Tatiana Teixeira[1]
4 de outubro de 2025
Em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), o Boletim Lua Nova republica a análise em três partes sobre os discursos dos Presidentes Lula e Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas. O texto foi originalmente publicado em 29 de setembro de 2025, no site do OPEU.
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À semelhança do que aconteceu nas participações do presidente Donald Trump na AGNU durante seu primeiro mandato (2017-2021), o discurso se dirigiu, mormente, para sua fiel base eleitoral. Desta vez, também foi destinado à extrema direita dos países europeus, tomados por violentos protestos antimigração nas últimas semanas. Tendo ambos os públicos como seus principais alvos, o roteiro seguiu o estilo informal de um comício de campanha. Nele, o malabarismo retórico agrega elementos heroicos e apelativos de carga emocional e de fácil digestão, expressos por meio de um vocabulário simples e do tom acusatório, com ataques a tudo e a todos. Aqui, precisão e correção das informações ficam em plano algum.
Diferentemente de seu primeiro discurso na Casa em 2017, este ano, Trump não mais defendeu a democracia, nem manifestou seu apoio e colaboração às Nações Unidas. Em contrapartida, ofereceu uma liderança que ninguém mais quer: “Vim aqui hoje para oferecer a mão da liderança e da amizade americanas a qualquer nação nesta assembleia que esteja disposta a se juntar a nós na construção de um mundo mais seguro e próspero”. Silêncio no plenário. E, se no encerramento há o que parece ser um convite à cooperação global – “Vamos todos trabalhar juntos para construir um planeta brilhante e bonito, um planeta que todos nós compartilhamos, um planeta de paz e um mundo mais rico, melhor e mais bonito” –, está claro, ante o discurso em seu conjunto, que esse desejo de um “mundo melhor” não é para todos.
Na conversa com seu público doméstico, o presidente americano abusou da licença poética, ao falar da economia e da migração no país, assim como dos recentes percentuais de aprovação de sua gestão. “Tenho os maiores números de pesquisas que já tive. Em parte, isso se deve ao que fizemos na fronteira. Acho que a outra parte é o que fizemos na economia”, afirmou, confiante, embora não seja verdade. Desde o início do ano, a avaliação de seu desempenho segue tendência de queda, com aprovação em torno de 40%, e desaprovação, de 50%, conforme recentes pesquisas de diferentes instituições (CNN, Elliott Morris/Strenght in Numbers, Gallup, NYT, Real Clear Polling, Silver Bulletin).
Em relação à inflação, aos preços dos bens de consumo alimentício, ao custo do combustível, à conta de luz e a outros relevantes indicadores, a realidade vai no sentido oposto do declarado no trecho a seguir: “Sob minha liderança, os custos de energia caíram, os preços da gasolina caíram, os preços dos alimentos caíram. As taxas de hipoteca caíram, e a inflação foi derrotada […] O crescimento está a todo vapor. A indústria está em alta. O mercado de ações, como eu disse, está melhor do que nunca. […] E, principalmente, os salários dos trabalhadores estão subindo no ritmo mais rápido em mais de 60 anos”.
Trump também buscou agradar ao universo MAGA, abusando do autoelogio e da narrativa de grandeza dos Estados Unidos. “Os Estados Unidos são abençoados com a economia mais forte, as fronteiras mais fortes, o exército mais forte, as amizades mais fortes e o espírito mais forte de qualquer nação na face da Terra. Esta é, de fato, a Era de Ouro dos Estados Unidos. […] No cenário mundial, a América é respeitada novamente como nunca foi respeitada antes. […] Somos o país mais popular [tradução livre do original, hot] do mundo e não há outro país sequer perto”. Ou ainda neste trecho sobre os 250 anos da Independência, ignorando o momento presente no país: “Em homenagem a este aniversário tão importante, espero que todos os países que se inspiram em nosso exemplo se juntem a nós para renovar nosso compromisso, nossos valores e aqueles valores que tanto prezamos juntos. Defendamos a liberdade de expressão e a liberdade de expressão”. A plateia estava em silêncio nesses momentos e assim continuou.
Com números inventados, inflados, ou sem apoio em evidências, e fatos distorcidos, falsos, ou sem conexão com a realidade, o discurso de Trump na ONU não resiste à análise dos serviços de verificação de diferentes veículos da imprensa. [Deixo exemplos para futura conferência, em caso de interesse do leitor, ou leitora: ABC News, AP, CNN, Deutsche Welle, NYT, PolitiFact, The Guardian]. Uma parte disso fica na conta (talvez) da estratégia política, e a outra, na de uma mistura perigosa de megalomania, mitomania, falta de conhecimento e arrogância.
No plano internacional, a quase ausência da China como tópico foi compensada com o tom condescendente em relação à Rússia e preenchida com o foco excessivo nos europeus e no sistema ONU.
Para os aliados históricos dos EUA, Trump antecipou um futuro sinistro (“vocês vão para o inferno”), devido à maneira como lidam com uma “crise de migração fora de controle”: “Se vocês não pararem pessoas que nunca viram antes, com quem não têm nada em comum, seu país vai fracassar”. E reservou críticas, antagonismo e lições de casa sobre meio ambiente e mudança climática (“o maior golpe já dado no mundo”), energia (“ideias suicidas”, “golpe da energia verde”) e sobre a falácia do politicamente correto: “Sou o presidente dos Estados Unidos, mas me preocupo com a Europa. Amo a Europa, amo o povo europeu. E detesto vê-la sendo devastada pela energia [verde] e pela imigração, esse monstro de duas caudas que destrói tudo em seu caminho”. É a fala da pessoa narcisista que, depois da surra (física ou emocional), comenta: “Estou fazendo isso para o seu bem e apenas porque me importo com você”. Not really.
Em relação à ONU, não foram poucos os insultos. O manifesto azedume pela “falta de reconhecimento”, por parte da organização, de todos os seus esforços para encerrar conflitos mundiais (sete guerras!) busca ofuscar (sem conseguir) os ataques, o afastamento intencional e a contribuição cada vez menor dos EUA a essa mesma instituição. Junto com o questionamento ignorante de sua existência, sobram os vetos anacrônicos no Conselho de Segurança, os quais pouco ajudam no revigoramento e na atualização da estrutura onusiana.
Trump voltou a criticar o Brasil com a mesma ladainha dos últimos meses, mas também improvisou, deixando a paulada em um ritmo errático, após esbarrar com o presidente Lula nos bastidores e convidá-lo para uma reunião em breve. Também há menção às gangues e aos cartéis de drogas venezuelanos e ao presidente Nicolás Maduro, assim como às insalubres prisões de El Salvador que mantêm imigrantes a mando dos EUA, sob acusações de violações dos direitos humanos. De um modo geral, no entanto, Américas do Sul e Central, Sul Global, Ásia e África foram ignorados, o que nos dá uma visão da escala de importância geográfica e temática na política externa trumpista. [Sugiro a leitura do discurso do vice-presidente J.D. Vance na Conferência de Munique, em 14 de fevereiro de 2025, para um melhor panorama das relações exteriores do governo atual].
É preciso lembrar
Embora Lula e Trump tenham trajetórias, princípios, agendas e modos de atuar na vida pública completamente distintos, compartilham uma preciosa qualidade: ambos são veteranos na arte da negociação. Essa experiência pode facilitar a leitura do oponente, permitindo identificar as linhas invisíveis (mas bastante claras e sensíveis) dos limites estabelecidos por um e outro em qualquer tentativa de diálogo. Na AGNU, Trump disse que negocia apenas com aqueles de que gosta, em referência indireta ao presidente brasileiro. É um indicativo, ainda que insuficiente, de uma porta semiaberta para tratativas. A resposta sobre a reciprocidade neste sentimento já havia sido dada por Lula na entrevista à jornalista Amna Nawaz, do programa PBS News Hour.
“Não é uma questão de gostar, ou não, dele. O que importa é que ele é o chefe de Estado dos Estados Unidos, e eu sou o chefe de Estado do Brasil. E, como dois chefes de Estado, temos que nos respeitar, porque fomos eleitos democraticamente pelo povo dos nossos países, e precisamos apoiar essas pessoas e governá-las da melhor maneira possível”.
Na interlocução vindoura anunciada por Trump, Lula e sua equipe escaparão de armadilhas, preparando-se e antecipando-se às contradições, recuos sem aviso prévio, inconstância, vaidade e visão limitada e curto-prazista de seu homólogo americano. E manterão vantagem e tranquilidade, lembrando-se de que: 1) o mundo não olha mais para os EUA em busca de liderança, nem vê mais o país como o guardião dos valores morais do “Ocidente”, nem como modelo de democracia; 2) o mundo é maior do que o “Ocidente”; 3) em breve, haverá midterms nos EUA, o que significa que Trump precisará de algum bom resultado para publicizar em casa; 4) Trump respeita apenas o poder e quem se agiganta. Ele vocifera ameaças e esperneia, mas recua quando encontra um adversário à altura. E, segundo o próprio, ele encontrou.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referência imagética: Presidente Trump discursa na Assembleia Geral da ONU, na sede da ONU, em Nova York, em 23 set. 2025 (Crédito: capa do vídeo disponível no canal do Departamento de Estado no YouTube)
[1] Editora-chefe do OPEU e U.S. State Department Alumna (SUSI 2025). Esteve nos EUA em junho e julho de 2025 para participar do curso de American Politics and Political Thought, realizado no âmbito da Civic Initiative, do Donahue Institute, vinculado à Universidade de Massachusetts Amherst (UMass). O programa Study of the United States Institutes (SUSI 2025) é patrocinado pelo Departamento de Estado dos EUA e administrado pela Universidade de Montana (UM). Trabalhos decorrentes do programa ou outros relacionados aos Estados Unidos são considerados de totais autonomia, iniciativa e responsabilidade da pesquisadora e não representam qualquer endosso ou adesão a quaisquer políticas e agendas por parte do governo americano atual, ou anteriores. Contato: tatianat19@hotmail.com.