Karime Lima[1]
17 de junho de 2024
Este texto busca apresentar um panorama das mudanças direcionadas aos conselhos nacionais de políticas públicas durante o governo Bolsonaro (PL), que alterou o padrão de ampliação da participação social e de criação contínua de conselhos nacionais, e no novo governo Lula (PT). A tentativa de desativação compulsória encampada pelo primeiro mostra que não há momento anterior que possa ser comparado a esse governo, que pretendia a extinção maciça de conselhos, comissões e demais instâncias colegiadas federais. Os conselhos mais impactados foram os que não estavam previstos em leis e, sim, em instrumentos infralegais.
Balanços recentes mostram que poucos conselhos foram formalmente extintos, porém o funcionamento de muitos deles foi interrompido por meio da desativação ou pela redefinição de sua composição (Bezerra et al., 2024; Bezerra; Rodrigues; Romão, 2021). As alterações nos conselhos descaracterizaram suas funções. Portanto, é necessário compreendermos as alterações da estrutura participativa durante o governo Bolsonaro, que é o objeto das próximas seções.
Extinção de conselhos
Ao todo, sete conselhos nacionais foram extintos entre 2019 e 2022, sobretudo no primeiro ano de governo. As Medidas Provisórias (MP) e os decretos presidenciais foram as vias mais utilizadas, estes em maior número. A MP nº 870/2019, convertida na Lei 13.844/2019, extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional[2] e o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte já no primeiro dia de governo.
O Decreto nº 9.759/2019 extinguiu, de uma só vez, o Conselho Consultivo e de Acompanhamento do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e o Conselho da Autoridade Central Administrativa Federal contra o Sequestro Internacional de Crianças. Já o Decreto nº 9.784/2019 extinguiu o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável. Por último, o Decreto nº 10.473/2020 extinguiu o Conselho de Desenvolvimento do Agronegócio do Cacau e revogou uma série de decretos e normas infralegais.
Modificação nos conselhos (2019-2022)
Entre as alterações, podemos observar principalmente a perda ou a diminuição significativa da participação da sociedade civil. No Conselho Nacional do Meio Ambiente a participação foi diminuída drasticamente (de um total de 96 conselheiros para 23) e no Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) os assentos reservados à sociedade civil foram extintos. Em relação ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), os assentos da sociedade civil diminuíram pela metade, de seis para três.
O STF julgou procedente a ação de inconstitucionalidade (ADPF 651) que foi requerida pelo partido Rede Sustentabilidade. A participação da sociedade civil no Conselho Deliberativo do FNMA, que havia sido extinta, é restaurada por essa decisão, que também restabeleceu o ponto em que excluía a participação de governadores no Conselho Nacional da Amazônia Legal. Antes, este conselho em específico havia sido alterado e passado para a vice-presidência da República, o que não é comum.
Outro que deve ser observado é o Conselho Nacional de Direitos Humanos. A alteração sofrida foi a mudança de escopo. Verificamos que sua atuação mudou, sobretudo na pandemia. Esse conselho passou a atuar como um “guarda-chuva” ou “porta-voz” dos conselhos relacionados à área de direitos humanos quando estes foram desativados ou alterados.
Também foi impactado o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, instância máxima do Iphan, que ficou 1 ano e 8 meses sem reuniões – maior período inativo desde que foi criado em 1937. Logo, mesmo que esse conselho não tenha sido alterado por nenhum decreto, os decretos de abril e maio de 2019 resultaram em uma brecha institucional para que as suas reuniões não fossem convocadas e o conselho permanecesse inativo por tanto tempo.
Todos os seis conselhos da área de previdência social foram transferidos para outra pasta, uma vez que o Ministério do Trabalho foi extinto da composição governamental de Bolsonaro – tendo sido recriado posteriormente. Além de mudarem de ministério, tiveram modificação na estrutura, especificamente as recorrentes modificações das regras para criação de grupos de trabalho internos aos conselhos, também chamados de subcolegiados.
O Conselho das Cidades foi transformado em Conselho Nacional do Desenvolvimento Urbano e é o único conselho que consta explicitamente como “transformado” na MP 870/219. O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa teve sua composição e seu nome alterados, o anterior Conselho Nacional dos Direitos do Idoso foi revogado.
Já o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT foi completamente descaracterizado. Apesar de se manter ativo, este conselho teve a sigla LGBT suprimida do nome, descaracterizando-o.
O Conselho Nacional de Política Agrícola teve sua composição alterada e as reuniões do Conselho Deliberativo da Política do Café passaram a ser exclusivamente virtuais. Ao Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas foi vedada a criação de novos subcolegiados, o que fere a autonomia deste e de outros conselhos que também foram impedidos de criarem novos subcolegiados.
As áreas de saúde, educação e assistência social, mais institucionalizadas, não foram modificadas. Os conselhos de políticas tributárias também não sofreram alterações. Especialistas consideram esta área “insulada” e isso pode explicar a falta de alteração.
Restabelecimento de conselhos
Foram restabelecidos o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e aos Delitos Contra a Propriedade Intelectual e o Conselho Nacional da Amazônia Legal. Contudo, segundo matéria do Politize!, a reativação deste foi apenas anunciada em 2020, após o acirramento das crises envolvendo a Amazônia no final de 2019.
Criação de conselhos
Foram criados dois conselhos: o Conselho Deliberativo do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas e o Conselho do Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado. Ambos são conselhos de programas nacionais e foram criados por decretos em 2019, o primeiro foi criado pelo Decreto nº 9.937 e o segundo pelo Decreto nº 9.906. Entretanto, a Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos e o Plano Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos já existiam desde 2007. As categorias de comunicadores e ambientalistas foram adicionadas em 2018. O Conselho Deliberativo em questão foi indicado como criado em 2019 devido a sua criação no âmbito do Programa Defensores.
Mudanças do novo governo Lula
Eleito para o seu terceiro mandato em 2022, Lula da Silva (PT) retoma a participação social como uma das prioridades de seu novo governo. Suas ações visam atender um movimento coletivo da sociedade civil que demandou a revogação do conjunto de atos que impactaram o exercício da participação social institucionalizada e ficou conhecido como Revogaço.
Além do Revogaço direcionado para a participação social, outros “revogaços” tomaram fôlego com a eleição de Lula. Os principais foram o movimento pela revogação de uma série de medidas de flexibilização da posse e do porte de armas adotadas nos últimos anos e o movimento pela revogação de medidas que impactaram diretamente meio ambiente e povos indígenas.
Como inovação em relação ao governo anterior e como forma de dar continuidade às políticas participativas dos governos petistas, o novo governo Lula retoma esforços políticos iniciados pelo governo Dilma pouco antes de seu impeachment. São eles a Política Nacional de Participação Social e o Sistema de Participação Social, que, à época, se chamava Sistema Nacional de Participação Social.
Em janeiro de 2023, Lula assinou dois decretos oficializando a criação de um novo conselho nacional que havia sido organizado, inicialmente, apenas para o período de transição, e na mesma data, também oficializou a criação do Sistema de Participação Social. O Decreto n° 11.406/2023 cria o Conselho de Participação Social e o Decreto nº 11.407/2023 cria o Sistema de Participação Social.
Notamos o esforço de coordenação interministerial feito pela Secretaria-Geral da Presidência da República, que tem status de ministério. A Secretaria-Geral reaparece como um ator-chave tanto na articulação entre governo e sociedade, com protagonismo na relação com entidades e conselhos, como também na interlocução entre os diferentes ministérios. Outro importante canal de interlocução dentro da Secretaria-Geral da Presidência é a Secretaria Nacional de Participação Social.
A Secretaria-Geral da Presidência assinou a Portaria nº 147/2023 que dispõe sobre as diretrizes para a composição dos conselhos e comissões a ela vinculados. Dentre as determinações a serem seguidas pelas organizações da sociedade civil e pelos órgãos e entidades governamentais estão a paridade de gênero e o percentual mínimo de 20% de pessoas pretas e pardas em conselhos e comissões da Secretaria. Esta medida tem como finalidade ampliar a diversidade da representação a nível nacional.
Foram recriados o Fórum Interconselhos, que estava interrompido desde 2017, com objetivo de reforçar diálogos transversais aos conselhos durante o processo de elaboração do Plano Plurianual (PPA) Participativo 2024-2027.
Restabelecimento de conselhos extintos
Foram recriados o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável (CDESS) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf).
Modificação nos conselhos (2023)
Os conselhos mencionados anteriormente foram recriados e também alterados. A alteração mais recorrente foi a ampliação do número de conselheiros.
Na cerimônia de recriação do Consea, que ocorreu em 28 de fevereiro de 2023, dois decretos foram assinados: Decreto nº 11.421/2023, que altera as competências do Consea e o Decreto nº 11.422/2023 sobre a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. As alterações ao CDESS estão previstas no Decreto nº 11.454/2023 de 24 de março de 2023. Destaca-se a mudança do nome do conselho, que passa a se chamar Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável, tendo acrescido o termo “sustentável”, e o aumento expressivo do número de conselheiros que passa a ter 246 membros. O Decreto nº 11.451/2023 de recriação do Condraf estipula que o conselho passe a ter 60 conselheiros, frente aos 44 conselheiros que possuía antes de ser extinto.
Em 2019, por meio do Decreto nº 9.806/2019, o Conama passou por uma drástica redução do número de conselheiros: de 96 para 23. A sociedade civil, que tinha 22 assentos, passou a ter 4. Em 2023, a partir do Decreto 11.417/2023,o Conama passou a ter 30 assentos, divididos entre sociedade civil organizada e setor empresarial. Já o Decreto nº 11.372/2023modificou a composição do Conselho Deliberativo do FNMA garantindo 10 assentos para a sociedade civil.
Destaca-se a modificação da estrutura do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC), alterado por meio do Decreto nº 11.528/2023. Entre as alterações está o aumento de assentos para a sociedade civil, que passaram a ser 30 e antes eram 7.
Considerações finais
É importante entender como o Executivo federal age em relação aos conselhos, uma vez que o presidente possui poder para criá-los e extingui-los de acordo com sua agenda, desde que não sejam previstos por leis. Assim, as prerrogativas que o presidente possui em relação à participação social institucionalizada e a atuação desta nas políticas nacionais devem ser averiguadas. São necessários estudos mais aprofundados para verificar se a alternância presidencial e as variáveis institucionais são capazes de explicar as mudanças nos conselhos nacionais.
No governo Bolsonaro, houve diminuição significativa da participação nos conselhos nacionais com casos que chegam a extinguir a sociedade civil dos conselhos, tornando-os completamente governamentais. Outros impactos que podem ser elencados são a descaracterização dos conselhos, a inatividade em decorrência da indefinição do seu funcionamento e a dificuldade de retomar os trabalhos e de acumular rotinas devido à mudança dos conselhos entre os ministérios.
As informações levantadas mostram que aquele governo buscou atingir mais diretamente os colegiados que poderiam se opor à agenda política defendida por ele, corroborando achados anteriores (Bezerra et al., 2024). O governo Bolsonaro não logrou êxito em extinguir todos os conselhos e demais órgãos colegiados conforme pretendia. Apesar disso, conseguiu desorganizar a estrutura participativa existente no nível federal, como tentamos evidenciar.
A atuação da sociedade civil organizada foi importante por exercer pressão durante os quatro anos do governo Bolsonaro e direcionar as medidas que foram tomadas pelo atual governo Lula. A comparação foi estabelecida para demonstrar que a participação institucionalizada a nível nacional permanece em disputa.
Versões anteriores deste texto foram apresentadas no 46º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e no 27º Congresso Mundial de Ciência Política da International Political Science Association. Partes deste levantamento compõem os resultados de uma consultoria para a ONG Artigo 19.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
BEZERRA, Carla; RODRIGUES, Maira; ROMÃO, Wagner. Conselhos de Políticas Públicas no governo Bolsonaro: impactos do Decreto 9.759/2019 sobre a participação da sociedade civil. Texto elaborado para compor livro da Área Temática de Participação Política da ABCP – 3ª. versão, 2021.
BEZERRA, Carla et al. Entre a Desinstitucionalização e a Resiliência: Participação Institucional no Governo Bolsonaro. DADOS, Rio de Janeiro, Vol.67, N.4, 2024.
[1] Doutoranda em Ciência Política no IESP-UERJ. E-mail: karimerlima@iesp.uerj.br
[2] O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), instituído pelo Decreto nº 807/1993, deixou de ter previsão legal e passou a não fazer parte da composição do governo Bolsonaro logo em seu primeiro dia de governo. Por essa razão, foi considerado extinto.
Referência imagética: Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas promove 1ª Reunião Ordinária e avança na formulação de nova Política de Drogas no Brasil. Foto de Isaac Amorim/MJSP. Disponível em <https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/conselho-nacional-de-politicas-sobre-drogas-promove-1a-reuniao-ordinaria-e-avanca-na-formulacao-de-nova-politica-de-drogas-no-brasil>. Acesso em 11 abr 2024.