Neusa Maria Pereira Bojikian[1]
Por que criar um sistema multilateral de comércio? Uma das razões que teriam levado os líderes norte-americanos a apoiar a criação de uma organização internacional dedicada ao tema era a preocupação com a imagem negativa daquele país no âmbito internacional. O histórico de conflitos internos sinalizava um considerável risco dos Estados Unidos não cumprirem seus acordos internacionais. Do ponto de vista dos Estados menores, a ausência de tribunais ou de um sistema obrigando o cumprimento dos acordos internacionais estimulava aqueles melhores posicionados nas relações internacionais a agir oportunisticamente. Assim, o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT), uma das instituições mais emblemáticas do pós-Segunda Guerra e que evoluiu para a Organização Mundial do Comércio (OMC), não apenas teria resolvido a questão da disputa interna entre os grupos de interesses, mas também atribuiria voz mais forte aos grupos exportadores, reduzindo a dos concorrentes internos às importações. O GATT também teria resolvido a questão da falta de compromisso dos Estados Unidos por força de acordos bilaterais assinados com parceiros comerciais.[2]
Entretanto, ao longo de sete décadas de existência do sistema multilateral, os Estados Unidos, representados por suas diferentes delegações de negociadores, recorrentemente agiram de maneira a deixar muitas dúvidas sobre o verdadeiro grau de comprometimento com a instituição que o país mesmo concebera. O estilo competitivo dos negociadores norte-americanos pode ser percebido nos recursos e táticas de poder a que recorreram – incluindo duras ameaças políticas, econômicas e militares. Em diversos contextos – pré-negociação, negociação, pós-negociação de acordos – o comportamento associado à cooperação propagada foi perturbado pelo comportamento oposto. Não se pode afirmar que desejavam que os demais signatários do regime sofressem danos ou perdessem algo, mas o fato é que os Estados Unidos atuaram exclusivamente em prol de suas metas.
No livro Estados e Mercados: os Estados Unidos e o sistema multilateral de comércio, publicado em 2017 pela editora Unesp em parceria com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), Sebastião Velasco e Cruz mergulha em um conjunto denso de referências para trazer à tona questões de extrema relevância ligadas ao sistema multilateral de comércio. A compreensão dos processos políticos ocorridos no desenvolvimento do sistema multilateral de comércio e o exame das instituições formais que abrigam o referido sistema passam pela apreciação do princípio da soberania dos Estados. O enquadramento analítico, cuidadosamente escolhido pelo autor, baseado na lógica das consequências, resultou em uma narrativa de absoluta consistência. Isso a torna um instrumento interpretativo importante para acadêmicos, estudantes e operadores do comércio internacional que tentam compreender o funcionamento do sistema multilateral de comércio.
Velasco e Cruz destaca que um dos pontos de inflexão do sistema em análise começou a se configurar em setembro de 1986, com o lançamento da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais, a qual resultou em uma série de acordos e deu surgimento à OMC, criada em 1994. O autor argumenta que o que estava em jogo nessa rodada “era a própria natureza do regime multilateral de comércio”.
O contexto em que se passa a Rodada Uruguai não poderia ser mais tenso, conforme detalhadamente mostra o autor. De um lado, posicionavam-se os “amigos” do comércio liberal e suas receitas para alavancar a economia internacional, principalmente com a ideia de harmonização das regras de comércio, sob liderança dos Estados Unidos. De outro lado, estava um grupo, mobilizado principalmente por Brasil e Índia, que buscava a diminuição da assimetria de poder nas negociações comerciais e lograr resultados menos desequilibrados. No caso de países como o Brasil, o problema tomava proporções ainda maiores. O país enfrentava o desafio de negociar a respectiva dívida externa (na prática impagável) em conjunção com um ambiente interno de mudança política e de mobilização social orientada por temas como desenvolvimento sustentável, redistribuição de renda, democracia e inserção internacional sem servilismo.
A mudança institucionalizada com a Rodada Uruguai, de fato, suscitava questões pertinentes à cláusula democrática, expressa na autonomia das sociedades civis para pautar suas respectivas prioridades. A agenda do sistema multilateral, cujo enfoque mudara para as questões pertinentes às políticas públicas, revelou um reposicionamento normativo do sistema de grande impacto para os países signatários. A mudança representou um golpe no compromisso que havia sido costurado no pós-Segunda Guerra. O compromisso do embedded liberalism asseguraria aos países que aceitassem regras mais liberais nas fronteiras maior autonomia no âmbito de seus respectivos territórios.[3]
Em Estados e Mercados, o autor aponta a mudança substancial forjada na Rodada Uruguai como raiz do impasse verificado na Rodada Doha de Desenvolvimento, lançada em 2001 e até hoje em processo. Velasco e Cruz nota que na Rodada Uruguai, e inclusive em ocasiões anteriores, a “carta do regionalismo” e os instrumentos unilaterais foram usados como estratégias subsidiárias, fazendo com que operassem como mecanismos de pressão para enquadrar parceiros incautos, obrigando-os a legitimar a agenda de interesses particulares dos Estados Unidos. Já no contexto da Rodada Doha e nos anos subsequentes as estratégias se alteraram. Diante das dificuldades crescentes de convencer os demais a aderir aos termos e condições de sua preferência, os Estados Unidos veem priorizando outros caminhos e escolhendo passar ao largo da OMC para erigir novos acordos comerciais. Priorizam os acordos preferenciais, sejam eles bilaterais ou regionais, cujos termos afetam a essência do sistema multilateral, qual seja, a não discriminação.
Nos termos dos acordos sob o abrigo da OMC, orientados pelo princípio da Nação-Mais-Favorecida (NMF), os signatários em geral – diz-se assim, porque há algumas exceções previstas – não podem discriminar entre os diversos parceiros comerciais. Uma vez feita alguma concessão, como a redução de tarifas relativas a direitos aduaneiros a um determinado parceiro, terá que ser feito o mesmo para todos os outros membros da OMC.
A narrativa apresentada em Estados e Mercados reforça a nossa ideia de que a opção estratégica dos Estados Unidos pelos acordos preferenciais desloca de vez o discurso que embutia o conceito liberal trader. Tal conceito refletia a liberalização seletiva feita para acomodar os interesses conflitantes dos principais atores do pós-Segunda Guerra, mas foi perdendo consistência ao longo das décadas com as leis internas americanas – Trade Act of 1962; Trade Act of 1974; Trade Act of 1984; Trade Act of 1988. A opção pelos acordos preferenciais expõe sem pudor a preferência pelo chamado fair trade. Mais do que tentar traduzir este último conceito, cabe dizer aqui que a orientação da política comercial norte-americana tem se baseado cada vez mais no princípio da “reciprocidade estrita”. Busca mensurar implacavelmente os termos das trocas com os respectivos parceiros, ou seja, busca apurar a distribuição dos recursos independentemente das capacidades dos correspondentes parceiros.
Para Velasco e Cruz, é intrigante sobretudo o fato de que os Estados Unidos não chegam a romper com a instituição, ou mesmo prenunciar seu fim. Em vez disso, o que se verifica é uma mistura de comportamentos que altera o estado das coisas, mas sem colapsar assumidamente o sistema. Em geral, as próprias instituições são objeto de escaramuças contínuas, o que leva inevitavelmente a mudanças. Nos domínios do sistema multilateral de comércio isso também ocorre.
Inúmeras ocorrências promovidas por atores desejando escapar das regras que colidem com suas preferências são notadas. Chama atenção, no entanto, o comportamento dos Estados Unidos, que força mudanças por meio de diferentes mecanismos como o redirecionamento, a negligência deliberada e o esvaziamento. O exemplo mais concreto e atual de elaboração de mudança colocada em prática pelos Estados Unidos traduz-se no veto à escolha de novos árbitros para o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC. À medida que os mandatos judiciais expiravam, novos candidatos eram indicados para ocupar as respectivas vagas. Mas com o governo de Donald Trump esse padrão se alterou, afetando drasticamente o funcionamento do OSC. A morosidade dos processos judiciais é a consequência mais imediata. E em 2019, se a conduta norte-americana se mantiver, o OSC contará com apenas um árbitro e deverá ter suas operações suspensas.
Ao passo que no governo Barack Obama se verificava resistência a internalizar decisões do OSC contrárias às preferências dos Estados Unidos, no governo Trump o órgão é francamente desafiado. Ao estabelecer que as autoridades norte-americanas são efetivamente o último recurso para dirimir as disputas comerciais, o governo Trump visa a retirar os poderes do órgão sem qualquer cerimônia.
Como compreender tudo isso? Em todos esses episódios há algo que se mantém constante, conforme Velasco e Cruz identifica em sua obra: “a defesa insistente de um sistema baseado em regras universais e a afirmação do direito ‘soberano’ de definir em quais circunstâncias ignorá-las.” Está aí a chave indicada pelo autor.
Referências bibliográficas:
BARTON, John; Judith GOLDSTEIN; Tim JOSLING; Richard STEINBERG. The Evolution of the Trade Regime: Politics, Law, and the Economics of the GATT and the WTO. Princeton: Princeton University Press, 2006.
RUGGIE, John G. International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic Order. Int. Organ., v. 36, n. 2, p. 379-415, 1982.
VELASCO E CRUZ, Sebastião Carlos. Estados e Mercados: os Estados Unidos e o sistema multilateral de comércio. São Paulo:Unesp. 2017.
[1]Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC-SP. Autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (2009, Unesp) e Co organizadora do livro Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil (2011, Unesp).
[2] BARTON, John; Judith GOLDSTEIN; Tim JOSLING; Richard STEINBERG. The Evolution of the Trade Regime: Politics, Law, and the Economics of the GATT and the WTO. Princeton: Princeton University Press, 2006.
[3] RUGGIE, John G. International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic Order. Int. Organ., v. 36, n. 2, p. 379-415, 1982.