Pedro Henrique Ramos Prado Vasques[1]
Na primeira semana de novembro de 2015 ocorria o rompimento da barragem de Fundão, na cidade de Mariana/MG, controlada pela Samarco Mineração S.A., uma joint venture entre a brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton. Dentre os inúmeros e catastróficos desdobramentos decorrentes do despejo de cerca de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos minerários, a contaminação do Rio Doce significou para os índios Krenak a morte de uma divindade, o Watu. Pouco mais de três anos depois, ocorre novo rompimento de barragem, desta vez no município de Brumadinho/MG, em operação controlada pela Vale S.A. O novo episódio, também de proporções calamitosas, envolveu o derramamento de aproximadamente 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos sobre unidades operacionais da companhia, residências, fazendas e hospedaria, implicando em uma turbulência significativa nos santuários financeiros onde as ações da companhia brasileira são negociadas. Entretanto, diferentemente de Watu, e mesmo após episódios gravíssimos como os que foram mencionados, a gradativa recuperação da Vale S.A. nos mercados internacionais torna ainda mais explícita a imortalidade das gigantescas corporações no capitalismo neoliberal contemporâneo, cujo sacrifício se justificaria, em regra, apenas como medida extrema para o reequilíbrio do sistema. A contraposição do que experimentam indivíduos e pessoas jurídicas nos desdobramentos associados a eventos dessa magnitude torna essa dimensão ainda mais evidente.
No episódio verificado em Brumadinho, e diferentemente do que ocorrera em Mariana, uma das primeiras respostas do poder público – para além do bloqueio cautelar de recursos e da aplicação de multas – foi a prisão temporária dos funcionários da Vale S.A. responsáveis pelo local e seu licenciamento e dos engenheiros da consultoria alemã Tüv Süd que atestaram a estabilidade do maciço. A prisão foi revogada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) oito dias após o cumprimento dos mandados. Entretanto, a opção de incidir diretamente sobre empregados e consultores como estratégia de ampliação da eficiência das regras jurídicas é uma tendência que, ao menos na esfera socioambiental, vem se consolidando. Note-se, nesse sentido, que as maiores penas atualmente previstas na Lei de Crimes Ambientais envolvem a elaboração e apresentação ao órgão público de laudos e relatórios falsos, enganosos ou omissos cuja responsabilidade, em regra, costuma ser de técnicos e consultores associados às pessoas jurídicas envolvidas. Mesmo para o alto escalão das companhias é possível observar projetos de alteração da legislação ambiental que visam permitir a desconsideração da personalidade jurídica das companhias pela via administrativa – sem a necessidade de decisão judicial, em semelhança ao que já se observa em certas demandas tributárias – para atingir diretamente o patrimônio de seus gestores em determinadas situações.
A despeito de análises detidas sobre a eficiência jurídica de medidas que facilitam o acesso e a punição de pessoas físicas vinculadas às grandes corporações, essa dinâmica – que não se restringe à seara socioambiental – está implicada em um duplo movimento que, ao menos aparentemente, se mostra convergente entre manutenção do funcionamento equilibrado do mercado e o atendimento a demandas sociais por punição à infração da legislação em vigor. Isto é, se por um lado a permeabilização das estruturas societárias viabiliza o acesso ao patrimônio e à liberdade de determinados sujeitos infratores (diretor, gestor, especialista, consultor etc.) para que estes sejam julgados a pretexto de sua capacidade decisória ou técnica, por outro, garante a manutenção operacional das pessoas jurídicas. Estas, em alguma medida, também serão alvo de multas, demandas por ressarcimento, reparação etc., mas que tendem a não impedir o funcionamento de suas principais atividades. Pelo contrário, quando da aplicação de instrumentos que atinjam grandes corporações diretamente, potencialmente ameaçando – ainda que discursivamente – sua capacidade operacional, a manutenção de suas atividades passa a representar tanto uma garantia de que danos, prejuízos, e impostos serão recompostos no médio e longo prazos, como um limite a partir do qual a intervenção estatal para consecução da justiça não deve ultrapassar sob pena de tornar-se equivocada.
No caso da barragem de Fundão, a dinâmica anteriormente descrita é complementada pela adoção de múltiplas ferramentas e estratégias político-jurídicas para bloquear ou dosar a disponibilização dos recursos privados, bem como por uma sucessão de intervenções por diversos atores que, nem sempre atuando de forma convergente, aumentam ainda mais a complexidade das demandas reparatórias individuais e coletivas. A constituição de uma fundação – a Renova – para administrar os desdobramentos pós-rompimento da barragem, talvez seja a decisão que mais claramente demonstre a tentativa de criar novas camadas de distanciamento entre as pessoas jurídicas legalmente responsáveis pelos danos causados e suas obrigações de reparação – até hoje muito limitadamente cumpridas – para, então, circunscrever ao máximo seu impacto nos balanços da corporação. Apesar das declarações de solidariedade do presidente da Vale S.A. no dia do rompimento da barragem em Brumadinho afirmando que daria apoio imediato, espera-se que a atuação da companhia nesse caso tenha muito mais semelhanças com o episódio de Mariana do que diferenças. Essa aproximação com o evento de 2015 vem se justificando à medida que as investigações avançam, mas também foi explicitada nas declarações públicas dos advogados contratados pela Vale S.A., que atribuíram a ocorrência a um caso fortuito, e ainda nas observações preliminares da missão realizada pela Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale em Brumadinho, que indicam que a companhia vem adotando comportamentos que, em última análise, dificultam tanto o acesso à informação quanto à reparação dos danos causados.
O dissenso e a dificuldade de compatibilizar as promessas de campanha com as demandas emergidas do episódio em Brumadinho, incluindo desde as primeiras declarações do vice-presidente distanciando a atual administração do evento, as medidas pouco efetivas adotadas pelo gabinete de crise, até as declarações punitivistas da Casa Civil, parecem fornecer indícios sobre a atuação do governo federal na área ambiental, ao menos em se tratando de grandes projetos. Nesse contexto, o artigo de opinião do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, publicado no dia 03 de fevereiro, no jornal Folha de São Paulo, é contundente. Apesar da troca de palavras, a semântica manteve-se a mesma. Ou seja, tendo como premissas as supostas ineficiência do Estado e a irracionalidade do conjunto normativo vigente, o novo derramamento é empregado como justificativa para o discurso de flexibilização que, nesse momento, abandona o perfil direto e sem floreios – empregado durante a campanha – e passa a ser revestido e polido por pautas genéricas como “o fim da impunidade”, “mais eficiência” e “foco da atuação estatal”. Em última análise, esse posicionamento tende a significar a redução no conteúdo e escopo dos empreendimentos licenciados e aceleração na emissão das autorizações ambientais que atestam não só a viabilidade dos projetos, mas permitem também sua instalação e operação. Tal proposta encontra-se genericamente condensada em uma indicação do atual presidente para que haja a unificação dos processos decisórios no curso do licenciamento ambiental. Uma ideia antiga que, sob diversas críticas, já vem sendo operacionalizada em âmbito federal há alguns anos a partir de portarias interministeriais (integrando IBAMA, FUNAI, IPHAN, Fundação Cultural Palmares e Ministério da Saúde).
De todo modo, para além dos desencontros e dissonâncias que marcam o início do novo governo, há uma tendência de que, sob determinados contextos e circunstâncias, a resistência interna às propostas de flexibilização emerja não apenas por parte dos grupos de oposição ao governo. Esta poderá abranger ainda setores da própria administração federal e de parcela da iniciativa privada que incluem no seu rol de interesses a manutenção da integração do Brasil aos mercados externos. Isso porque, a consolidação das ferramentas de gestão e controle ambiental no plano internacional nas últimas décadas do século XX encontra-se implicada não só com demandas societárias associadas à dimensão planetária e irreversível dos impactos decorrentes da ação humana, mas também se insere no âmbito da reestruturação das regras de soberania e dos mecanismos de concorrência entendidos como necessários ao funcionamento equilibrado do mercado. Em outras palavras, o cumprimento de determinados padrões internacionalmente estabelecidos significa tanto o atendimento – ainda que parcial – de interesses ambientalistas, como uma condição de aceite – dentre outras – para participação da dinâmica global de trocas, especialmente indispensável aos países do Sul Global. Assim, essa dinâmica pode representar um obstáculo importante às investidas sobre o conjunto regulatório nacional sobre o tema. Caso contrário, ocorrências de grande magnitude também tendem a produzir novas tensões na medida em que expõem as fragilidades dos mecanismos de controle e gestão empregados nacionalmente, estimulando, com isso, potenciais rearticulações que ultrapassam os limites das nossas fronteiras.
Dados compilados pela World Mine Tailings Failures sobre falhas em barragens de rejeitos demonstram que, no decorrer do tempo (i.e., desde 1915), a magnitude das ocorrências vem aumentando à medida que cai a qualidade do minério e ascende seu preço – provando o erro das abordagens que defendiam uma relação entre os eventos e a queda do valor do minério no mercado. É provável que os Krenak não vejam tão cedo Watu ressuscitado, correndo livre de rejeitos. Tampouco espera-se que os demais atingidos e atingidas desses e de outros episódios tenham suas perdas plenamente reparadas, se é que é possível haver reparação. Nesse contexto, o desafio que está posto – e que se torna ainda mais emergencial diante da atual administração federal e da crise política que assombra o país – inclui não só a defesa das instituições ameaçadas, mas tem também como meta a construção de um novo horizonte utópico que ultrapasse a limitada concertação proposta e internacionalmente aceita no entorno da ideia de desenvolvimento sustentável. Isto é, o que se impõe, com urgência, é a necessidade de uma reavaliação crítica sobre a relação dos seres humanos com si mesmos e seu entorno. Enquanto tal exercício é postergado; enquanto o paradigma da sustentabilidade continuar povoando nosso horizonte utópico, catástrofes como as verificadas em Brumadinho e Mariana continuarão a oferecer muito mais certezas aos investidores. No mundo que busca ser sustentável, a experiência do desastre permite às grandes corporações a possibilidade da contínua elaboração de novos ajustes, da manutenção permanente dos cálculos sobre os riscos e, nesta equação, as vítimas, pretéritas e futuras, continuam espremidas em uma miríade de outras disputas que envolvem, inclusive, sua própria existência.
Nota do autor: a indagação que dá título a esse artigo é uma referência à seguinte frase proferida pelo Ministro Ricardo Salles no programa Roda Viva exibido no dia 11/02/2019 pela TV Cultura: Que diferença faz quem é Chico Mendes neste momento? Ao ser questionado respeito da sua opinião sobre o ativista político assassinado a mando de fazendeiros.
[1] Advogado e pesquisador associado do CEDEC. Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Fonte da imagem: Divulgação do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais.