrou sobre o Partidos dos Trabalhadores, que monopolizaria a aversão dos eleitores nacionais (SAMUELS; ZUCCO, 2018). Apenas recentemente trabalhos passaram a documentar a rejeição relevante de outros partidos, inclusive apontando para a necessidade de considerarmos o fenômeno da aversão generalizada a todas as legendas (FUKS; RIBEIRO; BORBA, 2020, 2021; PAIVA et al., 2016).
O trabalho de Fuks, Ribeiro e Borba (2021) além de propor essa ampliação da extensão do antipartidarismo também indica como relevante considerar diferentes intensidades desses sentimentos, propondo a conexão dessa agenda à literatura sobre tolerância política. Os autores constroem, para tanto, um enquadramento bidimensional do antipartidarismo, que poderia se expressar em formas tolerantes (partidarismo negativo, por exemplo) ou intolerantes (rejeição generalizada aos partidos políticos). Seus resultados indicam que no Brasil recente ocorreu uma ampliação dos alvos, mas também a intensificação da rejeição na forma de intolerância, inclusive com efeitos expressivos sobre o voto nas eleições de 2018.
Em nossa pesquisa adotamos essa mesma perspectiva bidimensional, considerando o antipartidarismo na sua extensão e intensidade; todavia, também discutimos as bases ou fontes desses sentimentos. Propomos uma interpretação da variação nos sentimentos partidários negativos a partir de uma mudança discursiva da principal liderança política nacional antissistema dos últimos anos, paradoxalmente, o ex-presidente Bolsonaro.
Os efeitos de pronunciamentos de elites políticas sobre atitudes e comportamentos dos eleitores ainda é objeto de disputa, mas trabalhos apontam que essas posições públicas podem funcionar como heurísticas afetivas ou probabilísticas nos casos em que ocorre forte conexão sentimental entre o emissor e o receptor da mensagem (BRADY; SNIDERMAN, 1985; ZAJONC, 1980; CAVAILLÉ; NEUNDORF, 2022). Esse raciocínio tensiona as bases da rejeição aos partidos, que passam a ser entendidas como voláteis e passíveis de alteração por fatores externos e irracionais.
Recentemente, pelo menos dois trabalhos apresentaram evidências desse efeito elite. Rennó (2020) mostra como ao longo da campanha eleitores de Bolsonaro vão alterando suas posições em relação à temas relevantes para coincidirem com as posições do candidato. Russo, Pimentel Junior e Avelino (2022) demonstram por meio de experimento de survey como os eleitores desse mesmo candidato se reposicionam na escala esquerda-direita em razão dessa escolha eleitoral, no que chamam de efeito reverso.
Para estimar os efeitos dessa mudança de estratégia do presidente sobre os sentimentos partidários do eleitorado, principalmente daquela parcela que apoia o ex-mandatário, combinamos dados do Barômetro das Américas (2018) e da pesquisa Clivagens Políticas no Brasil (2023)[4].
Nessa primeira fonte, questões específicas sobre desafeição e tolerância política em relação aos três principais partidos nacionais foram incluídas. Uma primeira bateria perguntava aos eleitores: “Falando dos partidos políticos, poderia informar quanto gosta ou não gosta dos seguintes partidos: (PT ou PSDB ou PMDB)? Até que ponto gosta ou não gosta? A segunda bateria adaptava a abordagem tradicional nos estudos sobre tolerância política a grupos radicais para medir a disposição do entrevistado em relação ao direito dos partidos participarem das eleições: “Até que ponto você aprova o direito do (PT ou PSDB ou PMDB) de competir nas eleições para presidente do Brasil?”.
A pesquisa de 2023 também utiliza essas duas baterias, mas substitui o PSDB pelo PL. A partir dessas baterias foram criados 8 perfis de desafeição e 8 perfis de tolerância[5]. Na etapa final esses perfis foram combinados em uma tipologia que considera tanto a abrangência (desafeição) quanto a intensidade (intolerância) do antipartidarismo, com ênfase sobre o antipetismo, gerando cinco grupos: não antipartidários, antipetista tolerante, antipartidário generalizado tolerante, antipetista intolerante e antipartidário generalizado intolerante.
A série histórica dos dados sobre desafeição da Tabela 1 revela mudanças importantes no período recente. A tendência de redução do grupo dos não desafetos observada desde 2002 é acentuada em 2023, chegando a apenas 21,2% (primeira linha). Sugere assim a consolidação do sentimento de partidarismo negativo no eleitorado nacional. Isso, entretanto, não se manifesta em desafeição generalizada, como fica claro na última linha da tabela. Isso se repete quando observamos as linhas sobre desafeição exclusiva a cada um dos partidos. No caso do PT o contingente cresce até 2019, mas no último ano cai pouco mais de 2 pontos, o que, considerando as margens de erro das duas pesquisas, indica estabilidade. A novidade que pode explicar a redução simultânea dos não desafetos e dos desafetos generalizados é a presença do PL no questionário de 2023 e na “elite” do sistema partidário nacional.
No seu conjunto, as flutuações parecem sugerir que estamos diante da consolidação do fenômeno descrito por parte da literatura como partidarismo negativo, que é um fenômeno resultante da competição eleitoral, funcionando como um atalho cognitivo para a tomada de decisão do voto por parte do eleitor (MEDEIROS; NOËL, 2014; ROSE; MISHLER, 1998).
Para a dimensão da intensidade, os dados se restringem aos anos de 2019 e 2023 e indicam um cenário parecido com o descrito acima. A Tabela 2 mostra redução no percentual do grupo dos que toleram todos os partidos e, simultaneamente, exibe redução considerável no contingente dos que são intolerantes a todas as legendas. Novamente é a presença do PL como alvo de intolerância que explica essa tendência, já que a intolerância exclusiva ao PT e MDB registra queda entre os dois anos. Sugere, portanto, que estamos diante da intensificação do antipartidarismo negativo seletivo e direcionado aos adversários.
A mesma tendência se repete quando a bidimensionalidade do antipartidarismo é composta considerando a ênfase no antipetismo na forma de uma tipologia. Na tabela 3 observamos redução nos dois grupos generalizados, com destaque para o dos Intolerantes, que vai de 21,2 para 8,1 pontos percentuais. Em oposição, podemos observar crescimento considerável no grupo dos Antipetistas Intolerantes entre os dois anos, com o percentual mais do que dobrando.
Vejamos então se a relação entre a condição de apoiador de Bolsonaro e o enquadramento nessa tipologia sofre alterações entre os anos, refletindo provavelmente a mudança de discurso e de postura do mandatário já nos momentos iniciais de seu governo. Na Tabela 4 apresentamos os efeitos que essa condição possui sobre a razão de chance de pertencer a cada um dos grupos da tipologia, tomando como referência o grupo dos Antipetistas Tolerantes.
Os resultados da primeira coluna sugerem que apoiadores em 2019 adotavam uma postura antissistema generalizada, ainda que tolerante. Esses entrevistados apresentavam probabilidade 175% maior de pertencer ao grupo dos Antipartidários Generalizados Tolerantes. É importante salientar que a categoria de referência é o grupo antipetista, e, ainda assim, bolsonaristas tendem a comporem o grupo generalista.
As informações da segunda coluna, referente ao ano de 2023, indicam efeitos estatisticamente significativos para dois grupos, ambos redutores. Apoiadores de Bolsonaro têm probabilidade de pertencimento ao grupo dos Antipetistas Intolerantes reduzida em 89%, lembrando que a categoria de referência é a dos Antipetistas Tolerantes. Ou seja, essa condição passa favorecer um artipartidarismo seletivo direcionado ao PT, porém em uma versão “mais democrática”, já que não tem a intensidade da intolerância. Isso sugere uma “normalização” dessa oposição dos bolsonaristas ao seu partido rival. A mesma interpretação pode ser proposta para o efeito redutor de 85% na probabilidade de pertencimento ao grupo dos Generalizados Intolerantes. Apoiadores de Bolsonaro em 2023 parecem ter abandonado posturas antissistema, ao menos no que diz respeito aos partidos políticos.
Ainda que a natureza observacional dos nossos dados não permita estabelecer uma relação causal internamente válida para essa relação entre mudança no discurso de Bolsonaro sobre os partidos políticos, as mudanças nos padrões de distribuição percentuais nos indicadores de desafeição e intolerância e essas alterações nos efeitos da condição de apoiador não podem ser facilmente ignorados. A imensa distância entre a frase do general Heleno, um dos colaboradores mais próximos do ex-presidente, que dá título a esse texto, e a capitulação ao Centrão parece ter afetado a forma como a base bolsonarista se posiciona frente ao sistema partidário.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ABRAMOWITZ, A.; WEBSTER, S. The rise of negative partisanship and the nationalization of U.S. elections in the 21st century. Electoral Studies, v. 41, p. 12–22, 2016.
BRADY, H.; SNIDERMAN, P. Attitude Attribution: A Group Basis for Political Reasoning. The American Political Science Review, v. 79, n. 4, p. 1061–1078, 1985.
CARREIRÃO, Y.; KINZO, M. Partidos políticos, preferência partidária e decisão eleitoral no Brasil (1989/2002). Dados, v. 47, p. 131-168, 2004.
CAVAILLÉ, C., NEUNDORF, A. Elite Cues and Economic Policy Attitudes: The Mediating Role of Economic Hardship. Political Behavior (2022). https://doi.org/10.1007/s11109-021-09768-w
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Fonte Imagética: Câmara dos Deputados. Comissão de Fiscalização Financeira e Controle, 07/12/2022. Fotografia de Cleia Viana/Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/banco-imagens/pesquisar?buscar=heleno&dataInicio=01%2F12%2F2022&dataFim=31%2F12%2F2022>. Acesso em: 20 set. 2023.
[1] Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFPR. E-mail: ednaldorip@gmail.com
[2] Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: borbajulian@yahoo.com.br
[3] Em entrevista à rádio ABC de Novo Hamburgo em 02/08/2021, Bolsonaro afirma: “É fácil, de forma pejorativa, acusar o Centrão… E outra, eu sempre fui do Centrão, eu sempre fui do PP, raramente estive fora de partido fora dessa sigla. Agora, não podemos simplesmente aceitar que o Centrão está fora do destino do Brasil”.
[4] Foram entrevistados, por telefone, uma amostra de 1500 brasileiros de 16 anos ou mais entre os dias 17 de janeiro e 14 de fevereiro de 2023. A pesquisa utilizou cotas de sexo, idade, instrução (TSE 2022), renda (IBGE/PNAD 2015) e localidade (IBGE/ Censo 2010) e tem margem de erro de 2,6 pontos e intervalo de confiança de 95,5%. A pesquisa foi financiada pelo CNPq.
[5] Um limite empírico da pesquisa é que a mensuração da desafeição partidária foi feita considerando apenas três/quatro partidos (PMDB, PSDB e PT – LAPOP/ PMDB, PL, PT e “Partidos do Centrão”). A bateria do LAPOP considerava apenas esses partidos, que até as eleições de 2018, concentravam a ampla maioria da preferência partidária do eleitorado do país.