Amanda Rigo Pradella[1]
Andréia Fressatti Cardoso[2]
Carlos Eduardo Landim[3]
21 de novembro de 2024
Refletir sobre a gravidade e a multidimensionalidade da crise que enfrentamos, associando-a à ideia de um inferno dantesco, pode ser tão impactante quanto cruelmente realista. É o que propõem André Singer, Bernardo Ricupero, Cícero Araújo e Fernando Rugitsky, organizadores do livro O Segundo Círculo: Centro e Periferia em Tempos de Guerra (Editora Unicamp, 2024). O livro foi lançado em evento no dia 30 de outubro na Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), e contou com transmissão no Youtube. O evento foi uma iniciativa conjunta do CEDEC e do Cenedic.
Como os autores destacam na introdução da obra, “o inferno dantesco possui a forma de um cone invertido, cujos nove andares descendentes vão, a cada passo, ficando menos e mais aterradores” (p. 13). Nesse sentido, a ideia de segundo círculo do inferno remete a continuidade da obra, organizada pelo mesmo grupo de professores, chamada “O Brasil no Inferno Global: Capitalismo e Democracia Fora dos Trilhos” (FFLCH, 2022) que constituiria o primeiro círculo na metáfora dantesca, segundo os autores. O lançamento deste segundo livro contou com a mediação de Cícero Araújo, comentários de Armando Boito e Vera Telles e de dois autores de capítulos do livro, André Singer e Lena Lavinas.
Boito iniciou o debate enfatizando a ambição do projeto de diagnóstico da crise em um momento em que os caminhos vão se estreitando para a democracia e o bem-estar dos/as trabalhadores/as. Sua reflexão foi desenvolvida a partir de cinco eixos sobre os quais a imagem do “segundo círculo” pode ser fielmente simbolizada no caso brasileiro e, em especial, no governo Lula III. O primeiro é o contexto geral em que o governo está inserido por conta da bipolaridade China e Estados Unidos e a retração brasileira na política externa. Esta situação pode ser expressa na desaceleração da atuação brasileira nos BRICS, exemplificada pela reunião prévia dos ministros da Economia ocorrida em Kazan, que não contou com a participação de Fernando Haddad, que na ocasião cumpria compromissos nos Estados Unidos. Boito enfatiza, entretanto, que a participação ativa nos BRICS pode representar uma das portas de saída desse segundo círculo.
Segundo, o autor destacou o enfraquecimento de uma fração da burguesia interna que foi central nos governos Lula I e II, representada pelas empresas de construção e pela Petrobras, devastadas pela Operação Lava Jato. Embora este ponto seja apenas mencionado no livro, Boito aponta que o governo Lula III tem que lidar com a perda de sua base, mas também do topo, uma vez que essa grande burguesia interna se encontra enfraquecida. Nesse contexto, a política desenvolvimentista, que predominou durante os governos Lula I e II, deu lugar a uma crescente internacionalização do agronegócio e a uma “teologia da prosperidade do empreendedor”.
O terceiro ponto diz respeito à gramática de construção política adotada pelo governo diante da “ameaça neofascista”. Boito destacou como o governo teve que recorrer a uma aliança com “o que restou do campo neoliberal-democratico” para vencer a eleição e sua manutenção para viabilizar o governo. Isso significa que a política de inclusão social, de crescimento econômico estão sob o garrote da exigência do chamado “equilíbrio fiscal”, inclusive levando-o a se aliar a setores neoliberais.
Os pontos quatro e cinco se referem à experiência dos últimos dois governos, de Temer e Bolsonaro: o arrocho do neoliberalismo e as mudanças nas regras do jogo, o que estreita as margens de manobra do governo Lula. Fala-se em uma crise do neoliberalismo e do hiper-presidencialismo brasileiro, uma vez que, nas palavras de Boito, “não dá mais para governar por medidas provisórias”, porque o legislativo brasileiro ganhou muita relevância. Ele encerrou sua intervenção com comentários sobre a fragilidade estrutural do lulismo enquanto um “novo tipo de populismo não mobilizador” e a necessidade de superá-lo – não combatê-lo, mas entender suas limitações e então elaborar uma estratégia, que na situação atual encontra-se defasada.
Em seguida, Vera Telles focou na trama social abordada no livro, destacando os capítulos 9 e 10 do livro, que se referem a assetizacao dos direitos e um certo mimetismo entre Washington, D.C. e Brasília, considerando os ataques de 6 de janeiro de 2021 e 8 de janeiro de 2023, respectivamente. Ela destaca que os impactos sobre o desenvolvimento social que observamos atualmente foram desenhados em um longo processo. Quando se menciona a desindustrialização, por exemplo, observa-se seus efeitos para a democracia e para a estruturalização de um mundo social em torno da precariedade. O processo de desindustrialização, que dura décadas, estrutura um mundo social que valoriza o sucesso construído pela financeirização e que promove a gestão da dívida, em que se procura construir algo onde não há nada. Esse mundo social, na avaliação de Telles, possui uma outra normatividade que se contrapõe ao mundo social em que a indústria era responsável pela organização social dos/as trabalhadores/as.
Trazendo isso para São Paulo, Telles destacou como as favelas se tornaram espaços de negócios e de circulação de dinheiro, onde se tem uma crescente financeirização das ocupações de terra. Em suas palavras, o que ocorre é uma gestão da precariedade e uma reestruturação do mundo social a partir dessa periferia financeirizada: trata-se de um controle privado-territorial do espaço social. Com isso, a pobreza se torna um mundo em disputa. Nesse sentido, empresas privadas promovem negócios de impacto social e financiam inúmeros projetos sociais, gerando empregos nas periferias e, assim, quase assumindo funções típicas das políticas públicas. As organizações religiosas também ganharam espaço, gerando uma grande circulação de dinheiro e coordenando o trabalho social. Vale ressaltar, como foi destacado no evento, que a “organização paroquial” desse espaço, muito restrita ao nível local, encontrou uma expressão notável na recente candidatura de Pablo Marçal (PRTB) à prefeitura de São Paulo.
A academia necessita, na perspectiva de Telles, romper a bolha em que está inserida e entender esse mundo que está sendo construído a partir das margens. Para além dos trabalhos que focam nas resistências e experiências desses espaços – e ela questiona o porquê desses experimentos não se tornarem modelos –, Telles chama a atenção para o padrão construído com base no empreendedorismo e na financeirização da vida promovida nos espaços periféricos.
Em seguida, Lena Lavinas destacou a continuidade do diagnóstico do primeiro livro, de que os muros contra a barbárie permanecem no chão. Há um mal-estar crescente, causado tanto pela ordem neoliberal quanto pelo desfazimento do capitalismo democrático. Apesar do título do livro fazer referência ao segundo círculo do inferno, Lavinas considera o título gradualista, porque se tem uma queda acelerada para outros círculos mais profundos – possivelmente o quarto círculo, da ganância, ou ainda, o sétimo, o da violência, que perpassam o cotidiano de expropriações, exploração, precarização e negação de direitos.
Ela enfatizou alguns fenômenos contemporâneos que levam a esta percepção, como a financeirização e estrangeirização rápida da terra, a partir da internacionalização do agronegócio. A terra tornou-se um ativo financeiro, seguindo a lógica do mercado de capitais, enquanto os direitos sociais sofrem um profundo desmonte e o endividamento das pessoas cresce. Lavinas também aponta para uma grande dissolução e mudança institucional, em especial do INSS, que está sendo desfinanciado apesar da crescente tentativa de inserir as pessoas no mercado de trabalho. A autora não vê uma saída para esse contexto na sociedade civil, pois ela não teria capacidade de se organizar. Além disso, Lavinas ressaltou a desjudicialização da saúde, seguro social e educação, a fim de reduzir o número de processos em curso no Judiciário, o que, para ela, seria uma ferramenta de despolitização e que caminha ao lado do filantropocapitalismo.
A última intervenção foi de André Singer. Ele explicou a origem da ideia de um segundo círculo do inferno, em parte porque, no primeiro livro, os autores haviam identificado essa entrada em um inferno global; mas também a conversa que tiveram com Wolfgang Streeck (entrevistado no livro), em que ele apontou para uma nova fase dessa crise com o início da Guerra da Ucrânia. Por mais pessimista que a ideia de “inferno” possa parecer, Singer destacou como a atual bipolaridade entre Estados Unidos e China é um anúncio da possibilidade de uma terceira Guerra Mundial. Um dos ganhos do livro foi a possibilidade de realização de pesquisa de campo nos Estados Unidos, e notar que Biden era visto como uma alternativa a este inferno. Em sua avaliação, na primeira metade do governo Biden, ele adotou o programa da esquerda do partido democrático, notadamente do Bernie Sanders, o que constitui um fato inédito, apesar de não estar muito evidente para ele o que foi feito na segunda parte do governo Biden.
Sobre a intervenção de Telles, Singer concordou que há um investimento privado na periferia e que se está diante de um novo mundo social. Marçal foi um grande desafio não apenas para analistas, mas também para os próprios atores do campo político, porque ele foi a aparição inusitada de um mundo social pronto, com aspecto americanizado. Ele encarnou uma série de ideias que já ocupavam a periferia, em especial a relação com o trabalho e uma ideia de empresa de si, mas da maneira como ocorreu, isso foi um fenômeno qualitativamente novo.
Dado o adiantado do tempo, foram feitas apenas algumas perguntas e já se seguiu para as considerações finais da mesa. As perguntas e comentários questionavam se se devia perder a esperança, uma vez que ao entrar no inferno, já está n’O Capital, de Marx, deve-se abandoná-la, e também sobre a ideia de gradação entre os círculos do inferno, o que também remete a ideia de um reformismo fraco e um reformismo forte. Por fim, questionou-se quais as possibilidades, em especial de reindustrialização do Brasil e desfinanceirização desses processos sociais.
Boito retomou a multiplicidade de temas e a ambição do livro, e afirmou que, apesar do enfraquecimento dessa grande fração da burguesia interna no país, ela não desapareceu. Há um esforço do governo Lula III em retomar essas relações, e a recente aproximação com a Febraban é um indício disso. O que isso indica é que o posicionamento das classes não depende apenas de fatores do mercado, mas também de ações do governo.
A financeirização da pobreza foi o principal ponto das considerações finais de Telles, em especial como a figura do Marçal sintetiza isso. A vida, como um todo, passou por esse processo e o que se tem hoje é um extrativismo financeiro e tramas institucionais que seguem esta lógica e conformam o mundo social. Ela relembrou as lições de Francisco de Oliveira, e apontou para a necessidade de se questionar qual o estatuto desse conflito e como ele se desdobra, porque o que se tem é um conflito diferente daquele do mundo do trabalho. Ela chamou, uma vez mais, para que a academia saia de sua bolha e procure entender porque a financeirização se espalha mas não a experimentação democrática que se tem na periferia.
Lavinas seguiu nessa mesma ideia, e destacou o mote de “educação financeira”, que surge como estratégia de mobilização social inclusive no G20. Em conjunto com isso, tem-se também um novo arcabouço fiscal, que remove o gasto social do orçamento e reverte completamente o que é uma política pública. Para ela, a luta de classes também se dá no orçamento público.
Finalizando a mesa, Singer afirmou que ainda existe a indústria e o emprego formal, mas que os valores delas mudaram, uma vez que é mais valorizado o emprego por conta própria. Algo por trás dessa mudança de valores pode também ser um certo desespero para se ter recursos financeiros – o que suspeita ser parte da atual epidemia de apostas online no Brasil. Sobre a questão de se abandonar a esperança, ele retomou Walter Benjamin para indicar que nem por todo esse pessimismo o futuro se converteu em um vazio. É necessário diante do pessimismo da razão, como indica Gramsci, ter-se um otimismo da vontade.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
[1] Mestranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo. Membra do Boletim Lua Nova. E-mail: amandarigopradella@gmail.com.
[2] Doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo, com uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo n. 2020/14387-8. Membra da equipe editorial do Boletim Lua Nova e associada ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). E-mail: afressatticardoso@gmail.com. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de completa responsabilidade da autora e não necessariamente refletem as opiniões da FAPESP.
[3] Doutorando no PPGRI San Tiago Dantas (Unicamp, Unesp, PUC-SP), bolsista CAPES. Editor do Boletim Lua Nova e associado ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações aqui expressas são de responsabilidade do autor e não necessariamente reflete a visão da CAPES. E-mail: carlos.landim@unesp.br.