Isabela Serra[1]
18 de julho de 2025[2]
Cinco anos após a declaração da pandemia de COVID-19, os Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovaram na 78ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), realizada no último 19 de maio, um acordo internacional que tem por objetivo prevenir, preparar-se e responder às futuras pandemias. A construção do texto deste instrumento demandou três anos de negociação, em processo inaugurado justamente em decorrência dos impactos da covid-19 e, mais precisamente, da falta de cooperação internacional para enfrentá-la. À época, assistimos a consolidação de um monopólio de produção de vacinas, bem como a concentração das doses pelos países desenvolvidos (Sousa e Buss, 2021).
Agora, com a aprovação de um novo instrumento específico, significaria afirmar que estaremos melhor preparados para enfrentar as próximas pandemias?
A análise realizada pelo GT Acordo sobre Pandemias USP/Fiocruz (Ventura et al, 2025) pontua que tal aprovação foi uma vitória porque o instrumento avança em alguns temas, principalmente por consagrar a equidade como um elemento central no enfrentamento das pandemias. Representa uma vitória, sobretudo, para o multilateralismo, pensando no contexto de avanço da extrema direita na arena internacional, que contestou desde o começo, não só essa iniciativa, mas a OMS, de forma geral – incluindo nisso a recente retirada dos Estados Unidos da agência.
Ao mesmo tempo, o Grupo de Trabalho também enfatiza a necessidade de análise do texto final e do próprio processo negociador ao longo das sessões do Órgão Intergovernamental de Negociação (OIN). A pesquisa de Mestrado que desenvolvo sob orientação da Prof.ª Dr.ª Deisy Ventura, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), tem como objetivo compreender como ocorreu a inclusão da sociedade civil nesse processo a partir da perspectiva dos representantes brasileiros de organizações não-governamentais internacionais e nacionais.
Nessa direção, com o propósito de analisar criticamente o percurso da negociação do acordo sobre pandemias, destaco três conceitos fundamentais.
Um deles é o enquadramento (McInnes e Lee, 2012 apud Nunes, 2023), que refere-se a um conjunto de interesses, pressupostos, pontos de vista, normas que influenciam o debate sobre determinadas questões – adquirindo maior relevância quando falam, sobretudo, a partir da perspectiva neoliberal. O enquadramento é, dessa forma, um instrumento analítico que auxilia na compreensão de como questões são conduzidas, ao estabelecer “o que existe e o que deve existir, ou seja, quais aspectos da realidade são evidentes ou prioritários, bem como quais direções a realidade deve ser encaminhada” (Nunes, 2023, p. 6).
Com relação ao acordo sobre pandemias, o enquadramento apoia a decodificação de certas narrativas presentes nas negociações, nos convidando a realizar algumas perguntas.Por exemplo: de quem/qual país vieram certas propostas? E que interesses agenciam?
Para demonstrar a importância do enquadramento apresento duas situações: a primeira delas refere-se à participação social, ou melhor, à inclusão parcial da sociedade civil no OIN. O documento “Modalidade de Engajamento das Partes Interessadas”[3] determinava quais organizações teriam direito de fala – com discursos de até dois minutos – e escuta nas sessões formais. Nas sessões informais, onde se realizavam, de fato, a discussão dos artigos e a redação do texto, nenhuma das organizações — nem mesmo aquelas que mantêm Relações Oficiais com a OMS — possuíam direito de fala e escuta. Elas não tiveram oportunidade, portanto, de conhecer e disputar as decisões que estavam sendo tomadas de “portas fechadas” pelos representantes dos países. Houve, nesse sentido, uma desqualificação da atividade dessas entidades.
Por que impedir a participação desses entes? Qual a validade de um instrumento que não permite a entrada da sociedade civil – sobretudo de organizações que mantém compromisso com a equidade – e que não incorpora suas demandas?
Ao mesmo tempo, outras fundações e instituições (como as filantrópicas e as farmacêuticas), consideradas pelo OIN como também pertencentes ao conjunto da sociedade civil, estavam, no entanto, representadas nas sessões “fechadas”, já que seus interesses foram abertamente defendidos pelos países desenvolvidos (TWN, 2024a; 2025c).
E quais são esses interesses e como eles se expressam nas reuniões de negociação? Nesse sentido, a discussão em torno do artigo 12 sobre a criação do sistema de Acesso a Patógenos e Compartilhamento de Benefícios (PABS, na sigla em inglês) é crucial, configurando-se como nossa segunda situação analisada.
Ainda em construção[4], a proposta PABS visa garantir o compartilhamento do material genético de patógenos com potencial pandêmico de forma rápida, sistemática e oportuna, ao mesmo tempo em que prevê o acesso de produtos relacionados à pandemia e outros benefícios, sejam eles monetários ou não-monetários, baseados no risco e necessidades em saúde pública. É um sistema que garantiria o acesso justo dos patógenos e permitiria a distribuição e partilha de terapias de saúde de forma equilibrada, e em respeito aos princípios de equidade (TWN, 2024a; 2025b).
Em síntese, os fabricantes estariam obrigados a compensar com algum benefício os países que compartilharam material genético, sobretudo, quando, a partir dele, foi possível a produção de algum insumo fundamental para o enfrentamento da pandemia. No entanto, a indústria farmacêutica se posicionou de forma contrária à proposta da obrigatoriedade de oferta de tais benefícios, sob a justificativa de que medidas “rigorosas” de acesso aos dados de patógenos seria um empecilho à Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) (HPW, 2024).
À época das negociações, os países em desenvolvimento e parte da sociedade civil propunham a oferta de 20% ou mais da produção de vacinas, insumos e terapias relacionados à pandemia como contrapartida pelo compartilhamento do material patogênico. No entanto, como resultado da pressão do setor da indústria farmacêutica e dos países do Norte global, principalmente da União Europeia, estabeleceu-se uma meta de até 20%, com 10% fixo[5]. Os países centrais pressionaram para manter o compartilhamento de patógenos sem regras, sem supervisão e sem qualquer contrapartida. Com isso, o que se acompanha a partir das negociações é a diluição, fomentada principalmente pelo G7 e pelo Bureau[6] do OIN, dos compromissos com a equidade no texto do acordo (TWN 2024b; 2025a).
Esse cenário nos leva a outro conceito importante: o da negligência, que vai além de uma noção de invisibilidade e silenciamento sobre certas questões em saúde. Na verdade, a negligência (Nunes, 2023) constitui um processo político que pode até reconhecer um problema de saúde, porém, ao mesmo tempo, subestima ou ignora de forma intencional elementos e condições que ajudariam no seu enfrentamento.
Apesar da COVID-19 ter servido de motivo principal para iniciar uma discussão sobre a adoção de estratégias mais eficazes de preparação e resposta a pandemias, essa própria discussão, ao decorrer das negociações, foi esvaziada e negligenciada. A resistência dos países desenvolvidos em assumir compromissos com equidade e a participação limitada da sociedade civil na arena de discussões se apresentaram como uma combinação negligente e desfavorável para a construção desse novo instrumento. Ao que aparenta, pelo texto final – com linguagem que suaviza, principalmente, os compromissos dos países ricos – os problemas ocasionados pela covid-19 foram esquecidos.
Como complemento ao enquadramento e à negligência, a problematização, um termo foucaultiano recuperado por Fassin (2007), também é um conceito chave para contextualizar as negociações a partir de questões que permeiam a saúde global, um campo em permanente disputa.A problematização revela, nesse sentido, a construção histórica de um problema, pois “envolve relações entre a história e a memória, poder e conhecimento, verdade e desconfiança, iniquidades e violência” (Fassin, 2007, p. XXI). Em outras palavras, não seria possível analisar qualquer questão descolada dessa produção social.
No caso, as negociações estão inseridas na dinâmica da saúde global, que por sua vez é também transformada pelo capitalismo. Isso significa dizer que parte dos atores da saúde global, se alinham à ideia de redução das funções sociais do Estado, da desvalorização de sistemas de proteção social e, consequentemente, da flexibilização da noção da saúde como direito e também como bem público, tornando-se cúmplice desse processo de esvaziamento da cooperação, da solidariedade e da universalidade em saúde (Nunes, 2023, p.3). Nesses termos, procura-se melhorar a saúde da população mundial por meio do “trabalho em conjunto e do cumprimento voluntário das regras do sistema capitalista global” (Krugman, 2024, p. 38 – tradução nossa). A saúde global, portanto, é também “um local de reprodução de lógicas de exclusão e negligência” que “reflete estruturas e relações políticas globais que promovem a desigualdade, a vulnerabilidade e a desvantagem de alguns grupos e regiões” (Nunes e Pimenta, 2016).
Apesar de discursos enfatizarem, por vezes, o compromisso com equidade e pautarem a saúde como valor filosófico compartilhado, para Kerouedan (2016, p. 64), os que “tomam decisões no âmbito da saúde mundial não parecem em realidade atingidos pelo estado de saúde de toda e qualquer pessoa desse mundo”, mas concentram “atenção política e seus recursos apenas em direção aos problemas comuns ou considerados mais estratégicos”.
E a partir dessa problematização do mundo, como escreve Fassin (2007, p. 272), entendemos que vivemos na “tensão entre o que está sendo protegido e o que está sendo abandonado, pelo que se luta e o que é dado como perdido”, em que “a segurança de uma minoria é reforçada e alimentada pela insegurança da maioria”. A forma como as questões durante as negociações foram direcionadas reforça a divisão dos ditos protegidos e os abandonados porque sustenta o status quo do poder global e o descompromisso com a equidade.
Pela problemática levantada e como analisam Ventura et al. (2025), o acordo final sobre pandemias mostrou-se frágil, ao incluir apenas parcialmente a sociedade civil e ao relativizar as necessidades reais dos países em desenvolvimento. Ainda distante de ser um instrumento internacional completo, abre-se, de todo modo, uma oportunidade para o fortalecimento e desenvolvimento de mecanismos de resposta e preparo às pandemias, sobretudo com a implementação a nível nacional futuramente.
Diante dessa oportunidade e como resposta ao suposto inabalável status quo global, defende-se a inquietude como valor, a qual pode ser traduzida como um sentimento de desconforto intelectual sensível às desigualdades, que corporifica a memória e trabalha para apreender o presente como um momento dentro da história, reconstruindo o passado para que não seja esquecido (Fassin, 2007).
Valendo-se do caso do acordo, sem inquietação, não há compromisso com a memória, sobretudo com relação aos anos de pandemia da COVID-19. E, sem memória, não haverá história, tampouco futuro.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
REFERÊNCIAS
VENTURA DFL; VILLARDI P; VIEGAS F; DALLARI PBA; VIEGAS LL; GALVÃO LA; CARMO EH; SERRA IL; REGES P; BUSS PM. Acordo sobre pandemias: sentido, avanços e limites. Grupo de Trabalho Acordo sobre Pandemias e Reforma do RSI – Fiocruz/USP, Nota Técnica n. 6, São Paulo/Rio de Janeiro, 19/05/2025. Disponível em <saudeglobal.org>. Acesso em: 19/05/2025.
FASSIN, Didier. When bodies remember: Experience and politics of AIDS in the post-apartheid. Berkeley: University of California Press, 2007.
NUNES, J. Reescrever saúde global. Saúde e Sociedade, v. 32, p. 1-12, 15 dez. 2023.
NUNES, João; PIMENTA, Denise Nacif. A epidemia de Zika e os limites da saúde global. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 98, p. 21–46, 2016.
KEROUEDAN, Dominique. Segurança ou insegurança da saúde mundial na África? Mais saúde parcial do que saúde global. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 98, p. 47–76, 2016.
KRUGMAN, D. Divorcing “global health” from “global health”: heuristics for the future of a social organization and an idea. Journal of Critical Public Health, v. 1, n. 1, p. 35–44, 9 abr. 2024.
TWN(2024a). INB Bureau further streamlines text on PABS, presenting weak benefit-sharing commitments. 14/09/2024. Disponível em: https://www.twn.my/title2/health.info/2024/hi240903.htm. Acesso em: 10/07/2025.
TWN(2024b). WHO: INB Bureau Pressures Global South to Align with G7. 06/12/2024. Disponível em: https://www.twn.my/title2/health.info/2024/hi241201.htm. Acesso em: 06/12/2024.
TWN (2025a). WHO Pandemic Agreement: A Win for Multilateralism, A Missed Opportunity for Public Health? 16/05/2025. Disponível em: https://www.twn.my/title2/health.info/2025/hi250502.htm Acesso em: 10/07/2025
TWN (2025b). WHO: Developing countries concerned over expert committee proposal to draft PABS text. 08/05/2025. Disponível em: https://www.twn.my/title2/health.info/2025/hi250501.htm. Acesso em: 10/07/2025.
SALUD POR DERECHO. Equitable access in pandemics: a system to distribute the benefits derived from access to pathogen materials and data. 06/11/2024. Disponível em:
https://saludporderecho.org/en/equitable-access-in-pandemics-a-system-to-distribute-the-benefits-derived-from-access-to-pathogen-materials-and-data/ Acesso em 10/02/2025.
(HPW) HEALTH POLICY WATCH. Pharma Describes Draft Pandemic Agreement as a ‘Step Backwards’.12/03/2024. Disponível em: https://healthpolicy-watch.news/pharma-describes-draft-pandemic-agreement-as-a-step-backwards/. Acesso em: 20/03/2024.
[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da USP e bolsista Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: isabela.serra@usp.br.
[2] Agradeço à Profª Deisy Ventura pela revisão atenta deste texto.
[3] Ver Modalidade de Engajamento das Partes Interessadas do OIN no site da OMS. Disponível em: ttps://apps.who.int/gb/inb/pdf_files/inb13/A_inb13_3-en.pdf
[4] Apesar de já ter sido aprovado o acordo, os Estados ainda deverão negociar até a próxima AMS, um anexo específico para o PABS, que irá detalhar o funcionamento do novo sistema.
[5] Uma simulação realizada pela “Salud por derecho” (2024) demonstrou que para todos os países atingirem a cobertura vacinal em prazos semelhantes (até 12 meses) seria necessária uma redistribuição de 35% das doses mensais.
[6] Bureau é a designação para a Mesa, composta por embaixadores representantes dos seis continentes, que conduz as negociações.