Tatiana Teixeira1
24 de outubro de 2025
Em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), o Boletim Lua Nova republica a análise do Protesto “No Kings”, ocorrido em diversas cidades dos Estados Unidos em 18 de outubro. O texto foi originalmente publicado em 21 de outubro de 2025, no site do OPEU.
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Em 18 de outubro, mais de sete milhões de pessoas foram às ruas em cerca de 2.700 localidades em todos os 50 estados americanos, assim como na capital, Washington, D.C., em adesão ao protesto “No Kings”, para denunciar o autoritarismo do governo Trump 2.0. Isso equivale a 2% da população total do país, hoje em torno de 340 milhões de pessoas. As informações acima são dos organizadores, que também fazem uma irônica comparação: o total de manifestantes do último sábado foi, segundo eles, 14 vezes maior do que o público presente nas duas posses de Donald Trump, em 2017 e em 2025.
Se considerarmos o número divulgado pelos organizadores (7 milhões), “No Kings” foi a maior manifestação concentrada, de um único dia e de maior dispersão geográfica e alcance nacional desde 2017. Em 21 de janeiro do referido ano, a Marcha das Mulheres mobilizou entre 3,3 milhões e 4,2 milhões de pessoas (a depender da fonte), contra a posse de Trump para seu primeiro mandato e sua agenda sexista de restrição de direitos. Em termos de cobertura e de participação acumulada, o maior protesto já realizado foi contra o racismo e a violência policial (entre 15 milhões e 26 milhões), na esteira do assassinato de George Floyd, em 2020. Comparativamente, a histórica Marcha em Washington por Empregos e Liberdade – marco da luta pelos direitos civis no país, na qual Martin Luther King Jr. proferiu o histórico discurso “I have a dream” – reuniu cerca de 250 mil pessoas, em 28 de agosto de 1963.
Embora não haja números definitivos e exatos sobre o “No Kings”, variando conforme a fonte (e os interesses e o posicionamento político da fonte), há alguns consensos na imprensa americana: foi uma mobilização nacional e multitudinária, envolvendo milhões de pessoas nas principais cidades em todo o país (e também em cidades e condados rurais), e que reuniu diferentes gerações, gêneros, profissões, perfis eleitorais e credos religiosos. Além disso, teve repercussão nos jornais estrangeiros e ganhou apoio internacional, com atos organizados por cidadãos americanos – sobretudo, em capitais europeias, como Londres, Berlim, Paris, Roma, Lisboa, Madri e Barcelona. E, não menos importante: foi maior do que o “No Kings” de 14 de junho deste ano, que teria reunido cinco milhões de pessoas em cerca de 2.100 cidades do país. O que esse aumento, no período de quatro meses, pode nos dizer de imediato: 1) cresce o número de pessoas insatisfeitas com o governo atual, incluindo eleitores republicanos e independentes; ou 2) o número de insatisfeitos se mantém estável, crescendo, na verdade, o número de pessoas com coragem de ir às ruas. Em ambas as situações, a notícia é indesejada, desconfortável e preocupante para o governo.
Entre os estados e cidades com maior participação popular, estão, sem surpresa, aqueles com grande número de eleitores democratas, como: Illinois (Chicago, com concentração no Grand Park); Nova York (NYC, Times Square, com a participação do senador Chuck Schumer); Califórnia (San Francisco, San Diego e Los Angeles); Colorado (Denver); Connecticut (com a participação do senador Chris Murphy); e a capital, Washington, D.C. (National Mall/Pennsylvania Avenue, com a presença dos senadores Bernie Sanders e Adam Schiff). Também foram registradas manifestações em swing states, entre eles: Arizona; Carolina do Norte; e Geórgia (Atlanta, com a participação do senador Raphael Warnock e da ex-candidata democrata ao governo estadual Stacey Abrams). Os red states (republicanos tradicionais ou republicanos trumpistas) não passaram incólumes, com protestos registrados, por exemplo, no Alabama (Birmingham, Dadeville, Dothan, Huntsville, Mobile e Tuscaloosa); na Carolina do Sul (Myrtle Beach); Kansas; Montana (Billings); Texas (Austin, Dallas, Houston). Enquanto vários governadores democratas participaram dos protestos, muitos republicanos – como Glenn Youngkin, da Virgínia (VA), e Greg Abbott, do Texas (TX) – colocaram a Guarda Nacional de prontidão em seus estados.
Em suas diferentes esferas (Executivo e Legislativo) no nível federal, autoridades e políticos trumpistas adotaram dois caminhos distintos (e contraditórios) para se referirem a esse dia de mobilização nacional pacífica. Se, por um lado, o movimento foi ironizado, e teve seu tamanho, impacto e relevância minimizados (Trump e J.D. Vance); por outro, foi recebido com presença policial forte em áreas próximas a instalações federais, acusado de ser “antiamericano” (fala do presidente da Câmara de Representantes, Mike Johnson) e de ter sido promovido por “atores externos”, ou pelo “Antifa”. Além disso, agências federais usaram drones e reconhecimento facial para monitorar manifestantes.
Sem precisar de grande esforço interpretativo e analítico, a não indiferença, por parte do governo Trump, confirma que o movimento e seus números grandiosos pesaram. E pesaram tanto pela ferida narcísica deixada aberta, quanto pela constatação de que impor medidas draconianas e lançar ameaças, de modo a espalhar um medo que paralisa, isola e hiperdivide a sociedade, não é mais uma estratégia suficiente (ou eficiente). A ambiguidade das reações do presidente Trump e de seu vice mostra, como indicado acima, duas faces de uma mesma moeda. Uma delas é a da reação por meio da galhofa desrespeitosa, materializada em vídeos grotescos gerados por Inteligência Artificial (IA) e divulgados nas redes Truth Social e Blue Sky. Aqui, o direito do cidadão à liberdade de expressão, ao protesto e à livre-reunião é achincalhado por um governo que se empenha em transformar assuntos e desafetos em piada ruim e de mau gosto. A outra face se expressa no tom passivo-agressivo de quem tem certeza da impunidade e de que se manterá no poder.
[Trump, ignorar o problema não vai fazê-lo desaparecer.]
As pautas do movimento
Os protestos “No Kings” foram organizados por uma coalizão de mais de 200 organizações progressistas, liderada pelo Indivisible. Criado de um GoogleDoc de Ezra Levin e sua esposa, Leah Greenberg, após a vitória de Donald Trump em 2016, essa organização sem fins lucrativos se ampliou, amadureceu e acabou preenchendo uma lacuna de liderança, no movimento de base, deixada por um anestesiado, amorfo e perdido Partido Democrata.
Entre seus parceiros desta rede, estão organizações de defesa das liberdades civis e direitos das minorias, advocacy groups, partidos e sindicatos. É o caso da American Civil Liberties Union (ACLU), uma das mais importantes do país; do grupo ativista Public Citizen; da American Federation of Teachers e do Communications Workers of America; e de outros, como o 50501 (que teria cunhado o termo “No Kings” para os protestos), Human Rights Campaign, MoveOn, United We Dream, League of Conservation Voters, Home of the Brave, Reproductive Freedom for All, Third Act, Democratic Socialists of America, Planned Parenthood, Social Security Works, Public Citizen, League of Women Voters, Democrats Abroad e Common Defense.
O site oficial do movimento autodeclarado pacífico denuncia os “abusos de poder” do presidente Trump, fazendo referência ao envio de agentes mascarados para as ruas, aterrorizando comunidades; à perseguição de famílias de imigrantes e prisões sem mandado judicial; aos cortes orçamentários em gastos essenciais para a população; ao silenciamento de eleitores; e às vantagens oferecidas para bilionários, enquanto as famílias lutam para sobreviver. Com a fórmula “No Thrones, No Crowns, No Kings” (“Sem tronos, sem coroas, sem reis”, em tradução literal), o movimento declara que, “na América, não temos reis – e não recuaremos diante do caos, da corrupção e da crueldade”. O país, acrescenta a página on-line, “não pertence a reis, ditadores ou tiranos. Pertence a Nós, o Povo”, uma alusão à frase de abertura da Constituição dos Estados Unidos.
No último dia 18, a pauta de reivindicações que emergia das multidões incluía variações do parágrafo acima e a rejeição de uma série de políticas anunciadas e/ou implementadas por Trump e consideradas autoritárias, em um contexto de operações ilegais por parte da Polícia migratória (ICE); de instalação de tropas federais e da Guarda Nacional em cidades (democratas) e do uso dessas forças contra manifestações pacíficas; de cortes em programas e benefícios sociais federais, especialmente em saúde e educação; e de paralisação do governo federal (“shutdown”). Listo aqui algumas dessas demandas, sem me alongar nisso excessivamente: defesa da democracia, do pluralismo, da diversidade, do Estado de direito (com a garantia do exercício dos direitos e das liberdades civis); e forte oposição às tentativas de ampliar o poder presidencial (em termos de capilaridade e de duração), à censura da imprensa e da educação e à perseguição das universidades.
As pautas vão ficando mais diversas. Conforme o movimento ganha força, e o governo Trump segue com a implementação de seu programa ultraconservador, o público se torna mais heterogêneo. Ainda assim, algo mais forte do que tais diferenças continua a unir tantos segmentos: a rejeição da tirania e do “reinado” de Trump.
Significado político e simbolismo dos protestos
Um primeiro resultado é o impacto imagético das multidões. Difíceis de ignorar, por estarem em toda parte, as fotos e os vídeos do “No Kings” talvez possam, desta vez, alcançar lugares dominados pela narrativa trumpista. Um outro efeito imediato importante é mostrar que a revolta e a insatisfação do cidadão comum são (ou estão) maiores do que o medo. Um temor que vem sendo cuidadosamente alimentado e gerido pelo governo Trump, seja pela virulência dos discursos e das declarações de seus membros, seja por medidas adotadas à revelia da Justiça, seja pelo vaivém decisório que fertiliza um ambiente de incerteza, e que, em seu conjunto, transmitem ao americano uma angustiante sensação de impotência e frustração. Decidir ir às ruas em um momento de tamanha tensão, com o anúncio constante de diferentes formas de opressão por parte do governo, é um primeiro e necessário ato de coragem – em especial, no caso de um país mais habituado a colaborar com os governos autoritários alhures, em vez de olhar para dentro de casa.
Se conseguir superar a incredulidade dos que não acreditam na potência da ação coletiva, é um ato que pode furar a bolha do cultivado individualismo americano, potencializar o senso de comunidade para além do nível local e ressignificar sua relação com a política, vendo-a como algo que é parte do dia a dia e de todas as lutas diárias, pequenas ou grandes. Também pode propiciar fôlego renovado a uma oposição democrata que segue cambaleante desde o resultado das eleições de 2024.
Sendo seu ponto de partida uma resistência progressista em defesa da democracia, o “No Kings” poderia ter-se transformado em mais um espaço instrumentalizado para acentuar a já intensa polarização política. Não é o que está acontecendo, por pelo menos dois motivos combinados. Desde seu início, esse ato de mobilização difusa e em massa vem ganhando força, legitimidade e autoridade – em vez de arrefecer –, graças 1) à adesão de eleitores de outros matizes políticos às suas fileiras; e 2) ao aumento de medidas coercitivas e ao contínuo avanço do programa ultraconservador de Trump 2.0, que aumenta a insatisfação e desaprovação popular e favorece a aproximação (ainda que artificial e temporária) de diferentes segmentos da sociedade. Quanto mais Trump endurecer suas políticas, ou insistir em respostas repressoras para testar os limites de seus opositores, mais ele ajudará o movimento antiautoritarismo, que segue (por enquanto) uma trajetória de consolidação.
A depender do volume da adesão de eleitores independentes, republicanos tradicionais e minorias que apoiaram Trump nas eleições de 2024, caso consiga manter seu momentum, “No Kings” pode ser um estorvo ao trumpismo nas eleições de meio de mandato do ano que vem. Ressalto, contudo, que essa é uma consideração que merece cautela. Embora possa levar a um aumento da mobilização e dos financiamentos de campanha de políticos anti-Trump, seu impacto nas midterms depende de muitas variáveis, como mobilização eleitoral permanente, organização nos níveis local e nacional, a correta leitura do panorama e das demandas políticas que leve a estratégias adequadas, a manutenção do entusiasmo que faz as pessoas irem, realmente, votar. E esse convencimento dos eleitores nem sempre é fácil.
A durabilidade do resistente efeito teflon que blinda o presidente tampouco pode ser ignorado, assim como o amplo espaço midiático alternativo disponível para que ele distorça e controle a narrativa dos acontecimentos como quiser, sua comprovada capacidade de movimentar sua base fiel e de angariar novos votos, a máquina política apropriada por ele e o apoio de sua legenda, o Partido Republicano.
Parafraseando o poeta, e agora, América?
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referência imagética: Protesto ‘No Kings’, Concord, Massachusetts, em 18 out. 2025 (Crédito: Victor Grigas/Wikimedia Commons)
- Editora-chefe do OPEU e U.S. State Department Alumna (SUSI 2025). Esteve nos EUA em junho e julho de 2025 para participar do curso de American Politics and Political Thought, realizado no âmbito da Civic Initiative, do Donahue Institute, vinculado à Universidade de Massachusetts Amherst (UMass). O programa Study of the United States Institutes (SUSI 2025) é patrocinado pelo Departamento de Estado dos EUA e administrado pela Universidade de Montana (UM). Trabalhos decorrentes do programa ou outros relacionados aos Estados Unidos são considerados de totais autonomia, iniciativa e responsabilidade da pesquisadora e não representam qualquer endosso ou adesão a quaisquer políticas e agendas por parte do governo americano atual, ou anteriores. Contato: tatianat19@hotmail.com.
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