João Henrique Araujo Virgens1
Carmen Fontes Teixeira2
08 de maio de 2024
Uma abordagem que costuma ser mais conhecida por pessoas com atuação política e/ou que frequentam encontros promovidos por movimentos sociais, sindicatos e partidos é a análise conjuntural. Se esse é o seu caso, é provável que você tenha participado de algumas ‘mesas de abertura’ abordando esse tema. É possível também que você já tenha se perguntado ou escutado a seguinte pergunta: “mas pra quê precisamos ter esse debate?”
A resposta mais corriqueira é que esse tipo de análise contribui para situar os sujeitos no momento político, de modo a fundamentar as discussões em torno da elaboração de propostas e resoluções que direcionam sua atuação. Ou seja, em qualquer situação em que atores sociais tratam de definir estratégias de ação é sensato analisar os elementos da conjuntura, tais como os fatos mais relevantes no período recente, os cenários em que esses eventos se desenrolaram, os principais sujeitos envolvidos, a correlação de forças políticas e a conexão dessas categorias com a estrutura econômica e social.
Nessa perspectiva, o propósito deste texto é compartilhar alguns dos aspectos mais relevantes para o desenvolvimento de análises conjunturais. Advertimos, entretanto que, se por um lado, a apresentação de uma abordagem mais enxuta pode ser útil para a ampliação do interesse por esse tipo de estudo, por outro, simplificar demais esse processo pode limitar seu potencial analítico, porquanto a análise conjuntural adquire maior alcance na medida que consegue estabelecer conexões entre os elementos conjunturais e a análise histórico-estrutural, acionando conceitos e teorias preexistentes. Apesar disso, em favor de práticas mais simples pesa o argumento de que podem representar uma oportunidade de aproximação de um público mais amplo a esse tipo de análise, de modo que os sujeitos interessados sigam aprendendo a fazê-la, no próprio processo de ação/reflexão/ação (práxis), superando-se a ideia de que essa é uma prática que só pode ser realizada por grandes iluminados.
Além disso, é importante ter clareza dos limites de convidar um especialista externo para apresentar suas análises conjunturais se não for construído um diálogo intimamente conectado com as particularidades dos sujeitos interessados em desencadear ações e com os seus objetivos. Isso não diminui a importância de aprofundar discussões de caráter estrutural, a exemplo das características do sistema econômico e das relações de poder, mas cabe refletir sobre os pontos de encontro entre essas camadas mais profundas da reflexão conjuntural e as especificidades das dinâmicas locais vivenciadas por cada sujeito/organização.
Por isso, assim como na perspectiva freiriana, a análise de conjuntura pode se tornar mais significativa para as pessoas que a experienciam se ela for feita de forma dialógica, propiciando que cada pessoa desenvolva sua capacidade de identificar e analisar fatos relevantes que impactam seu cotidiano e com isso tenha mais elementos para auxiliar a tomada de decisão sobre suas estratégias de ação individual e coletiva. Ou seja, a promoção do diálogo entre especialistas dedicados a esse tipo de análise e sujeitos que conhecem as singularidades de sua própria vivência e da relação com seu entorno pode fazer grande diferença para todas as pessoas envolvidas nesse encontro.
Esse é um dos principais convites que aparecem nas entrelinhas do artigo intitulado “Análise de conjuntura: contribuições teórico-metodológicas”, publicado no número 120 da revista Lua Nova. Nele, nossa intenção foi apresentar um olhar epistemológico que problematiza o próprio fazer da análise conjuntural ao revisar textos que contribuem para sua fundamentação teórica e metodológica. Além disso, evidenciamos também sua importância no processo de constituição de sujeitos críticos e criativos, capazes de desencadear ações com objetivo de promover mudanças políticas e sociais.
Olhar científico para a conjuntura: as camadas, o tempo, o espaço e os sujeitos
A análise de conjuntura bebe de várias fontes, inclusive dos estudos históricos, mas a grande contribuição que essa abordagem traz é propor um tipo de análise que não leva em consideração apenas eventos do passado, mas incorpora também eventos de um presente ainda em construção que tem como diferencial um olhar especialmente direcionado para as expectativas dos sujeitos3. Isso se dá pelo fato de que esses estudos costumam ser desenvolvidos para subsidiar a tomada de decisão ou, mais precisamente, para ajudar a definir as estratégias e táticas que serão adotadas pelos sujeitos e suas organizações.
O elemento chave para analisar a conjuntura com mais rigor científico se relaciona com a maneira como é abordado o aspecto político em cada uma das suas principais dimensões. A primeira delas diz respeito ao grau de aprofundamento teórico do estudo (camadas4). É com apoio desses referenciais teóricos que são analisadas as conexões entre os elementos da conjuntura e aqueles que expressam os processos históricos mais longos e que definem a estrutura (relação conjuntura-estrutura). Ou seja, enquanto o olhar para a estrutura revela elementos que se apresentam de forma mais consolidada na dinâmica social, o olhar conjuntural os evidencia nas dinâmicas sociais mais recentes a partir de fatos políticos, da ação dos sujeitos e da própria correlação de forças.
O espaço4,5 é uma segunda dimensão que merece cuidado, pois criar delimitações territoriais rígidas pode limitar as potencialidades do estudo, especialmente se são ignoradas as instabilidades influenciadas pelos próprios processos/conflitos políticos. Pode fazer mais sentido, portanto, o desenvolvimento de uma espacialização política que não seja definida previamente, mas construída ao longo do curso da análise. Essa questão é importante, pois mesmo que os analistas tenham o objetivo de focar na dimensão local por intencionarem agir em um território específico, acontecimentos desencadeados em outros territórios (olhar interterritorial) e em outras escalas como a nacional ou internacional (olhar interescalar) podem impactar significativamente no espaço em que atuam. Assim, as questões políticas se evidenciam e a própria definição das estratégias passa a depender de uma leitura mais articulada dos processos, principalmente quando os diversos territórios estão inseridos em disputas de poder, como nos casos em que existem relações de dependência e/ou subordinação. Dessa maneira, torna-se fundamental analisar as singularidades de cada território, sem perder de vista as relações entre o local e os outros recortes territoriais.
A terceira dimensão está relacionada com a delimitação temporal3,4,6,7, que não se reduz a uma mera demarcação cronológica do momento em que se inicia e se finaliza o acompanhamento dos fatos que se pretende analisar. Nesse tipo de estudo, uma abordagem mais promissora é a que se orienta pelas temporalidades políticas, também construídas no curso das análises, na medida em que nos momentos de estabilidade os fatos podem se desenrolar de forma lenta, enquanto nos momentos de crise diversos processos se aceleram, o que define o modo como se processam as periodizações na análise conjuntural. Mas qual seria o tempo da conjuntura?
A resposta para essa pergunta se conecta justamente com o olhar que se direciona para a dinâmica política, já que a conjuntura, apesar de se relacionar com os demais ‘tempos’, não representa estritamente, nem o olhar episódico para um acontecimento pontual, nem a longa duração (tempo da estrutura). A conjuntura pode ser demarcada no curso dos acontecimentos à medida que o analista consegue delimitar o conjunto de fatos conectados que ganham inteligibilidade em sua análise, de acordo com os objetivos predefinidos. Alguns autores8,9,10 trabalham com a ideia de periodização, a partir da identificação de pontos de viragem que indicariam o surgimento de uma “nova conjuntura” (decorrente de mudanças nas táticas/estratégias dos sujeitos ou na correlação de forças), ou a partir da identificação de eventos relevantes que possibilitam a divisão do período estudado em subperíodos com características particulares. Um aspecto importante nesse tipo de abordagem é a relevância atribuída às expectativas dos atores sociais e à análise de como os sujeitos agem em função delas. São essas expectativas, acompanhadas de suas incertezas, que tornam centrais as preocupações com os acontecimentos que ainda estão por vir e que impactam nas ações desencadeadas, já que as decisões tomadas pelos atores sociais são diretamente influenciadas por elas.
Uma quarta dimensão que contribui para definir como o analista irá se debruçar sobre uma determinada conjuntura está relacionada com a definição de sujeito4,10,11,12 a ser adotada. Algumas abordagens focam nas classes sociais com um olhar que prioriza as lutas entre proletariado e burguesia, considerando aspectos interescalares (local/global) e suas conexões com as dinâmicas estruturais. Outras direcionam mais atenção para analisar a ação de sujeitos individuais e coletivos que se enfrentam em relação a pautas específicas e, por isso, detalham mais os embates entre sujeitos e organizações antitéticas. Certamente não são abordagens excludentes, mas tanto os referenciais teóricos (camadas) quanto as delimitações temporais e espaciais ajudam a dar sentido para as escolhas do analista acerca dessa dimensão.
Essas quatro dimensões principais contribuem para estabelecer como será realizada e qual recorte será adotado em uma determinada análise. Assim, é possível encontrar abordagens focadas nas relações internacionais, algumas que detalham embates políticos em territórios específicos ou outras que aprofundam enfrentamentos de caráter setorial. São inúmeras as possibilidades a partir do momento em que o analista se debruça sobre essas dimensões e faz suas escolhas teórico-metodológicas.
Essas dimensões, referidas acima, conectam-se com elementos presentes na maioria dos textos que fornecem orientações sobre como construir uma análise conjuntural e costumam ser subdivididos13, didaticamente, como segue:
1) Acontecimentos – é importante diferenciar fatos corriqueiros e aqueles que efetivamente têm potencial para contribuir com o estudo. Esses seriam os fatos políticos, que ajudam a identificar os sujeitos atuantes e a maneira como agem;
2) Cenário – evidencia os espaços de atuação, ou seja, os locais onde ocorrem os principais enfrentamentos políticos como, por exemplo, as ruas ou os espaços institucionais, tais como o parlamento, o executivo e o judiciário;
3) Atores – é essencial identificar sujeitos que merecem receber atenção privilegiada nas análises e demonstrar o papel desempenhado por eles na trama de relações, além de evidenciar seus interesses e qual projeto político ajudam a fortalecer. A depender do tipo de estudo, pode ser relevante abordar a maneira como esses sujeitos se organizam, suas hierarquias, suas estratégias e a maneira como tomam suas decisões, pois como são relações mutáveis e, muitas vezes, imersas em conflitos internos, os resultados desses embates podem impactar na sua maneira de agir;
4) Relações de força – contribui para mensurar a força de cada sujeito, particularmente, nos âmbitos político, social, econômico e militar, e como ela pode impactar nas relações de poder e nas disputas entre grupos antitéticos, condição que ajuda na definição das estratégias;
5) Articulação entre conjuntura e estrutura – comoa conjuntura é um momento singular imerso na própria dinâmica estrutural, torna-se importante que a análise desse período mais curto aponte elementos que se relacionam com esses processos situados na longa duração.
Um aspecto que não pode deixar de ser comentado diz respeito às fontes de informação acionadas nas análises de conjuntura, que incluem notícias, documentos, publicações científicas, dados estatísticos, entrevistas, acompanhamento das atividades desencadeadas pelos sujeitos e seus posicionamentos, entre outras. O importante é ter cuidado com a veracidade das informações acessadas e fazer uma seleção adequada do material sob análise, considerando as categorias escolhidas, o objetivo e o recorte do estudo.
Na figura abaixo, sistematizamos os principais pontos tratados neste texto, de modo a evidenciar que a análise conjuntural se constitui dialeticamente como uma abordagem que expressa elementos das análises estrutural, histórica e dos sujeitos, mas, ao mesmo tempo, se constitui com sua própria dinâmica particular, com seu foco em preparar os sujeitos para a ação. Além disso, incorpora a dimensão das expectativas e desenvolve a delimitação de uma espaço-temporalidade política, fundamentada em referenciais (camadas) que variam de acordo com os objetivos do analista e que se articulam com as dinâmicas culturais e ambientais (essa última ganhando cada vez mais relevância pelas preocupações relacionadas aos alertas que indicam limites para a própria sobrevivência da espécie humana e como isso pode alterar as razões dos grandes conflitos globais).
Figura 1 – Dimensões da análise conjuntural
Fonte: elaboração própria, 2023
Para concluir, recuperamos os elementos trazidos no subtítulo deste texto, partindo da seguinte questão: a quem serve desenvolver uma análise conjuntural? Explicitamos que a finalidade dessa abordagem é preparar os sujeitos para atuar sobre uma determinada realidade (práxis política), que pode ser conhecida com apoio de práticas cientificamente construídas (práxis científica). Ou seja, nesse caso, práxis política e científica se retroalimentam, ampliando o potencial para superar/transformar aquilo que os sujeitos percebem como necessário. Portanto, a principal contribuição deste texto (e do artigo no qual ele se apoia14) está relacionada com o mergulho em discussões epistemológicas sobre as principais dimensões da análise de conjuntura, buscando estimular que ela seja realizada por qualquer sujeito interessado em agir politicamente. Assim, reforçamos seu potencial no sentido de contribuir para a constituição de sujeitos, fortalecendo processos dialógicos e o elemento da criticidade
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
1 – Doutor em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), tendo recebido bolsa para realizar a pesquisa que possibilitou a construção deste artigo da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001.
2 – Doutora em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Titular (aposentada) do Instituto de Humanidades Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do ISC-UFBA e pesquisadora do Observatório de Análise Política em Saúde. https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/
3 – FIORI, José Luis da Costa. 1991. Análise Política do Tempo Conjuntural. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 34, n. 3, p. 379-414.
4 – OSORIO, Jaime. 2001. Fundamentos del análisis social. La realidad social y su conocimiento. Xochimilco: Universidad Autónoma Metropolitana.
5 – LEITNER, Helga; SHEPPARD, Eric. 2020 Towards an epistemology for conjunctural inter-urban comparison, Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, v. 13, n. 3. p. 491-508. Disponível em: https://doi.org/10.1093/cjres/rsaa025. Acesso em: 30 out. 2023.
6 – BRAUDEL, Fernand. 1990. História e ciências sociais. 6. ed. Lisboa: Presença.
7 – LÓPEZ J., Sinesio. 1979. El análisis de coyuntura en el pensamiento socialista clásico. Revista Mexicana de Sociología, v. 41, n. 1, p. 23-58. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3540109 Acesso em: 29 set. 2018.
8 – POULANTZAS, Nicos. 1977. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes.
9 – MADRID, Miguel González. 1992. El análisis político de coyuntura. En torno a El dieciocho brumario de Luis Bonaparte. Polis. Investigación y análisis sociopolítico y psicosocial, n. 1992, p. 229-248. Disponível em: https://revistas-colaboracion.juridicas.unam.mx/index.php/polis/article/view/16609/14869 Acesso em: 28 maio 2018.
10 – GALLARDO, Helio. 1988. Fundamentos de formacion politica: análisis de coyuntura. [S. l.]: Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI) y Editorial Literatura Alternativa. Disponível em: https://praxislibertaria.files.wordpress.com/2013/09/helio-gallardo-fundamentos-de-formacion-politica-analisis-de-coyuntura.pdf Acesso em: 27 maio 2018.
11 – VIANNA, Luiz Werneck. 1991. Ator, tempo e processo de longa duração em análises de conjuntura. In: VIANNA, Luiz Werneck. De um plano Collor a outro: estudo de conjuntura. Rio de Janeiro: Revan. p. 125-169.
12 – TESTA, Mario. 2005. Vida. Señas de Identidad (Miradas al Espejo). Salud Colectiva, v. 1, n. 1, p. 33-58.
13 – SOUZA, Hebert José de. 2014. Como se faz análise de conjuntura. 34. ed. Petrópolis: Vozes.
14 – VIRGENS, João Henrique Araujo; TEIXEIRA, Carmen Fontes. 2023. Análise de conjuntura: contribuições teórico-metodológicas. Lua Nova: Revista De Cultura E Política, (120), 325–357. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-325357/120 Acesso em: 12 fev. 2024
Fonte imagética: Agência Brasil. Acampamento da Juventude em Luta, por Terra e Soberania Popular realizado pela via Campesina. 16 out. 2023. Fotografia de José Cruz/Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2023-10/acampamento-da-juventude-da-campesina-1697469068