Julia Sichieri Moura[1]
27 de outubro de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Boletim Lua Nova sobre os 50 anos de publicação da obra Anarquia, Estado e Utopia (1974), de Robert Nozick. Leia os demais textos aqui.
Há 50 anos Robert Nozick publicava o livro Anarquia, Estado e Utopia (1974). Conforme nos mostra Thomas Nagel no prefácio da edição de 2013, o livro foi escrito em um período de transformação e ebulição teórica no âmbito da filosofia moral e política estadunidense e no contexto de uma geração de acadêmicos e acadêmicas influenciados pelos escritos de John Rawls sobre justiça social e além do contexto político da época (NAGEL, 2013).
Nozick era reconhecido por seu brilhantismo e sua independência de pensamento. Fez parte de uma comunidade de intelectuais que reformulou as questões e os métodos que estruturaram como se pensam as questões da filosofia política até hoje. Esse grupo se consolidou informalmente em um grupo de discussão denominado SELF (Society for Ethical and Legal Philosophy), organizado por ele e por Thomas Nagel em 1967, o qual reuniu alguns dos nomes mais notórios hoje da filosofia política, tais como Ronald Dworkin, Owen Fiss, Frank Michelman, T. M. Scanlon, Michael Walzer, John Rawls, Judith Jarvis Thomson, entre outras pessoas. Eles se encontravam mensalmente entre Nova York e Cambridge, apresentando trabalhos de work-in-progress para críticas e comentários mútuos. Todas as pessoas do grupo apresentavam naquele período trabalhos novos, à exceção de John Rawls, que estava à época completando Uma Teoria da Justiça (1971).
Mesmo com um desacordo radical acerca de questões específicas sobre moral e política, que estruturavam diferentes respostas, havia dois elementos de acordo entre essas pessoas: a possibilidade de análise no âmbito da moral de questões que possibilitam respostas sobre o certo e o errado (uma rejeição ao positivismo lógico) e a rejeição ao utilitarismo (NAGEL, 2013, p. 13).
Tal contexto possibilita que se entenda a célebre frase de Nozick em Anarquia Estado e Utopia: “Filósofos políticos devem trabalhar no âmbito da teoria de Rawls ou explicar por que não o fazem”(NOZICK, 1974, p. 183). Como se verifica da lista de autores que estavam presentes no grupo SELF, não foi somente Nozick que estruturou uma teoria se distanciando da teoria rawlsiana e apresentando uma teoria alternativa. Para o seu projeto, porém, era fundamental que se definisse o “porquê”, ou seja, demonstrar os problemas da proposta de John Rawls e as vantagens da sua própria proposta. Por essa razão, é incontornável que se pense o texto de Nozick no âmbito de tal debate.
Anarquia, Estado e Utopia, assim, é um livro dedicado à defesa do Estado mínimo como o único passível de ser justificado – ou seja, coloca-se em uma posição diametralmente oposta ao modelo rawlsiano, que estabelece a necessidade do engajamento estatal (através das instituições) na realização da justiça distributiva. Nozick justificará sua teoria com base no argumento de que qualquer modelo estatal mais abrangente do que o delineado pelo Estado mínimo violaria os direitos individuais, os quais devem ser resguardados acima de tudo. Trata-se da tese principal do livro, isto é, a defesa prioritária dos direitos individuais e a conclusão de que a única esfera de atuação do poder estatal deve ser proteger os indivíduos contra fraude, roubo, uso da força e atuar para garantir o cumprimento dos contratos.
Percebe-se, assim, que da longa tradição sobre a discussão do liberalismo acentuam-se com o texto de Nozick frentes interpretativas bastante divergentes. Por um lado, o enfoque libertariano, como se convencionou denominar o liberalismo conservador, que tem em Nozick o seu maior expoente. Por outro, o liberalismo igualitário, que tem na teoria de justiça como equidade sua referência mais importante (GARGARELLA, 2008, p. 33).
É importante lembrar que a tradição libertariana não se iniciou com Nozick nem tampouco se pode dizer que foi abalada pela sua autocrítica para um âmbito de maior solidariedade social. A teoria política proposta em Anarquia, Estado e Utopia baseada em direitos individuais permanece como uma influente concepção avaliativa de políticas públicas e instituições. Além disso, o libertarianismo nozickiano desempenhou um importante papel na ideologia conservadora do livre mercado nos anos 1970 e 1980 – inclusive Anarquia, Estado e Utopia foi por vezes compreendido como estruturando a base filosófica daquele movimento (NAGEL, 2013, p. 16).
Garantir a inviolabilidade do sujeito é pauta compartilhada das teorias que se colocam como críticas ao utilitarismo. A questão perene: como garantir a inviolabilidade e a relacionar com a liberdade? É nesse desdobramento que as diferenças entre as duas concepções se aprofundam. Para Rawls, a concepção de justiça que decorre da ideia de que cada um tem uma inviolabilidade se expressa na célebre frase: “Justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade é do pensamento. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode violar”(RAWLS, 2002, p. 4).
Já a proposta de Nozick surge fundamentada nos direitos: “Indivíduos têm direitos e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer com eles (sem violar estes direitos). Tão fortes e extensivos que eles colocam a questão do que, se é que existe algo, o Estado ou seus representantes oficiais podem fazer”(NOZICK, 1974, p. ix). Sua teoria, sua concepção de justiça, podemos pensar assim, denominada da teoria das titularidades, conecta a liberdade com as titularidades, e são estas que traduzem a inviolabilidade das pessoas. Ou seja, em Rawls, são os dois princípios de justiça que expressam o reconhecimento da inviolabilidade das pessoas; já em Nozick, é necessário o reconhecimento da plena liberdade sobre si. Revelam-se, assim, duas concepções divergentes de pessoa.
Não será possível aqui resgatar os detalhes da crítica de Nozick a Rawls[2], mas importa destacar a ideia que teria “chocado” Nozick, segundo Van Parijs (1997, p. 167): isto é, a discussão que Rawls efetua dos talentos inatos para ilustrar o princípio da diferença. Rawls, no âmbito da justificação deste princípio de justiça vê a distribuição de talentos como um bem comum e acredita em partilhar os maiores benefícios sociais e econômicos possibilitados pela complementariedade dessa distribuição (RAWLS, 2002, p. 108). Frente a tal tese, Nozick lança a chamada “objeção dos talentos”. Para Nozick, essa forma de se conceber a justiça colocaria as pessoas em uma posição de serem instrumentalizadas. Essa crítica é assimilada por Michael Sandel, que afirma que a única forma de rebatê-la seria pensar uma concepção intersubjetiva de sujeito, pois o sujeito que teria posse seria um “nós” e não um “eu” (VAN PARIJS, 1997, p. 170).
Importa, ainda, colocar foco nesse embate teórico para que se repensem as reflexões posteriores a Anarquia, Estado e Utopia presentes no livro The Examined Life (1989). No artigo “The Zigzag of Politics”, que compõe o livro, Nozick afirma que “a posição libertária que outrora defendi parece-me agora seriamente inadequada, em parte porque não integrava totalmente as considerações humanas e as atividades conjuntas de cooperação para as quais deixou espaço mais estreitamente no seu âmbito” (NOZICK, 1989, p. 287). De tal modo, Nozick reconhece posteriormente a importância da expressão de valores que possam ser formulados de forma mais adequada e mais eficazmente de modo conjunto (politicamente) e contínuo com a preocupação individual (NOZICK, 1989).
Segundo o autor, “queremos que a nossa vida individual expresse as concepções de realidade”, “queremos que as instituições que demarcam as nossas vidas em conjunto exprimam e simbolizem de forma saliente as nossas relações mútuas desejadas” (NOZICK, 1989, p. 287). É possível, inclusive, conectar essa vontade de Nozick com o que Rawls estabelece, também posteriormente, como o papel da filosofia política: a ideia de se estar em casa no mundo social.
Robert Nozick finaliza Anarquia, Estado e Utopia com foco na utopia. Nesse capítulo conclusivo (cap. 10) se consolidam ideias incisivas pelas quais Nozick ficou conhecido, conforme se depreende de “nenhum Estado mais extenso do que o Estado mínimo pode ser justificado”. Em seguida se questiona: “Mas poderia este Estado acelerar os corações e inspirar as pessoas a se sacrificarem pela sua ideia?”(NOZICK, 1974, p. 297). Certamente, continua o autor, “essa concepção não seria tão animadora quando se compara com os ideais das alternativas utópicas?”Certamente, questiona Nozick, mesmo com as suas virtudes, o Estado mínimo estaria longe de uma utopia (NOZICK, 1974, p. 297).
A tônica do capítulo consiste em fazer uma análise crítica de propostas utópicas, uma vez mais através de um debate com a teoria rawlsiana. Como pensar, afirma Nozick, o melhor para nós, o melhor mundo imaginável para cada um de nós? (NOZICK, 1974, p. 299). O foco passa a ser não a utopia do nós, mas a identificação de “que cada um de nós teria seu “melhor mundo possível”. Como pensar a utopia considerando-se que os valores plurais são ponderados por cada um de forma diferente, até mesmo no interior dos núcleos familiares. Essa linha argumentativa leva Nozick a estabelecer a ideia do Estado mínimo como uma estrutura(framework) possibilitadora das utopias. A utopia, portanto, na concepção de Nozick, se expressa como metautopia: um “ambiente onde experimentos utópicos podem acontecer, um ambiente no qual as pessoas estão livres para fazer o que querem e no qual concepções particulares de utopia podem se realizar de forma estável” (NOZICK, 1974, p. 312). Essa estrutura para a utopia seria para Nozick o equivalente ao Estado mínimo. Só ele nos representaria em nossa inviolabilidade. Nozick finaliza o livro com a seguinte frase: “como é possível que um Estado ou grupo de indivíduos ouse (how dare) fazer mais. Ou menos do que isso”[3] (NOZICK, 1974, p. 334).
Essas formulações que encerram Anarquia, Estado e Utopia revelam algo da personalidade de Nozick relatado por Nagel quando afirma que “não havia passividade em sua natureza. Pessoal, política e intelectualmente ele era direto e decisivo. Ele reconhecia que para ser coerente com as suas palavras, suas ideias, era necessário que se colocasse em constante posição combativa (draw fire)” (NAGEL, 2013, p. 18). Nagel reconhece, nesse sentido, a coragem como uma das virtudes de Nozick em seus posicionamentos.
Tendo essa característica em mente, é salutar levar a sério o reposicionamento de Nozick frente a sua própria teoria e refletir sobre os motivos do filósofo para o recuo. Tal mudança, ora interpretada como guinada expressivista (EDMUDSON, 2017), ora como pouco importante (BRENNAN, 2016), deixa evidente a dimensão eclipsada em Anarquia Estado e Utopia e que Nozick assinala em sua autocrítica: a preocupação com o indivíduo tem conexão indissociável com a expressão social. Um dos problemas da teoria apresentada em Anarquia Estado e Utopia, para Nozick (1989), seria que a concepção libertária formulada havia considerado apenas o propósito do Estado e não o seu sentido; portanto, teria sido uma concepção limitante.
Retomando, assim, a ideia de inviolabilidade do indivíduo, Nozick posteriormente nos provoca a refletir a impossibilidade de se pensar algo como a “inviolabilidade” de cada um(a) sem a reflexão sobre os laços sociais que tornam essas vidas possíveis. A reflexão do Nozick “tardio” aponta para a problemática terceira parte de seu texto, de se pensar a utopia como a união de várias utopias individuais. O melhor mundo imaginável para cada um de nós é diferente de um mundo pensado para nós. A ideia da união de vontades individuais presente na tradição libertariana, na qual a ideia de sociedade se distancia da possibilidade de cooperação (focando apenas na ideia de vantagens mútuas), desconsiderando algum tipo de vontade geral, sugere uma concepção de pessoas profundamente hostis, que têm no Estado e na sua capacidade de coerção a possibilidade de preservação.
Discutir o liberalismo e suas diferentes interpretações significa trazer efetividade para um dos ideais de maior importância do pensamento político moderno e contemporâneo. O texto de Nozick tem a clareza, a honestidade de intenção e a criatividade na reflexão filosófica aliadas ao rigor do pensamento analítico, que deixa claros os termos do debate. Sua coragem também se expressou na autocrítica que poucos filósofos sustentaram.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências
BRENNAN, Jason. Against Democracy. Princeton: Princeton University Press, 2016.
EDMUNDSON, William. John Rawls: Reticent Socialist. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.
GARGARELLA, Roberto. As teorias de justiça depois de Rawls:um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
MOURA, Julia.Avaliando a crítica de Nozick à uma teoria de justiça. In: BRESOLIN, Keberson; BARBOSA, Evandro (Org.). Temas de Filosofia Contemporânea. Caxias do Sul: Educs, 2017.
NAGEL, Thomas. Prefácio. In: NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopia. Philadelphia: Basic Books, 2013 [1974].
NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopia. Philadelphia: Basic Books, 1974.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
VAN PARIJS, Philippe. O que é uma Sociedade Justa? São Paulo: Ática, 1997.
[1] Doutora em Filosofia (UERJ), Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (UFPR). Contato: juliasmoura@gmail.com.
[2] Tratei essas críticas de forma mais detalhada em “Avaliando a crítica de Nozick à uma teoria de justiça” (MOURA, 2017).
[3] Aqui vale lembrar que Nozick também está em debate crítico com os anarcocapitalistas, assinalando que um Estado mínimo pode emergir sem a violação dos direitos individuais.
Referência imagética: Robert Nozick. Harvard University News Office. Encyclopædia Britannica Disponivel em <https://www.britannica.com/biography/Robert-Nozick#/media/1/421354/100529>. Acesso em 13 nov 2024.