Entrevistada: Vanessa Oliveira – Cubanista, Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC e em Ciência da Informação e da Comunicação pela Universidade Paris VIII. Professora no Departamento de Jornalismo na PUC-SP e no Mackenzie e pesquisadora afiliada ao Instituto Alameda de Pesquisa Coletiva. Co-organizadora dos livros Entre a Utopia e o Cansaço: pensar Cuba na atualidade (editora Elefante, 2024) e De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro (Editora Elefante, 2020).
Ronaldo Tadeu de Souza – Professor no Departamento de Ciências Sociais na UFSCar, Pós-Doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP e Pesquisador do Cedec.
- Boletim Lua Nova-Cedec: Conte-nos um pouco de sua formação acadêmica e suas pesquisas no mestrado e doutorado.
Eu sou jornalista de formação e em 2011 comecei um mestrado no Instituto de Altos Estudos da América Latina, em Paris. Lá, estudei o trabalho por conta própria em Cuba, analisando o contexto político dos momentos de mudança na legislação trabalhista. Depois segui com o doutorado. Dessa vez, senti a necessidade de voltar um pouco para os estudos para a comunicação e, prestando atenção às mudanças que aconteciam naquele momento em Cuba, decidi observar com mais rigor a entrada do Google na ilha, no contexto da retomada das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, em 2014.
- Boletim Lua Nova-Cedec: Como se deu seu profundo interesse por Cuba?
Eu sou filha de operários e a questão política sempre esteve muito presente em casa. Eu tinha curiosidade pela realidade cubana, mas não sabia nada sobre o assunto. Durante a faculdade de jornalismo, em 2007, na disciplina de jornalismo internacional, fomos interpelados a fazer uma viagem para realizar uma reportagem. Eu fui bolsista em uma universidade privada e, com o dólar a pouco mais de R$ 2,00, esse tipo de coisa não era impossível. Meu pai pegou um empréstimo na cooperativa da empresa em que trabalhava, fizemos rifa e festas para arcar com os gastos e visitamos a ilha pela primeira vez. Em 2008, Fidel se afastou por motivos de saúde, e parecia óbvio que o trabalho de conclusão de curso deveria ser sobre essa ruptura histórica. Assim começou uma trajetória que me levaria para Cuba mais de 10 vezes até o final do doutorado.
- Boletim Lua Nova-Cedec: Qual a sensação de estar e/ou viver em Cuba por certo período?
Eu vivi em Cuba durante o primeiro semestre de 2013. Acho que a sensação mais interessante era perceber o quão diferente poderíamos viver sendo quem somos, em um mundo não-capitalista. Algumas dificuldades eram muito maiores, claro – o país vive uma penúria severa há muitas décadas. Naquele momento, Cuba atravessava um momento de certa estabilidade, em comparação com o período especial que deixou terra arrasada no pós-União Soviética. Era muito interessante entender a importância que muitas pessoas davam à cultura, a relação próxima da política com a vida cotidiana, o acesso à arte nas suas mais distintas formas. Claro que ainda havia dificuldade material. Mas isso, para mim, era compensado tranquilamente pela oportunidade de compreender os valores de uma sociedade que priorizou a educação e o trabalho coletivo ao longo de tantos anos. Essa cultura, forjada na colaboração e na solidariedade, foi, sem dúvida, das coisas mais impactantes de se observar em Cuba.
4) Boletim Lua Nova-Cedec: Poderia nos dizer qual o legado da Revolução Cubana, sobretudo nas áreas de educação, saúde e moradia.
Acredito que este é um tema de grande conhecimento até de campos avessos à Revolução. A ideia de educação e saúde públicas e moradia para todos é o que sustentou por muito tempo o êxito da Revolução diante da sua própria população. Para aqueles que sonhavam em emigrar para os Estados Unidos, por exemplo, era possível descobrir todo um universo de consumo, mas esses direitos, não. O legado da Revolução nesse sentido é uma medicina importante e mundialmente reconhecida em termos de produção de vacinas, cirurgias importantes e tratamentos preventivos, como o desenvolvimento do campo da medicina da família; na educação, é a redução impressionante do número de analfabetos já logo no começo da Revolução, contando com o trabalho voluntário da população nas regiões mais afastadas das grandes cidades; além claro, da universidade, que abrigou duas populações que, na América Latina, são excluídas desse acesso: as mulheres e a população negra. Em relação à moradia, a estatização das propriedades permitiu que as pessoas tivessem acesso a um teto, independentemente da sua renda ou posição social. Uma das maiores reformas urbanas em termos de habitação de que já se ouviu falar. Todos esses pontos estão comentados com maestria pelas pesquisadoras e pesquisadores que participaram do nosso livro recém-lançado.
5) Boletim Lua Nova-Cedec: Um assunto que nos interessa, diretamente (como homem negro e mulher negra-parda), são as questões raciais em Cuba, qual o impacto da Revolução nelas e como estão hoje os negros/as cubanos? Ainda há racismo, ou diminuiu? A condição material deles, como está?
Quando falamos de Cuba é importante termos consciência de que, apesar de uma ilha nos termos geográficos e de um histórico atípico, ela não deixa de compartilhar conosco um passado de colonização com todas as mazelas que isso implica: escravidão, exploração da terra, estratificação da sociedade, desumanização das pessoas negras. Isso significa que Cuba tem um histórico de racismo, como qualquer país da América Latina. E, embora tenha criado acessos universais a direitos fundamentais, como os mencionados acima, não houve durante a Revolução políticas específicas de combate ao racismo. Esta chaga da sociedade cubana não foi enfrentada como hoje discutimos em outros territórios semelhantes ser necessário. A ideia de que, sob a revolução, todos eram cubanos, independentemente de raça, atrapalhou a compreensão de uma diversidade racial que já estava posta, antes mesmo do processo revolucionário. Hoje, grupos de pessoas pretas e pardas têm feito essas importantes discussões, repensando, inclusive, o lugar que a história reservou aos personagens negros cubanos. Os pesquisadores Lourival Aguiar e Giselle dos Anjos escreveram sobre essas questões para a nossa publicação, com resultados interessantíssimos de suas teses.
6) Boletim Lua Nova-Cedec: Conte-nos sobre seu último livro sobre Cuba, que tem o sugestivo título, Entre a Utopia e o Cansaço: pensar Cuba na atualidade [editora Elefante]. O que há de utópico? E o que há de cansado?
O livro foi desenhado para sair das dicotomias que dominam este debate. Esse binarismo é, já comprovamos, incapaz de explicar a geopolítica, os sistemas econômicos ou as escolhas que fazem as populações no curso da história. Este livro, que é um esforço coletivo, multidisciplinar e com perspectivas de diversos países, nasceu para oferecer às leitoras e leitores, uma miríade de discussões que ampliassem o repertório sobre uma realidade tão distinta à nossa, em um mundo que apesar de mais rico e tecnológico do que nunca, vive em franca decadência política, comunicacional e ética. Quando ouço as pessoas falando do fracasso do socialismo real, sempre me vem um pensamento à cabeça: isso aqui deu certo? Caos climático, fome, analfabetismo, desigualdade…
7) Boletim Lua Nova-Cedec: A partir do seu livro e de suas pesquisas, poderia nos responder, é difícil sabermos, o que há de verdade sobre Cuba e o que é construído como falsidade pelas classes dominantes?
A verdade e a mentira estão na binaridade sobre o país, na ausência da contradição na hora de analisar os processos políticos e históricos. Devemos deixar a ideia de paraíso e inferno para a religião. Na política isso atrapalha mais do que ajuda. O processo revolucionário tem inúmeras conquistas e limites e essas conquistas se dão pela ousadia de um povo e os limites têm razões múltiplas; internas e, principalmente, externas. Acho que o maior erro da análise das classes dominantes é o olhar superficial de que as dificuldades econômicas da ilha são inerentes à experiência socialista, como se ela não acontecesse em um território que foi colônia de exploração e vive, até hoje, pressionada pelas políticas de boicote dos Estados Unidos, país tutor da ilha até a Revolução de 1959.
8) Boletim Lua Nova-Cedec: Enquanto professora de jornalismo na PUC-SP e no Mackenzie, como vê em geral o papel da mídia sobre Cuba?
A mídia hegemônica contribui muito com a consolidação de uma visão dicotômica sobre o mundo, no geral, não só sobre Cuba. No caso específico de Cuba, essa dicotomia acaba servindo à eliminação de alternativas políticas para a nossa região, corrobora com o pensamento fukuyamesco de fim da história. Então, a maneira de olhar para Cuba como um país sob ditadura, miserável e politicamente caótico, impede de olharmos para outras realidades latino-americanas de ditaduras de mercado, empobrecidos e mergulhados em contextos violentos.
9) Boletim Lua Nova-Cedec: O que a esquerda tem a aprender com a história de Cuba?
A esquerda teve aprendizados concretos enormes da experiência cubana com os treinamentos de guerrilha nos anos 1960 e 1970; aprendizados intelectuais e artísticos em relação à construção de uma política de resistência latino-americana que também fosse poética, cinematográfica. Acredito que uma das coisas mais valiosas seja a solidariedade internacional a que Cuba sempre se dedicou. Contextos como o brasileiro tendem a nos deixar muito ensimesmados muitas vezes, acreditando que processos que acontecem aqui não acontecem em outros lugares. A esquerda brasileira, especificamente, ainda pode se inspirar nessa compreensão latino americanista e internacionalista que Cuba sustenta até hoje e que é o que, em situações adversas, nos levou a lugares políticos de emancipação e soberania popular.
10) Boletim Lua Nova-Cedec: Quais são seus próximos projetos, Vanessa? Ainda será sobre Cuba?
Eu estou terminando de editar o livro da minha tese sobre a entrada do Google em Cuba, que também vai sair pela editora Elefante. Tenho uma pesquisa no forno sobre a relação de estados latino-americanos com as Big Techs e sigo, por aqui, militando e dando aulas. Muito obrigada pela troca!