Luan Homem Belomo[1]
10 de abril de 2025
As relações civis-militares representam um campo complexo que examina a interação entre as forças armadas e as autoridades civis de um Estado, aspecto fundamental para a consolidação e a manutenção da democracia. No contexto da América Latina, especificamente, no Brasil e no Chile, essa relação carrega o peso de transições democráticas marcadas por pactos e pela persistência de legados autoritários. No cenário atual, ambos os países enfrentam desafios distintos, mas interconectados, que evidenciam a dificuldade de superar completamente o passado militar e de estabelecer um controle civil que seja robusto e inequívoco sobre as Forças Armadas.
No Chile, passados 50 anos do golpe civil-militar de 1973 liderado pelo General Augusto Pinochet contra o governo democrático de Salvador Allende, as heranças da ditadura continuam a assombrar o país. A dificuldade em substituir uma Constituição criada durante o governo Pinochet e o ressurgimento de forças de extrema-direita e do negacionismo demonstram a persistência de um passado mal resolvido. A rejeição de uma nova Constituição em 2022 simboliza a manutenção de normas estabelecidas durante o regime militar, dificultando o avanço em questões sociais e o completo afastamento dos vestígios da ditadura. Paralelamente, outro setor da sociedade chilena ainda busca justiça para as vítimas da ditadura, ecoando o grito de “Ni perdón, ni olvido!” (Cardoso, 2023).
Já n o Brasil, em 2024, o marco dos 60 anos do golpe civil-militar de 1964 também revelou um campo de memória ainda tensionado e em disputa. A decisão do presidente Lula de não rememorar o golpe contrastou com o debate público sobre a necessidade de responsabilização pelos crimes da ditadura, com manifestações clamando por “sem anistia” e “nunca mais”. Os militares continuam a atuar como intérpretes da memória pública, buscando garantir sua própria impunidade e influenciar a narrativa do passado (Moraes, 2024).
Essa postura se manifesta na discussão sobre a revisão da Lei de Anistia e na percepção d a falta de responsabilização efetiva dos militares envolvidos em eventos recentes, como os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Mais recentemente, investigações da Polícia Federal revelaram tentativas de golpe de Estado durante o governo Bolsonaro, com a participação de oficiais das Forças Armadas. Trata-se de mais uma demonstração da persistente ingerência militar na política e uma ameaça ao controle civil sobre as forças armadas (Galisi, 2024).
Assim como no Chile, a redemocratização no Brasil parece ter deixado lacunas que permitem a persistência de uma cultura política onde a intervenção militar, ainda que de forma latente ou em tentativas frustradas, não foi completamente extinta. A busca por estabelecer um controle civil objetivo e por garantir a profissionalização militar, conforme apontada por Huntington (1996), alinhada aos valores democráticos, continua sendo um desafio central nos dois países.
É sobre esse tema que se dedica o artigo “Democracia e relações civis-militares do Brasil e do Chile: reflexos de duas transições pactuadas” (Belomo, 2024), publicado na Revista Aurora. O estudo aborda as particularidades das transições democráticas no Brasil e no Chile, revelando como as escolhas feitas no passado continuam a ecoar no cenário político atual. Ao comparar as trajetórias dos dois países, o artigo procura desvendar os legados autoritários que moldaram as relações entre civis e militares, oferecendo uma perspectiva mais ampla para interpretarmos os desafios democráticos contemporâneos.
A transição pactuada: uma herança compartilhada?
O artigo destaca que tanto o Brasil quanto o Chile trilharam o caminho de uma “transição pactuada” para a democracia. Diferentemente de transições marcadas por rupturas abruptas ou colapsos de regime, as transições pactuadas envolvem negociações e acordos entre as elites do regime autoritário e as forças da oposição. Essa característica, comum aos processos de redemocratização do Brasil e do Chile, teve um impacto duradouro nas relações civis-militares.
No Brasil, a transição ocorreu de forma lenta, gradual e segura, um processo em que os militares mantiveram considerável controle e influência. Essa tutela se manifestou na preservação de mecanismos que garantiam a capacidade de intervenção política das Forças Armadas, inclusive na definição de seu papel constitucional.
Já no Chile, a redemocratização iniciou com um plebiscito contrário ao regime de Pinochet. No entanto, mesmo com a derrota, o regime conseguiu articular um cenário que preservou interesses militares através de reformas constitucionais e “enclaves autoritários”, dificultando reformas mais profundas e mantendo a autonomia das Forças Armadas.
As consequências no presente: Brasil e Chile em perspectiva
O artigo explora como essas diferentes experiências de transições pactuadas reverberaram nas relações civis-militares nas décadas seguintes, entre 1984 e 2004 no Brasil, e entre 1990 e 2010 no Chile. No Brasil, a Constituição de 1988, embora democrática, manteve uma ampla definição do papel das Forças Armadas, incluindo a garantia da lei e da ordem, de acordo com o artigo 142. Essa prerrogativa tem sido fonte de debates e tensões no cenário político contemporâneo, especialmente em momentos de instabilidade. O artigo relembra que, mesmo com avanços como a criação do Ministério da Defesa, a influência militar persiste. Curiosamente, os governos Lula I e II demonstraram uma maior valorização dos militares, inclusive com aumento de investimentos no setor. A questão das violações de direitos humanos durante a ditadura foi abordada tardia e limitadamente, com a criação da Comissão Nacional da Verdade apenas em 2011, durante a gestão de Dilma Rousseff.
No Chile, a Constituição de 1980 também conferiu amplos poderes às Forças Armadas, vinculando-as à “segurança nacional”. No entanto, o Chile demonstrou maior proatividade em lidar com o legado da ditadura, processando e prendendo ex-militares envolvidos em violações de direitos humanos. A prisão de Pinochet em 1998 marcou um ponto de inflexão, enfraquecendo o poder político dos militares e intensificando a pressão por justiça. Houve também um avanço significativo no controle civil sobre a política de defesa.
Entender o passado para construir o futuro
A análise comparativa revela que, apesar de ambos os países terem experimentado transições pactuadas, o Chile demonstrou avanços mais significativos no controle civil sobre os militares e na responsabilização por violações de direitos humanos. O Brasil, por sua vez, ainda enfrenta desafios consideravelmente maiores para superar o legado autoritário e consolidar uma relação civil-militar mais democrática.
Apesar disso, o recente fortalecimento de discursos de extrema direita cria um novo espaço político que pode obstruir qualquer avanço nesse sentido, tanto no Chile quanto no Brasil. Embora o Chile tenha colocado mais em evidência esse debate, tais progressos não estão assegurados. O artigo conclui que, para um controle civil mais efetivo, é imprescindível revisar o papel constitucional das forças armadas. Essa medida, aliada a um enfrentamento mais robusto do legado da ditadura, é fundamental para o fortalecimento da democracia em ambos os países.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências
BELOMO, Luan. Democracia e relações civis-militares do Brasil e do Chile: reflexos de duas transições pactuadas. Revista Aurora, Marília, SP, v. 17, p. e024006, 2024. DOI: 10.36311/1982-8004.2024.v17.e024006. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/aurora/article/view/14510. Acesso em: 24 mar. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: ANC, 1988.
CARDOSO, Rafael. Chile, 50 anos do golpe: a luta contra um passado mal resolvido. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 11 set. 2023. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-09/chile-50-anos-do-golpe-luta-contra-um-passado-mal-resolvido>. Acesso em: 24 mar. 2025.
CHILE. Constitución Política de la República de Chile. Santiago, 1980. Disponível em: <https://www.camara.cl/camara/leyes_normas.aspx>. Acesso em: 24 mar. 2025.
GALISI, Juliano. ‘Kids pretos’ e minuta golpista: as tentativas de golpe envolvendo militares no governo Bolsonaro. Estadão, São Paulo, 19 set. 2024. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/kids-pretos-minuta-golpista-tentativas-golpe-envolvendo-militares-governo-jair-bolsonaro-nprp/>. Acesso em: 24 mar. 2025.
HUNTINGTON, Samuel. O soldado e o Estado: teoria e política das Relações entre Civis e Militares. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1996.
MORAES, Gabriel. Os sessenta anos do golpe civil-militar de1964 e a memória pública. Le monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 3 abr. 2024. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/sessenta-anos-golpe-civil-militar-1964/>. Acesso em: 24 mar. 2025.
[1] Mestre em Sociologia e Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Especialista em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Fonte imagética: Chile 1973. Coleção Evandro Teixeira. Instituto Moreira Salles, 2023. Disponível em: <https://ims.com.br/wp-content/uploads/2023/02/09-041CX10V02_0068_1920x1280px-1.jpg>. Acesso em: 24 mar. 2025.