Yasmim Abril M. Reis1
10 de outubro de 2025
Em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), o Boletim Lua Nova republica a análise dos testes que a administração Trump impõe ao limites do poder militar e os freios constitucionais dos Estados Unidos. O texto foi originalmente publicado em 3 de outubro de 2025, no site do OPEU.
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A realidade distópica ilustrada no filme “Guerra Civil” (Civil War, em inglês) de 2024, dirigido por Alex Garland, é um espelho inquietante do momento atual dos Estados Unidos. Embora a analogia entre realidade e ficção não implica necessariamente no “vai se realizar”, no entanto, paralelos entre o filme e o governo Donald Trump (2025) são evidentes de se encontrarem. A interseção pode ser identificada a partir de alguns vetores, tais como: a convocação extraordinária de militares de alta patente globalmente, o discurso de uma “guerra interna” e os desafios simbólicos às normas militares tradicionais sinalizam que os limites do poder militar e os freios constitucionais enfrentam testes sem precedentes.
A contextualização do filme é relevante. O longa-metragem retrata uma realidade distópica nos Estados Unidos durante a guerra civil nacional. Estados e alianças regionais romperam com o governo federal do país, a exemplo das Forças Ocidentais – uma aliança entre Texas, Califórnia e a “Florida Alliance” – para derrubar o poder estadunidense central. A protagonista é Lee Smith, uma fotojornalista, que junto da sua equipe, percorre o país atravessando diferentes cenários de desastre institucional, incluindo colapsos logísticos, perseguições, confrontos armados, rupturas de autoridade, radicalização local, polarização, deslegitimação e violência generalizada. Todavia, a obra cinematográfica não discorre sobre as causas políticas que provocaram o caos no país. É possível traçar um paralelo entre os recentes eventos nos Estados Unidos e a experiência do colapso sociopolítico de uma nação. Dentre os elementos abordados no filme, destaca-se a ruptura institucional como o ponto central. Não por acaso, a realidade tem transitado pela fantasia no segundo governo Trump.
Os últimos 100 dias de mandato do então presidente foram marcados por mudanças expressivas no Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Recapitulando os eventos, Trump nomeou Peter Hegseth como secretário de Defesa após sua vitória eleitoral. Em seguida, o dirigente da Casa Branca criticou a cultura woke nas Forças Armadas, alegando que os indivíduos transgêneros são incompatíveis com os padrões físicos e mentais necessários para o serviço militar. A expansão dessa cultura evidencia uma fraqueza da força militar estadunidense. Em fevereiro deste ano, Trump demitiu o general Charles Q. Brown, chefe do Estado-Maior Conjunto e oficial militar sênior do país. Brown foi o segundo afro-americano no cargo. O anúncio surpreendeu por romper com uma tradição histórica do país – a permanência do chefe do Estado-Maior Conjunto durante as transições na Casa Branca, independentemente do partido que irá ocupá-la. Não obstante, dois fatores foram decisivos para a decisão de Trump: a lealdade e a promoção de políticas de diversidade nas Forças Armadas estadunidenses.
Lealdade é a palavra-chave para compreender o segundo mandato Trump. A perda da reeleição em 2020 custou ao republicano. Assim, Trump “aprendeu” a lidar com o aparato estatal e se apresenta como um presidente totalmente diferente em 2025 e, ao que tudo indica nesses meses de mandato, nos próximos 4 anos. Um exemplo que marca essa transição de “não deixar ninguém no seu caminho” é o caso de Mark Milley, ex-chefe do Estado-Maior Conjunto, que Trump o acusou de traição após a derrota em 2020 e a invasão ao Capitólio em 2021. Esse episódio ilustra como o novo governo prioriza a lealdade absoluta. A politização das Forças Armadas reflete essa tendência, como demonstra o desfile militar realizado em seu aniversário em março de 2025.
Em setembro, dois eventos marcaram a continuidade das transformações significativas na pasta de defesa dos Estados Unidos. Primeiro, a alteração do nome Departamento de Defesa para o Departamento de Guerra. Segundo, a convocação de uma reunião emergencial com aproximadamente 800 militares, generais e almirantes, em Quântico, na Virginia, sinalizando um gesto incomum entre o Executivo e as Forças Armadas no país. O discurso do secretário de defesa (agora secretário de guerra), Pete Hegseth, seguido pela fala de Trump à plateia militar, evidencia preocupações sobre o aparelhamento ideológico das Forças Armadas sob influência trumpista, indicando tentativas de politização e a coerção da subordinação da relação civil-militar implantada desde 1947 no país.
A mudança de paradigma: uma tentativa de retorno ao passado
No último dia 5 de setembro, o então presidente em exercício dos Estados Unidos assinou uma ordem executiva alterando o nome do Departamento de Defesa para Departamento de Guerra. A medida aguarda aprovação do Congresso estadunidense, pois a última alteração na nomenclatura ocorreu em 1947, com a Lei de Segurança Nacional (1947), a qual estabeleceu a criação do “National Military Establishment” (NME). A partir dessa criação foi estabelecido o posto de secretário de defesa para coordenar as Forças Armadas e estabeleceu o Departamento de Defesa. Trump, com suas ações recentes, busca evocar – de forma simbólica e retórica – um período de gloriosas vitórias militares anteriores à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), época em que a instituição era denominada Departamento de Guerra.
É pertinente sintetizar o movimento ocorrido após a Segunda Guerra Mundial. A própria Segunda Guerra Mundial, o Ataque a Pearl Harbor (1941), a Lei de Segurança Nacional (1957), a Revolução Cubana (1959), a Guerra do Vietnã (1955-1975) e a Guerra Fria (1946-1991) transformaram a política externa dos Estados Unidos. As décadas de 1940 até meados de 1960 foram cruciais para o setor de defesa do país. A mudança do Departamento de Guerra para o Departamento de Defesa aconteceu em 1947. Após duas Grandes Guerras, percebeu-se que erros estratégicos significativos foram cometidos pelos oficiais militares, e que o governo dos Estados Unidos precisava evitar sua recorrência, como John Gaddis demonstra em The United States and the Origins of the Cold War 1941-1947’ (Columbia University Press, 1972). Embora novas medidas tenham sido implementadas, persistia a discussão sobre a criação de um arranjo institucional para garantir o controle civil na pasta de defesa, bem como sobre as políticas desse setor. Todavia, não foi um processo rápido, caracterizando que esse fato não significou a legitimação da autoridade civil não foi imediata.
O ano de 2025 marca os 250 anos do Exército dos Estados Unidos. Não diferentemente do esperado, Trump se apropriou dessa data comemorativa para celebrar seu aniversário. Durante seu primeiro governo, ele solicitou ao Pentágono que estudasse uma celebração em seu aniversário, considerando que o Exército foi fundado em 14 de junho de 1775, antes da independência dos EUA. A celebração resultou na exposição de tanques e outros veículos blindados no feriado de 4 de julho em Washington D.C. Esse fato evidencia a clara separação entre as Forças Armadas e qualquer tentativa de associação com o governo, especialmente com a figura presidencial.
Os desfiles militares nos EUA são raros. O último aconteceu 1991, quando os soldados desfilaram junto com tanques por Washington para celebrar a expulsão do Exército iraquiano de Saddam Hussein na Guerra do Golfo.
Em contraste com o primeiro mandato, no segundo, Trump evidencia sua intenção de manter os militares na política, exemplificando a politização das Forças Armadas em seu governo. Isso marca uma contradição trumpista, que tanto critica os gastos “desnecessários” com a defesa, mas investe no setor militar, mesmo diante das demissões em massa no governo federal.
As mudanças não se findam com a proposta de transformação institucional do Departamento. No último dia 30 de setembro, Trump e seu secretário de defesa, Pete Hegseth, convocaram uma reunião com os militares. Em sua fala, Trump aparentou anunciar uma mudança estratégica significativa: concentrar os esforços militares não só externamente, mas para a ameaça interna. Nessa esteira, questiona-se: é possível visualizar um Corolário Roosevelt (1904) – momento histórico marcado por intervenções na América Latina a fim de conter ameaças à Segurança Nacional dos Estados Unidos – voltado para dentro do país?
A convocação: ecos de um corolário Roosevelt direcionado para a política doméstica
As declarações públicas realizadas pelo presidente Trump, no seu segundo mandato, assim como do seu secretário de defesa (ou melhor, secretário de guerra), Pete Hegseth, têm sido polêmicas. A convocação de altos oficiais das Forças Armadas para ouvir um discurso ideológico trumpista inflamado por tensões, autoritarismo e racismo, evidencia-nos que há uma tensão sobre o princípio do profissionalismo e da apoliticidade das Forças Armadas. Nesse contexto, é muito importante entendermos que a separação da relação civil-militar é histórica e perpassa pela Constituição norte-americana que garante essa separação de poder. De certa forma, a palavra apolítica significa, em linhas amplas, o não envolvimento e/ou interesse a nenhum partido político, bem como a atividades políticas. Desse modo, a ideia de um Exército (ou melhor, de uma Forças Armadas) apolítica emerge do princípio constitucional que estabelece como função que o Exército é um instrumento de defesa do país, bem como de que a principal função é garantir a defesa do país e os interesses nacionais. O grande objetivo por trás desse esforço é manter a neutralidade e a credibilidade das Forças Armadas norte-americanas.
Ao longo da história esse tem sido um grande desafio, visto que as Forças Armadas já tiveram envolvimento direto, falando do aspecto interno do país, interferência política, a exemplo da Guerra Civil no século XIX. Desde então, há um esforço em manter essa neutralidade e credibilidade, inclusive como modelo de exportação de Forças Armadas ao mode ocidental, em especial para os países da América Latina durante suas respectivas formações. Em 2021, um exemplo disso, foi quando o Almirante Craig Faller, na condição de chefe do Comando Sul, em visita a Brasília, afirmou que os militares devem ser “apolíticos” e “profissionais”, aqui profissionais na sua função de defender o país de invasões externas. Essa fala foi no contexto de instabilidade política no Brasil durante a transição entre o governo Bolsonaro e Lula em 2023.
É importante lembrar que o primeiro governo Trump foi marcado, especialmente, no que diz respeito aos militares por uma postura neutra dos seus respectivos chefes militares, sendo o Pentágono chefiado por personalidades com o mínimo de qualificação e experiência em consonância com a função. Além disso, os últimos nomes ocupantes da vaga, independentemente de sua trajetória militar ou não, foram figuras que construíram carreira com alguma passagem pelo Gabinete do secretário de Defesa. No primeiro governo, dois militares que exerceram essa função foram James Mattis e Mark Esper.
Agora sob o novo governo já podemos notar uma mudança significativa, sobretudo com a indicação do atual secretário de Defesa, o Peter Hegseth, que mesmo após os escândalos do signal, Trump o mantém no cargo, sob a justificativa de lealdade. Além disso, outro fator importante, nesse contexto, é o projeto MAGA (Make America Great Again) que tem como uma das suas premissas estabelecidas no Project 2025 de que as Forças Armadas deveriam fornecer o apoio necessário às operações de proteção de fronteira do Departamento de Segurança Interna.
Trump tem cada vez mais demonstrado uma vontade política de envolver as Forças Armadas na sua agenda conservadora, o que ficou evidente no seu discurso realizado em Fort Bragg. Trump cumpre bem a articulação com a base das Forças Armadas insatisfeita com o último governo, a exemplo as menções dos militares confederados que após os protestos em 2020 pela morte George Floyd alterou o nome de nove bases militares. Isso marca a transformação do governo Trump 1.0 para o Trump 2.0 que não teme esconder sua agenda política, o que perpassa também por não mais tentar esconder que quer mexer no caráter historicamente apolítico das Forças Armadas americanas.
No discurso do último dia 30, o presidente falou para um público de altos oficiais militares dos Estados Unidos como se estivesse dialogando em um comício com seus apoiadores. Além disso, em alguns momentos, Trump ainda criticou a falta de reação dos militares às suas declarações. Dentre os temas abordados tanto pelo presidente quanto pelo seu secretário de defesa, Hegseth, estavam a decisão de renomear o Golfo do México para “Golfo da América”, a cultura woke, a aptidão física das tropas estadunidense, declarando que “é inaceitável ver generais gordos” , defendendo o que eles denominaram como o retorno do “ethos guerreiro”. Todavia, a grande surpresa em sua fala foi quando Trump apresentou uma proposta de mudança estrutural e de doutrina das Forças Armadas dos Estados Unidos da sua atuação no combate externo frente às conjunturas globais para o combate interno. Em outras palavras, para o republicano, a grande ameaça é originária de dentro do próprio país.
Nesse cenário, Trump defendeu o emprego de militares em áreas urbanas do país. Nesse aspecto, é possível traçar um paralelo inverso à atuação das Forças Armadas. De outro modo, defende-se a tese de que a concepção retida no Corolário Roosevelt de que “o país defesa é ver os países vizinhos estáveis, ordeiros e prósperos” está voltando para o doméstico. Desse modo, identifica-se que há em curso, nos Estados Unidos sob a nova gestão Trump, uma mudança estrutural e de doutrina de Segurança Nacional, a qual poderá ser melhor visualizada, ao que tudo indica, quando o governo publica a sua nova Estratégia de Segurança Nacional.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG). É pesquisadora colaboradora no Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) nas áreas de Segurança e Defesa, pesquisadora colaboradora no Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), líder de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN) e pesquisadora de geopolítica no Núcleo de Avaliação da Conjuntura (Boletim Geocorrente-NAC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com. ↩︎
Referência imagética: Crédito: captura de tela do canal Republic World