Luis Gustavo Teixeira da Silva1
12 de março de 2025
Há pouco mais de vinte anos, o Brasil iniciou um processo de discussão profundo, tenso e prolongado acerca da possibilidade de interrupção voluntária da gestação de fetos diagnosticados com anencefalia, que se configura em uma má-formação congênita no tubo neural, provocando morte cerebral, verificável nas primeiras semanas da gestação. O tema se tornou assunto público a partir dos avanços da medicina fetal, assim como pela inexistência de terapias viáveis para reversão do quadro clínico.
Neste cenário, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde e a ANIS – Instituto de Bioética elaboraram a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), nº 54 de 2004, para requerer o direito ao aborto nesses casos, em ação movida no Supremo Tribunal Federal (STF).
Em 2004, o Ministro Marco Aurélio Mello do STF, relator da ADPF nº 54, expediu uma liminar que reconheceu o direito da gestante a interromper a gestação de fetos anencéfalos, além de suspender processos criminais relacionados ao assunto. Isto com base nos danos psicológicos e nos riscos à saúde das mulheres devido à gestação de um feto inviável. Em outubro do mesmo ano, os ministros do STF decidiram cassar tal liminar. Em 2008, o STF realizou Audiência Pública, dividida em quatro sessões, para debater a questão. Nesta ocasião, participaram entidades e especialistas da área científica e da saúde, movimentos sociais, entidades religiosas e representantes políticos do Poder Legislativo e Executivo. Em abril de 2012, por oito votos a dois, os/as ministros/as do STF acompanharam o voto do relator, Ministro Marco Aurélio Mello, pela autorização do aborto em casos de anencefalia.
No Brasil, o Código Penal de 1940, promulgado pelo Decreto-Lei n° 2.848, enquadrou o aborto entre os crimes contra a pessoa e a vida, com punições ao aborto provocado pela gestante e por terceiros. As exceções de punibilidade para esta lei são: (i.) quando não há outro meio para salvar a vida da gestante e (ii.) quando a gestação é resultado de estupro. Portanto, a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos pelo STF se converteu em ação histórica, até os dias atuais, ao incorporar outra exceção de punibilidade à legislação.
Na literatura acadêmica, há um conjunto relativamente amplo de estudos acerca do trâmite da petição no Poder Judiciário, das sessões e das audiências públicas e dos votos dos magistrados. No entanto, praticamente inexistiam estudos sistemáticos sobre a forma como o assunto repercutiu no Poder Legislativo. Neste sentido, nosso propósito foi analisar a forma como o aborto por anencefalia foi discutido na Câmara dos Deputados, entre os anos de 2004 e 2013.
A pesquisa se baseou na análise dos pronunciamentos sobre a matéria, proferidos pelos parlamentares que compõem a Câmara dos Deputados do Brasil entre os anos de 2004 e 2013, contabilizando 80 pronunciamentos.Esse conjunto representa todas as manifestações de fala realizadas em plenário durante a tramitação da ADPF n° 54 no Supremo Tribunal Federal. A pergunta que orientou a redação desta pesquisa foi: “quais as posições e argumentos mobilizados pelos parlamentares para se pronunciarem sobre o aborto por anencefalia?”.
Após o processo de seleção, todos os pronunciamentos foram lidos e analisados. Para cada discurso, uma ficha no software estatístico Sphinx Léxica foi preenchida, com 32 variáveis de classificação. A utilização deste instrumento foi de suma importância para a sistematização das informações, realizada em três etapas: 1º) Documentação nos Diários da Câmara dos Deputados; 2º) Identificação do parlamentar; e 3º) Conteúdo do pronunciamento.
Os resultados da investigação demonstraram que o cenário identificado no debate sobre o aborto por anencefalia é confluente com a discussão geral sobre o aborto, em que é possível constatar, a partir de 2003, a elevação exponencial de perspectivas regressivas e (ultra)conservadoras na Câmara dos Deputados e, na mesma proporção, a diminuição significativa de posições a favor da ampliação do aborto legal. Resultados apresentados por Luna (2014), Machado (2017) e Miguel et al. (2017) também apontam para essa direção.
Com base nos dados, é possível estabelecer uma correlação entre a ascensão de posições ultraconservadoras na Câmara dos Deputados sobre o aborto de maneira geral a partir da discussão sobre o aborto por anencefalia. Essa correlação se sustenta em dois pilares de compreensão. O primeiro deles advém da ascensão das manifestações em plenário e da conotação nos discursos, em que o aborto nos casos de fetos anencéfalos representaria o início de um processo para a descriminalização plena do aborto. A antropóloga Débora Diniz (2003) sintetizou essa narrativa a partir da premissa da ladeira escorregadia, quer dizer, a percepção de que a maior tolerância conduz a opinião pública à flexibilização moral, logo, culminando necessariamente na imoralidade. Para os adeptos da premissa da ladeira escorregadia, a atitude ultraconservadora deve ser sempre a resposta, apesar dos fatos novos criados pelo desenvolvimento científico, como o diagnóstico da anencefalia nas fases iniciais da gestação (Diniz, 2003;Penna, 2005).
O segundo eixo, advindo da premissa de ladeira escorregadia, diz respeito à mobilização política ocorrida após a liminar sobre os anencéfalos, com o intuito de frear o avanço dessa agenda e também imprimir recuos na legislação vigente. Esse eixo está baseado na recorrente convocação nas falas para a mobilização daqueles que defendem a “vida”. A mobilização destes/as deputados/as institucionalizou-se, após 2005, por meio da formação de associações suprapartidárias, como as Frentes Parlamentares de oposição ao aborto.
A conjunção dessas forças políticas no cenário institucional resultou na criação, em 2006, do Movimento Nacional Brasil sem Aborto, cuja finalidade é promover maior coordenação nas ações e mobilizar a população contra proposições políticas para flexibilizar a legislação sobre o aborto. Exemplo disso foi a realização da I Marcha em Defesa da Vida contra a legalização do aborto em 2007, na cidade de Brasília, a qual passou a ocorrer em quase todos os anos subsequentes à sua criação.
Não é razoável supor que esta reação na Câmara dos Deputados tenha ocorrido exclusivamente em virtude do aborto por anencefalia, houve outras circunstâncias que estimularam esse quadro, entre elas: 1) a norma técnica do Ministério da Saúde, de 2005, intitulada Atenção Humanizada ao Abortamento, cujo propósito era retirar a exigência do boletim de ocorrência e laudo do médico para comprovação da violência sexual para realização do aborto; 2) a criação da comissão tripartite (composta por integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo e pela sociedade civil), instalada a partir da recomendação da 1º Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004, e que tinha como propósito rever a legislação punitiva contra as mulheres que tenham se submetido a abortos ilegais; e 3) a tramitação do Projeto de Lei nº 1135/91, de autoria do deputado Eduardo Jorge (PT-SP), na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) e na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), e cujo objetivo era descriminalizar o aborto).
Apesar da relevância desses acontecimentos, consideramos que o aborto por anencefalia foi, em grande medida, a principal discussão sobre a mudança na legislação brasileira, tendo em vista que os demais casos, com exceção da norma técnica, se conformaram em espaços de deliberação, cujo peso de grupos ultraconservadores era considerável. Por esses motivos, é plausível aferir uma correlação significativa entre sua inserção na agenda do Poder Judiciário e a ascensão de posições e mobilizações regressivas na Câmara dos Deputados e na sociedade sobre o aborto.
A análise dos argumentos mobilizados pelos/as parlamentares para referendar suas respectivas posições revelou resultados inesperados. Isto dito, tendo em vista que a construção de seus argumentos revelou uma similaridade com o debate nacional recente, sobretudo acerca da pandemia e do Governo Bolsonaro (2019-2021).
A composição argumentativa se estruturou em torno da defesa, de maneira irredutível, de determinados pressupostos, nesse caso a inviolabilidade do direito à vida. Para efetuar essa defesa, verificou-se a utilização de recursos retóricos que envolveram o estabelecimento de pânico moral, por exemplo: o paralelo entre o aborto de fetos inviáveis e o aborto de crianças deficientes ou a descriminalização plena do aborto. A mobilização de teorias conspiratórias teve por função respaldar esse pânico moral, especialmente o apelo de organizações internacionais e cientistas em promover o aborto, com o intuito, de acordo com os pronunciamentos, de controlar a natalidade nos países periféricos, para impedir seu desenvolvimento. Além disso, um conjunto significativo de pronunciamentos empregou como fundamento a deslegitimação de instituições, como o Poder Judiciário, ou de procedimentos e comunidades, como a ciência, quando estes divergem de seu entendimento sobre algum assunto, neste caso específico o aborto por anencefalia. Do mesmo modo, também se constatou a utilização, por um lado, da opinião de médicos para negar o consenso científico quanto à inexistência de terapias efetivas para reverter a anencefalia e, por outro lado, a mobilização de casos clínicos inconclusos, isto é, crianças que supostamente seriam portadoras de anencefalia e sobreviveram por alguns anos, para questionar o consenso de que a anencefalia é incompatível com a sobrevida do feto após o parto, e fomentar o descrédito às instituições, procedimentos e comunidade científica.
Obviamente, o volume do material analisado é restrito e circunscrito ao aborto de fetos anencéfalos, mas as evidências apresentadas permitem inferir, ou ao menos abrir a discussão, para refletir que as bases de um discurso regressivo e irredutível, conspiratório e negacionista em relação à ciência possuem raízes mais consolidadas no debate público brasileiro, cujo epifenômeno foi o Governo de Jair Bolsonaro.
Referências
DINIZ, Debora. (2003), “Antecipação terapêutica do aborto: uma releitura bioética do aborto por anomalia fetal”, in D. Diniz; D.C. Ribeiro. (org.), Aborto por anomalia fetal Brasília, Letras Livres.
LUNA, Naara. (2014), “Aborto no Congresso Nacional: o enfrentamento de atores religiosos e feministas em um Estado laico”. Revista Brasileira Ciência Política, 14:83-109.
MACHADO, Lia Zanotta. (2017), “O aborto como direito e o aborto como crime: o retrocesso neoconservador”.Cadernos Pagu, 50, e17504.
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia; MARIANO, Rayani. (2017), “O direito ao aborto no debate legislativo brasileiro: a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados”.Opinião Pública, 23, 1:230-260.
PENNA, Maria Lúcia Fernandes. (2005), “Anencefalia e morte cerebral (neurológica)”.Physis: Revista de Saúde Coletiva, 15, 1:95-106.
- Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), no curso de Ciências Sociais – Ciência Política. Pesquisador associado ao CEBRAP, ao projeto temático “Pluralismo religioso e diversidades no Brasil contemporâneo”. E-mail: gustavoteixeira2519@gmail.com. ↩︎
Legenda: Ministro Marco Aurélio Mello, relator da ADPF nº 54. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=Ministro+Marco+Aur%C3%A9lio+Mello&title=Special:MediaSearch&type=image