Rafael R. Ioris[1]
As elites brasileiras sempre se preocuparam demais com o olhar estrangeiro. Desde a colônia, passando pelo império, sua principal referência era a Europa, mas aos poucos incluía-se todos os outros também tidos como mais brancos, mais ricos, mais sofisticados e mais desenvolvidos. Não fosse assim, como explicar que Rio Branco, patrono da nossa diplomacia, tenha preterido, para representações no exterior, diplomatas qualificados e mais representativos do cerne mulato da nossa população, como Euclides da Cunha, e favorecido seus pares mais brancos?
Mas se encontramos em Rio Branco uma amostra clara do racismo presente entre nossas elites – preconceito que sempre nos limitou a avançar rumo a uma sociedade, de fato, mais parecida com as tidas como superiores, já que lá a noção de igualdade se efetivou de maneira mais sólida, embora nunca perfeita –, contradições até maiores entre o que se almejava e o que se implementava em solo pátrio são encontradas no tumultuado relacionamento dessas com o ideário liberal.
Construção eminentemente europeia que ao longo dos séculos XVIII e XIX passou por mutações que, em grande medida, a empobreceram, a agenda liberal clássica propunha que todos (na época, homens) eram inerentemente capazes de participarem do processo político que deveria, por sua vez, permitir a cada um a possibilidade de expressar sua opiniões e efetivar suas potencialidades econômicas. Embora sempre mais limitado na sua implantação do que nos documentos grandiloquentes do período, o liberalismo, não obstante, tornou-se matriz fundamental, ainda que não suficiente, para o aprimoramento social e político das sociedades europeias, assim como dos Estados Unidos, entre outras.
Por aqui, contudo, apesar da reiterada propagação do credo liberal entre tantos membros das nossas elites econômicas e políticas, o que vimos com mais frequência foi uma usurpação continuada da profissão de fé liberal com vistas à manutenção de uma sociedade eminentemente não igualitária. De fato, embora vista como um passo essencial no processo de modernização da estrutura fundiária do país, a Lei de Terras, de 1850, promulgada por nosso erudito imperador, fundava-se na lógica liberal que vê na propriedade privada individual um elemento essencial para a promoção do tal processo civilizatório, mas aprofundou ainda mais a desigualdade e a exclusão social ao privilegiar velhos fazendeiros e concentrar a propriedade rural em poucas mãos.
Da mesma forma, já no período republicano, nossa primeira constituição de matriz claramente liberal, a de 1891, se, por um lado, implementava uma das noções pilares dessa ideologia, qual seja, a separação entre Igreja e Estado; por outro, ao exigir a alfabetização para o exercício do direito ao voto, ao invés de expandir o sufrágio, elemento chave do liberalismo clássico, o reduziu, já que a enorme maioria da população não podia se qualificar para cumprir tal requisito. Aprofundando a contradição entre o ideal e a prática liberal entre nós, dada a exclusão formal do eleitorado potencial com base no critério da alfabetização, nem sequer houve um esforço massivo de alfabetização da população – algo que era buscado no período na Europa liberal, nos Estados Unidos e mesmo na Argentina.
Contudo, no Brasil, tal noção, bastante lógica para um liberal de fato, não fazia parte do auto de fé dos grupos dirigentes de então. Essa mal resolvida relação de nossas elites, ditas liberais mas profundamente conservadoras, com as exigências da agenda liberal de promover condições mínimas de igualdade se consagraria outras vezes na chamada Velha República quando, por exemplo, uma de suas mais importantes figuras, o eminente jurista Ruy Barbosa, optou, com medo dos eventuais pedidos de indenização dos senhores de escravos, por queimar registros da escravidão em nosso país. Avançava-se, pois, na modernidade, ignorando, ao invés de corrigindo, os erros do passado. Da mesma forma, expondo de maneira ainda mais clara a enorme distância entre discurso e ação, um dos mais eruditos membros do mesmo período, o historiador Washington Luís, entendia que a mobilização de grupos historicamente excluídos deveria ser tratada como “caso de polícia”.
Após um interregno, definido mais pela lógica corporativista do chamado Estado Novo, o liberalismo, e suas contradições por aqui, voltaram a ser professados de maneira clara entre os tidos como mais preparados membros das elites políticas do período 1945-1964, conhecido por muitos historiadores como a República Liberal. Entre esses estariam importantes integrantes do principal partido de vertente liberal de então, a União Democrática Nacional (UDN), tais como Afonso Arinos e, especialmente, Carlos Lacerda. No que seria uma das mais expressivas demonstrações de como nossas elites continuavam, mesmo após mais de um século, a se relacionar de maneira profundamente ambígua com a agenda liberal clássica, esses nobres propagadores do ideário por aqui foram decisivos em seu apoio ao sabotamento das eleições do período e, acima de tudo, ao truculento golpe militar de 1964.
A mal resolvida e contraditória relação de nossos dirigentes com o ideário liberal, e os muitos dilemas decorrentes da distância entre a tentativa de projetar uma imagem liberal e a efetivação continuada de políticas claramente excludentes, talvez se revele de maneira ainda mais clara, nos dias de hoje. A despeito de seu histórico parlamentar ligado a visões mais estatistas do que seus principais ministros gostariam, o atual mandatário do país chegou ao poder nos braços de um movimento autodenominado liberal na agenda econômica, ainda que envolto em uma retórica claramente dirigista do ponto de vista cultural – em uma nova manifestação das contradições dos liberais entre nós.
De fato, talvez no que efetivamente tenha legitimado a aventura do capitão entre as classes médias – autoentendidas como esclarecidas, mas péssimas representantes da agenda política liberal –, a presença do czar da economia Paulo Guedes o posiciona como o maior defensor do neoliberalismo na América Latina na atualidade. O nobre economista da escola liberal de Chicago apoia, pelo menos no discurso, a efetivação plena de uma ampla redução do que sempre foi entre nós um dos únicos equalizadores, de modo algum plenamente efetivo, mas ainda assim necessário, de algumas das mais brutais desigualdades ainda existentes no mundo. Confirmando o padrão histórico mencionado acima, a agora buscada liberalização econômica já vem demonstrado suas efetivas características – sempre contraditórias e aquém dos prometidos avanços democráticos.
De fato, como bem exemplificado pela pretendida reforma previdenciária, embora essa se apresente como universalista, tenderá, ao contrário, a reforçar privilégios e aprofundar desigualdades. Confirma-se, pois, o fato de que por mais liberais que se digam, as elites brasileiras sempre foram muito mais próximas de seus antecessores escravocratas.
Se quisessem de fato se comportar à altura dos princípios liberais originais, no sentido histórico do termo, nossas elites deveriam começar por estreitar a distância entre seu discurso e prática, efetivando medidas compensatórias para garantir a igualdade de todos habitantes do país.
Na agenda buscada pelo atual governo, contudo, é o oposto que vê, a despeito da profissão de fé liberal de vários de seus membros. Nada mais representativo do liberalismo tupiniquim!
[1] Professor na Universidade de Denver.
Referência imagética: Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços – Brasília, – 02/01/2018 – Cerimônia de Transmissão do cargo do Ministro de Estado da Economia Paulo Roberto Nunes Guedes (Washington Costa).