Aurélio Oliveira[1]
20 de fevereiro de 2025
Quando iniciei a pesquisa da minha dissertação de mestrado, a ideia original era investigar como podia uma corrente de pensamento se dizer ao mesmo tempo conservadora e liberal. Parecia uma contradição em termos, correntes antagônicas de difícil conciliação. Mas bastaram poucos dias de imersão na bibliografia para compreender que se tratava de um tema clássico da área, uma aliança de longa data, quase inevitável no contexto brasileiro de hegemonia conservadora desde os primórdios do pensamento político pátrio. No entanto, em vez de me desanimar, essa perspectiva abriu portas para hipóteses e respostas ainda mais interessantes, ao meu ver.
O objeto principal de minha pesquisa era a obra publicada do pensador baiano Antonio Paim (1927-2021). O autor ainda estava vivo no começo da pesquisa, e morava numa casa para idosos em São Paulo. Sua trajetória era particularmente interessante: foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na juventude, estudou filosofia e concluiu seu doutoramento em marxismo-leninismo na União Soviética – chegou até a ser preso político do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no Estado Novo. Na década de 1950, após a publicação do Relatório Kruschev em 1956, rompeu com o marxismo em definitivo e colocou-se a estudar o kantismo, tomando contato com autores conservadores importantes como Alceu Amoroso Lima, Paulo Mercadante e Miguel Reale.
A convite deste último, dedicou-se a estudar a história do pensamento brasileiro no século anterior, iniciando por figuras como Tobias Barreto e Farias Brito, e a partir desses estudos ingressou no quadro do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e passou a publicar na Revista Brasileira de Filosofia (RBF), o periódico do instituto, cujo presidente era Reale, então reitor da Universidade de São Paulo (USP). O IBF fazia parte de uma iniciativa de filósofos brasileiros, inspirados por Benedetto Croce, de formação de institutos extra-acadêmicos, diante uma “crise universitária” identificada por esses autores. Tratava-se, como descobri ao longo da pesquisa, de uma disputa pela hegemonia na filosofia paulista, até então sob controle dos catedráticos das faculdades de Direito e das cadeiras de Filosofia do Direito, ameaçada pela recém-instituída Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL/USP) da USP, hoje Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP).
A formação de filósofos especializados pela FFCL colocava em xeque as práticas filosóficas paulistas, muito dependentes ainda da filosofia kantiana e católica, e criava um sentimento de dominação positivista e marxista na filosofia entre os “filosofantes” – termo que designava a filosofia não especializada que caracterizava os membros do IBF. A disputa política entre liberalismo, conservadorismo e catolicismo, de um lado, e marxismo, socialismo e outras correntes, à época vanguardistas, de outro, era traduzida para o campo filosófico através dessa dinâmica entre universidades e institutos extra-universitários. Assim, um instituto relativamente obscuro como o IBF pode ser importante para revelar alguns episódios interessantes na história do pensamento político conservador e liberal no Brasil.
A trajetória de Paim, que se inicia na militância comunista e se encerra no neoconservadorismo, não é um fenômeno exclusivo dele, mas também não é generalizado. Seu orientando Ricardo Vélez Rodriguez também começou os estudos como um militante trotskista de extrema esquerda na Colômbia e chegou a ser ministro do governo Jair Bolsonaro em 2019, hoje escrevendo principalmente sobre as ameaças das políticas e do pensamento de esquerda nos países latinos. Reale, por outro lado, havia sido Secretário Nacional de Doutrina da Ação Integralista Brasileira, e tornou-se um autor do conservadorismo liberal, tal como os dois outros mencionados. Esta “migração” de pensadores ao longo do século passado merece maior aprofundamento, e isso só será possível se considerarmos não apenas a biografia pessoal deles, mas também a trajetória dos círculos intelectuais pelos quais transitaram, somada a um estudo prosopográfico desses autores e dos periódicos nos quais publicavam, por exemplo.
O conservadorismo liberal do século passado, de quando Paim e Reale publicavam os primeiros artigos sobre o tema na RBF, era ainda bastante tributário do conservadorismo católico de autores como Alceu Amoroso Lima, Farias Brito e Jackson Figueiredo, para citar alguns. A experiência política nacional entre as décadas de 1950 e 1980 também não favorecia o liberalismo econômico e político em particular, de modo que Paim, naquele período, se dedicou principalmente ao estudo de obras de autores nacionais com uma historiografia própria que era baseada numa premissa de Reale de que os valores da cultura judaico-cristã teriam adquirido, historicamente, uma validade universal na sociedade ocidental, por terem se provados os mais aptos à análise filosófica e política adequada.
Essa relação com os conservadores tradicionais ligados ao catolicismo enfraquece a partir do final dos anos 1970 e nos anos 1980, quando Paim passa a ser mais diretamente associado a uma corrente neoconservadora do pensamento político, tributária principalmente da obra de Irving Kristol e de outros autores americanos cujo objetivo principal era a renovação das bases filosóficas do pensamento conservador através da reignição do liberalismo político. O neoconservadorismo era visto por Paim – e por Kristol – como uma força renovadora do conservadorismo, capaz de se comunicar mais claramente com o público geral atraído por sentimentos moralistas e religiosos pelo conservadorismo tradicional, mas que reproduziam uma lógica vista como ultrapassada, necessitando dessa reconexão com o liberalismo visto como força política e econômica capaz de superar as crises do final do século XX.
Isso tem reflexos inclusive nas formas de publicação escolhidas por Paim para as suas obras, que eram em sua maioria livros de filosofia especializada e artigos para revistas de filosofia ou jornais como O Estado de S. Paulo, mas com um público-alvo mais específico, instruído em alguma medida em filosofia. A partir dos anos 1980, seus artigos em jornais se tornam mais acessíveis, além de começar um esforço de publicação de obras com linguagem mais simples, defesas mais abertas do liberalismo e o oferecimento de cursos de graduação e pós-graduação a distância que, alguns anos mais tarde, se tornariam cursos oferecidos gratuitamente pela internet. Essa mudança na forma de divulgação de seu pensamento reflete tanto as propostas de Kristol para a expansão do neoconservadorismo quanto uma mudança de projeto político de Paim, que abandonava sua postura de suposta “neutralidade” na filosofia em prol da tentativa de impacto político direto.
Ao mesmo tempo, Paim tornou-se assessor político do então senador Jorge Bornhausen (PFL-SC), chegando a ministrar aulas de política para o staff do congressista e a auxiliar na formulação de projetos para a Assembleia Constituinte ao final da década de 1980. Nos anos 1990 e no começo dos anos 2000, passa a falar mais diretamente contra o marxismo, as políticas de igualdade, os movimentos por direitos civis e, finalmente, a criticar o Partido dos Trabalhadores (PT). Nos anos 2000, suas publicações, inclusive, tomam um tom mais diretamente político, tratando de política institucional, urbanismo, orçamento do governo etc., um contraste significativo aos seus ensaios sobre filosofia nacional do começo da carreira.
De modo geral, a trajetória pessoal e intelectual de Antonio Paim reflete as complexidades do estudo historiográfico em pensamento político, pois é acidentada, influenciada por outros pensadores e pelo contexto político de cada época em que publica, altera-se ao longo do tempo enquanto preserva algumas de suas características fundamentais. A caminhada de Paim do marxismo para o neoconservadorismo coloca em questão a perspectiva de que os movimentos conservadores do século XXI representam uma nova direita, oferecendo raízes profundas para o pensamento neoconservador, que definitivamente não surgiram nem recentemente nem de repente, mas através de um esforço coletivo, intelectual e material por um número significativo de grupos organizados e pensadores, políticos e atores políticos variados.
Este estudo serve para explicitar a importância de se estudar, em história do pensamento político, não apenas a obra publicada de um autor, mas também a sua trajetória pessoal e intelectual, os periódicos nos quais publicava, os círculos intelectuais que frequentava e aqueles com os quais antagonizava, as mudanças e permanências em seu pensamento ao longo do tempo, tudo isso enquanto se considera a dimensão intelectual e a dimensão técnica da produção intelectual. Há uma mistura sensível entre a dimensão filosófica e a dimensão material, entre o discurso e a práxis política, que não pode nunca ser ignorada. Apesar de ser relativamente desconhecido para o público geral, Antonio Paim é um excelente exemplo disso tudo, e sua obra, bem como a de seus consortes, merece ser estudada em profundidade se quisermos oferecer respostas satisfatórias a problemas contemporâneos na área de teoria e pensamento político.
Este artigo é uma breve apresentação dos resultados da pesquisa de mestrado do autor, cujo texto completo pode ser encontrado em https://acervus.unicamp.br/Busca/Download?codigoArquivo=573279&tipoMidia=0, com o título Antonio Paim e a gênese de um neoconservadorismo brasileiro: a história de uma ideia.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do IFCH/Unicamp, mestre em Ciência Política pelo mesmo instituto, advogado, pesquisador no Laboratório de Pensamento Político (PePol/Unicamp).
Fonte imagética: Algumas obras de Antonio Paim.