Sergio Simoni Jr.[1]
Nara Salles[2]
11 de novembro de 2024
Marcando as eleições municipais de 2024, o Boletim Lua Nova convidou pesquisadores e pesquisadoras de diferentes capitais do Brasil para analisarem e comentarem sobre o pleito em suas cidades. Esta contribuição finaliza a série e apresenta um balanço geral das eleições. Os textos desta série especial podem ser encontrados aqui.
Balanços sobre eleições municipais no Brasil são sempre temerários. São mais de 5500 disputas independentes, que visam eleger uma prefeita[3] e de 9 a 55 vereadores. É verdade que nem toda unidade é igual. Os municípios variam em gênero, número e grau. Podemos dividi-los, por exemplo, entre capitais estaduais e o resto. Ou enfatizar o G103, o grupo de cidades que tem mais de 200.000 eleitores e que, portanto, exige maioria absoluta para eleição de prefeitos. Outros poderiam lembrar que é importante também considerar pólos regionais, municípios que têm influência em regiões específicas.
Neste universo, as forças partidárias e as preferências do eleitorado são necessariamente heterogêneas, múltiplas e discrepantes. Analistas, no entanto, costumeiramente lançam mão de sínteses, retratos, ideias-força. No caso do pleito de 2024 – e, na verdade, em quase todo ano que se tem disputa local –, os balanços se concentram em verificar e categorizar a adesão do eleitorado aos diferentes blocos ideológicos e a projetar as eleições nacionais seguintes. A direita se fortaleceu, ou sempre foi forte? O eleitorado prefere uma direita moderada a uma radical? Tarcísio de Freitas ganha musculatura e esquerda se enfraquece para 2026?
Neste texto, consideramos que o foco exclusivo nesse tipo de análise perde muito do que é importante para compreender as eleições municipais. Para começar a construir nosso argumento, recuperamos a ideia de sistemas locais nacionalmente difusos, de Wanderley Guilherme dos Santos. Esta tese chama atenção para certa autonomia na distribuição de preferências nas arenas de disputa, organizada pela estruturação de subsistemas partidários locais, difusos territorialmente. Para o autor, o mecanismo que leva à decisão do voto é o mesmo em eleições de diferentes níveis, mas a lógica da racionalidade depende da recompensa ao atendimento das necessidades locais, regionais, ou de políticas nacionais. Ou seja, “o eleitorado é localmente prestativo quando os seus problemas são locais” (Santos, 2018, p. 160).
Desta forma, é de suma importância enfatizar ao menos dois pontos: primeiro, eleições municipais importam e devem ser analisadas em si; segundo, dada a elevada atribuição de responsabilidade na implementação de políticas públicas que cabe aos municípios, resultados eleitorais de pleitos locais podem ser em grande medida pautados pela avaliação de governo, e esta, pela atuação das prefeitas frente às políticas públicas ofertadas.
Essa escolha analítica não implica afirmar que eleições locais não afetam disputas nacionais consecutivas, menos ainda que as ideologias “morreram”. Na verdade, ao focar na ação e na avaliação de governo, acreditamos que a influência dos resultados locais para as disputas estaduais e nacionais posteriores, bem como o papel da ideologia na decisão do voto, se colocam de forma mais adequada.
Esse argumento é central para entendermos um dos pontos que tem sido mais destacado sobre as eleições de 2024 e suas variantes: a alta taxa de reeleição dos prefeitos. Na verdade, trata-se do maior patamar da série histórica, cerca de 82%. Este nível é quase 20 pontos percentuais superior à segunda maior taxa. Em poucas palavras: 2024 foi o ano dos incumbentes. Esse fato ganha ainda mais relevo quando recuperamos os resultados encontrados em diversos trabalhos que notam que incumbência no executivo local no Brasil traz desvantagem eleitoral, (Araújo Jr. e Pires, 2020; Brambor e Ceneviva, 2012; Klasnja e Titiunik, 2017; Moreira, 2012)[4]. Ou seja, não é apenas que a reeleição aumentou, mas cresceu em uma situação de tradicional desvantagem no desempenho eleitoral de prefeitos que tentavam se reeleger.
O que explicaria isso? A hipótese mais proeminente no debate público chama atenção para a escalada da importância das emendas parlamentares nas transferências realizadas pelo orçamento federal, particularmente por tipos específicos de transferências, as chamadas “emendas pix”. Assim, haveria uma lógica de retroalimentação entre a força da direita e do centrão no Congresso, e o envio de recursos orçamentários para prefeitos eleitos, que então ganhariam vantagem na disputa municipal.
Na verdade, essa linha de raciocínio encontra lastro em uma tradicional visão sobre a política brasileira, que ressalta os incentivos ao voto pessoal gerado pelo sistema proporcional de lista aberta (Samuels, 1999) e a criação de redutos eleitorais (Ames, 1995, 2003; Mainwaring, 1991). Nesse debate, locais menos urbanizados estariam sujeitos a maior dominância política de partidos conservadores, uma vez que a clivagem urbano-rural teria originado comportamentos, preferências e culturas políticas antagônicas, cabendo ao rural a política particularista, arcaica, “do atraso”, e ao urbano a política universalista, ideologizada, “do desenvolvimento” (Soares, 1973).
Ainda que a explicação via emendas seja persuasiva, destacamos alguns pontos que ajudam a enquadrar melhor esses argumentos. Primeiro, a predominância dos partidos de centro-direita frente aos executivos municipais tem raízes no bipartidarismo experimentado por MDB e Arena, que ofereceu oportunidade de capilaridade desigual no território nacional aos partidos que nasceram pós-redemocratização. Segundo, os dados de reeleição de prefeitos em 2024 por tamanho de município mostram um padrão semelhante de disputas e vitórias, sobretudo nos municípios com até 200 mil habitantes. Em todas as faixas consideradas[5], cerca de 80% dos candidatos tentaram se reeleger e, desses, cerca de 80% venceram (Gelape, 2024). Em resumo, a alta taxa de reeleição em 2024 não parece ser explicada pelo tamanho dos municípios nos quais se travou cada disputa. Pelo menos, não aparentemente. Terceiro, dinheiro em caixa por si só não é suficiente para garantir apoio, é preciso saber como gastar. O poder público local tem competência e atribuição de planejar e controlar o uso e ocupação do solo urbano, serviços de transporte público, saneamento básico, tratamento de lixo, educação (notadamente infantil e fundamental), saúde (notadamente atenção primária), assistência social (notadamente proteção básica), dentre outras áreas de políticas públicas.
Historicamente, pesquisas de opinião indicam que uma das preocupações perenes dos eleitores brasileiros é com a área da saúde. Neste caso, o papel do governo municipal é crucial, pois ele é responsável pelas Unidades Básicas de Saúde e pelas Unidades de Saúde da Família, que organizam os serviços de consultas, exames e vacinas. Há, por exemplo, estudos que mostram o aumento de gastos públicos em saúde por prefeitas que tentam reeleição, independentemente do tamanho do município e da ideologia partidária (Novaes e Matos, 2010). Esse é um caso que ilustra o esforço em demonstrar ao eleitorado competência na provisão de bens públicos, o que poderia favorecer à recondução no cargo.
Compilamos dados de avaliação de governo de prefeitos que tentaram a reeleição nas capitais em 2024[6]. É possível estabelecer um espectro que vai de 80% a 6% de pessoas que avaliavam positivamente os governos. Todas as mandatárias cuja aprovação era superior a 40% foram eleitas – e, para aquelas com percentual acima de 60%, isso aconteceu no 1º turno. Por outro lado, candidatos cuja avaliação positiva estava abaixo dos 20% foram derrotados, entre eles o com a menor aprovação (6%), que perdeu no 1º turno. Casos que variam entre 40% e 20% de avaliação positiva tiveram resultados diversos: vitória em 1º turno em Florianópolis; 3º lugar em Fortaleza; vitória em 2º turno em São Paulo e em João Pessoa.
Naturalmente, a apresentação dos dados desta forma não permite estabelecer relações causais entre avaliação positiva de governo e reeleição. Outros fatores, ligados às disputas partidárias locais, como no caso de Fortaleza, são importantes. Além disso, a avaliação de governo e disposição ideológica se entrelaçam. Por exemplo, eleitores e políticos valorizam aspectos diferentes da ação ou inação do governo dependendo da sua ideologia, e não é irrazoável supor que esta depende em parte da avaliação do desempenho dos partidos governantes (Fiorina, 1981). No entanto, consideramos que a força da associação entre avaliação e resultado eleitoral, muitas vezes ausente ou secundária nos balanços sobre as eleições locais, merece ser sublinhada e enfatizada.
Por fim, levar a avaliação e ação de governos locais a sério ajuda a entender a relação entre disputas locais e as estaduais e nacionais. Primeiro, antes de estabelecer um impacto unidirecional, qual seja, eleições municipais afetariam as demais, é importante considerar que os resultados anteriores dos pleitos gerais também influenciam o desempenho de prefeitos e vereadores. Alguns estudos assinalam que o apoio do governador se encontra entre as variáveis que impactam positivamente a reeleição, embora esse resultado não seja consensual (Araújo Jr., Cançado e Shikida, 2005; Cavalcante, 2016; Silva e Braga, 2013). Os resultados de 2024 evidenciaram casos de sucesso de diversos governadores, seja pelo número de prefeituras conquistadas e/ou pela vitória na capital, como os do Acre, Alagoas, Goiás e Paraná, além de São Paulo. Segundo, Feierherd (2020) e Piazza (2022) mostram que a obtenção de votos locais na disputa presidencial depende da gestão pública municipal de co-partidários. Terceiro, diversos trabalhos indicam que partidos obtêm melhor desempenho para deputado federal e estadual em municípios nos quais elegeram prefeitos (Avelino, Biderman e Barone, 2012; Baião e Couto, 2017). Assim, os resultados de 2024 indicam que, provavelmente, partidos como PSD, MDB e PP conquistarão as maiores bancadas parlamentares em 2026.
Para concluir, algumas palavras sobre a principal clivagem nacional desde 2018. Um fenômeno possivelmente relacionado aos grandes municípios é o surgimento de novos atores da extrema direita, cujo representante principal foi Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo, mas não somente. O protagonismo desses candidatos na opinião pública e também em termos de desempenho eleitoral coloca em xeque a centralidade de Jair Bolsonaro para o eleitorado mais radical e questiona se haverá cisões na direita. Para além disso, é razoável prognosticar que atores radicais derrotados em 2024 possam ser mais facilmente incorporados aos cargos legislativos daqui dois anos, levando, assim, as cisões da direita para as Assembleias Estaduais e para o Congresso Nacional.
No caso do PT, o partido aumentou o número de prefeitos quando comparado ao desempenho observado em 2020. No entanto, teve derrotas importantes, entre as quais se destaca o caso de Araraquara (SP), cujo candidato é – ou pelo menos, era – um dos principais cotados para assumir a presidência do partido em 2025. Em meio à dificuldade que o partido tem em renovar seus quadros, sobretudo no novo mundo que valoriza o “empreendedorismo” e as mídias sociais, casos como o de Natália Bonavides, que disputou o 2º turno em Natal, parecem indicar o surgimento de novas e potenciais lideranças no partido – fator essencial para a sobrevivência de qualquer agremiação. Outro evento importante para o partido em 2024 também foi a vitória de Evandro Leitão, recém-migrado do PDT para o PT, para a prefeitura de Fortaleza.
Esse feito traz alguns apontamentos. O mais óbvio deles é o fato de o partido ter saído vitorioso em uma capital, algo que não ocorreu em 2020. O segundo se refere à disputa – que foi uma das mais acirradas – ter sido travada com um candidato da direita radical, com reconhecida atuação nas redes sociais, o deputado federal André Fernandes (PL). O último ponto diz respeito à derrota do PDT, cujo candidato e atual prefeito, José Sarto, ficou em terceiro lugar, mesmo tendo em torno de 67% de avaliação positiva e regular. É relevante salientar que o PDT saiu desta eleição sem ter vencido em nenhuma capital e reduziu o número de prefeituras conquistadas de 314 para 151 em 2024.
Esforços futuros poderão dizer se e em que medida as emendas foram responsáveis pelos resultados de 2024. Nosso argumento é o de que, mesmo que tenham sido, contaram com a capacidade das prefeitas em utilizar esses recursos – o que, aparentemente, foi reconhecido pelos eleitores. Somado aos outros fatores, isso significa que nem só de polarização vive a política brasileira, mas que partidos, arranjos locais e avaliação de governo continuam sendo determinantes para a competição estabelecida.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências Bibliográficas
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[1] Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: sergiojr_ssj@yahoo.com.br
[2] Pesquisadora do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: nsalles@unicamp.br
[3] Ao longo do texto iremos alternar gênero feminino e masculino, sem prejuízo da generalização.
[4] Esclarecendo para não haver dúvidas: esses estudos procuram estimar o efeito “puro” de ser incumbente na reeleição, descontando outros atributos que têm ou podem ter efeito eleitoral.
[5] As faixas populacionais utilizadas foram: até 10 mil habitantes; entre 10 mil e 20 mil habitantes; entre 20 mil e 50 mil habitantes; entre 50 mil e 200 mil habitantes; entre 200 mil e 1 milhão de habitantes; acima de 1 milhão de habitantes (Gelape, 2024).
[6] Os dados foram coletados em pesquisas realizadas pela Quaest entre agosto e setembro de 2024, divulgadas no site G1. Nelas, são três as categorias de avaliação consideradas: positiva, regular e negativa.
Referência imagética: Agência Brasil. “Coletiva de imprensa, no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), sobre as eleições municipais…”. 1 out. 2024. Fotografia de Tânia Rêgo/Agência Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 7 nov. 2024.