Roberto Goulart Menezes[1]
Em outubro de 2018, dias antes do segundo turno das eleições presidenciais, o então candidato Jair Messias Bolsonaro afirmou que seu objetivo seria fazer o Brasil voltar 50 anos em 4. Na política externa parece que o agora presidente está recuando muito mais no tempo.
Chamado por parte da imprensa conservadora de imitação do presidente Donald Trump, Jair Bolsonaro bateu continência para a bandeira dos Estados Unidos durante um evento de campanha na Flórida (EUA). Como presidente eleito, repetiu o gesto ao receber John Bolton, enviado de Trump, em sua residência no Rio de Janeiro. Tal comportamento de devoção aos Estados Unidos poderia talvez ser atribuído ao marketing da campanha do então candidato, que buscou colar sua imagem à de um ex-militar que valoriza a disciplina, a obediência e acima de tudo, a hierarquia. No entanto, o presidente gostou do figurino e já nos primeiros dias no cargo surpreendeu até mesmo seus aliados do meio militar ao declarar que havia oferecido o território nacional para os Estados Unidos instalarem uma base militar. Ato contínuo, o Ministro das Relações Exteriores, o embaixador Ernesto Araújo, passou a defender a proposta com entusiasmo.
A proposta de instalar uma base militar dos Estados Unidos no Brasil não é algo trivial. Ao contrário, isso impacta a política nacional de Defesa. Os militares que integram a cúpula do governo, bem como o vice-presidente, Hamilton Martins Mourão, rechaçaram essa possibilidade e, ao que tudo indica, parecem ter afastado por hora essa questão tão delicada e cara à história recente do Brasil. O objetivo do presidente Jair Bolsonaro com essa iniciativa foi demonstrar que o seu governo tem nos Estados Unidos mais que um parceiro estratégico: parece perseguir uma nova versão das chamadas “relações carnais” que se associam aos governos do ex-presidente argentino Carlos Menem (1989-1999).
A referência conceitual desse alinhamento quase incondicional à política de Washington se dava no quadro do “realismo periférico”, sintetizado pela famosa expressão “relaciones carnales”, atribuída ao então chanceler argentino Guido Di Tella (1991-1999). Durante os governos Menem, a política externa sofreu mudanças drásticas se comparada com o período de 1945 a 1989. Para Russel e Tokatlian, a diplomacia de Menem buscava recuperar o tempo perdido nas relações com os Estados Unidos, pois considerava que as posições da Argentina em relação a Washington teriam sido erráticas desde a Segunda Guerra Mundial.[2]
De acordo com Russel e Tokatlian, o paradigma da “aquiescência pragmática” da política externa de Menem estava na base dessa subserviência aos Estados Unidos. Esse paradigma, segundo os autores, é caracterizado por sete objetivos: o vínculo aos interesses políticos e estratégicos dos Estados Unidos, tanto globais quanto regionais; a definição do interesse nacional na ótica econômica; a participação nos regimes internacionais em sintonia com as potências ocidentais; o apoio à integração nos moldes do regionalismo aberto; a estratégia de desenvolvimento alinhada aos preceitos do Consenso de Washington; a excessiva confiança nas forças do mercado em detrimento do Estado; e a inserção subordinada na ordem internacional.[3]
O alinhamento automático dos governos Menem não chegou ao ponto de oferecer aos Estados Unidos o território argentino para a instalação de uma base militar, mas procurou se engajar na agenda externa de Washington: enviou duas fragatas para a Guerra do Golfo (1991), tentou ingressar na OTAN e retirou a Argentina do Movimento dos Países Não Alinhados. No plano regional e hemisférico, seu governo criticava os rumos do Mercosul e afagava a proposta da ALCA liderada pelos EUA. Fez de tudo para atrair a atenção de Washington na esperança de se tornar o aliado preferencial dos Estados Unidos na América do Sul. Essas iniciativas eram inspiradas no “realismo periférico”,[4] que propõe uma aceitação tácita e adesista à potência dominante. No contexto das mudanças sistêmicas da ordem internacional do início dos anos 1990, os Estados Unidos figuravam como a única superpotência, e o debate, em parte das relações internacionais, girava entorno da noção de unipolaridade. É esse mundo predominantemente influenciado por um único país de intensificação da “globalização financeira e econômica” que justificaria, digamos, a busca por “relações carnais”. A leitura apressada desses eventos deu margem para um certo conformismo e até mesmo para uma defesa de atitudes subservientes perante o poderio norte-americano.
No Brasil, o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) também buscou alinhamento com os Estados Unidos, embora em uma intensidade bem abaixo dos governos Menem. Ao contrário, o ex-presidente Collor não apoiou a Guerra do Golfo Pérsico (1991). Em um artigo-manifesto, o embaixador Paulo Nogueira Batista resumiu, de forma crítica e direta, a orientação internacional brasileira e de muitos outros países da região nesse período: “o ex-presidente, como seus colegas latino-americanos, trabalharia com uma visão unipolar do mundo, com a emergência de uma ‘nova ordem internacional’ […] Confundiu força militar com força econômica, enxergando tendência à unipolaridade onde se caminha para a multipolaridade, fortaleza onde havia sinais de fraqueza”.[5] O autor caracterizou como um retrocesso a política externa do governo Collor (1990-92).
Quando analisamos a visita oficial do presidente Jair Bolsonaro e de parte de seus ministros aos Estados Unidos em meados de março de 2019, durante a qual o governo aderiu de forma quase incondicional aos ditames da política externa dos Estados Unidos, a palavra “retrocesso” parece insuficiente para descrever tamanha subserviência a que o presidente submeteu o país. O conjunto dos compromissos assumidos nessa viagem bem como o entusiasmo e o deslumbramento do presidente e os integrantes de sua comitiva nos remetem a uma versão mais radical das “relações carnais” dos governos Menem.
Nesses últimos 30 anos as transformações foram intensas nas diversas áreas das relações internacionais. No entanto, a visão que o governo Bolsonaro tem dos Estados Unidos parece congelada no tempo. Em pouco menos de 100 dias, os sacrifícios que seu governo se dispõe a fazer para dar provas de que “tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” se acumulam: transferência da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, saída da Unasul, possível recuo na coalizão BRICS acompanhadas de declarações ríspidas sobre a China, base militar dos EUA no Brasil, disposição para ir às vias de fato contra o governo de Nicolas Maduro e o desengajamento paulatino do Mercosul.
A posição de extrema-direita do presidente Jair Bolsonaro também fez parte de suas declarações sobre a imigração no mundo contemporâneo: tratou os imigrantes como criminosos e defendeu a construção de uma muralha na fronteira dos Estados Unidos com o México, uma obsessão do seu ídolo, o presidente Trump.[6] Faltou pouco para o governo Bolsonaro oferecer recursos do BNDES para financiar o muro.
O fato é que os resultados desse empenho político são incertos. Fernando Collor não foi correspondido e Menem acabou na rua da amargura. A falta de uma orientação na política externa brasileira levou Peter Hakim a lembrar ao presidente e sua comitiva que “países não têm amigos, têm interesses”.[7]
Desde sua posse, em janeiro de 2017, o presidente Donald Trump tem dedicado atenção especial à política comercial. A sua primeira medida de grande envergadura nessa área foi retirar os Estados Unidos da Parceria Transpacífico (TPP) nos primeiros dias de seu governo. A TPP era uma peça central na estratégia geopolítica e comercial do ex-presidente Barack Obama. Em seguida, Trump passou a desferir fortes ataques ao sistema multilateral de comércio e a exigir que a China agisse a partir da lógica do comércio justo. Para Trump a política de fair trade significa proteger e ampliar os empregos nos Estados Unidos. Nos últimos vinte anos, nem sempre a coerência foi uma constante na política comercial norte-americana, em que “o discurso do livre-comércio convive com o elevado protecionismo agrícola”.[8] É a América em primeiro. Trump não esconde o seu “neoliberalismo patriótico”. Na área comercial e econômica é onde ele mais dispende energia política para justificar o seu protecionismo.
Apostando em uma possível reeleição do seu ídolo, o presidente Jair Bolsonaro e os ministros da comitiva fizeram concessões unilaterais ao governo Trump: pôs fim à exigência de visto para os cidadãos norte-americanos (depende ainda de confirmação pelo Congresso), entregou a Base de Alcântara e abriu mão da condição de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio. A “grande conquista”, de acordo com o presidente, teria sido o apoio do governo Trump para o ingresso do Brasil na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Porém, o governo brasileiro não consegue explicar quais são de fato os ganhos do ingresso do país nessa organização e como isso se daria.[9] Proposta pelo governo do ex-presidente Michel Temer (2016-2018) e coordenada pelo seu ex-Ministro da Fazenda Henrique Meireles, a entrada na OCDE nunca foi uma pauta da diplomacia brasileira.
Os compromissos assumidos pelo governo de Jair Bolsonaro na visita oficial aos Estados Unidos, que representam parte da agenda do alinhamento automático na qual ele pretende enredar o Brasil, são os primeiros passos para o estabelecimento de “relações carnais” com a potência mundial. Ocorre que desde meados do século XX o Brasil tem construído uma política externa fundamentada no interesse nacional e na busca do desenvolvimento e com autonomia. O alinhamento automático esteve presente em poucos momentos na trajetória do País.
A fúria com a qual o presidente Jair Bolsonaro e o seu Ministro das Relações Exteriores atacam a política externa do País desenvolvida desde meados dos anos 1990 não se justifica. Em seus discursos, enfatizam que é necessário “desconstruir” a política errática que o Brasil tem feito desde então. O que então será a nova política externa brasileira? Qual o compromisso com o multilateralismo? E a integração regional? Qual a posição brasileira sobre as negociações das mudanças climáticas em curso? Qual será a estratégia do país na coalizão BRICS? Esses e outros temas cruciais da agenda internacional do Brasil continuam em suspenso, pois parecem estar condicionados ao desenrolar do alinhamento automático com os Estados Unidos.
Uma semana antes da comitiva presidencial embarcar rumo aos Estados Unidos, o Ministro das Relações Exteriores declarou que o Brasil não irá vender a alma para exportar minério de ferro e soja.[10] O arroubo do Ministro era endereçado ao principal parceiro comercial do país, a China. Contudo, após a visita oficial aos Estados Unidos essa declaração perdeu muito de sua força. Como diz o ditado popular, ninguém pode vender algo que não tem. Se depender da vontade do governo a tendência é que a alma brasileira seja entregue de vez na sua próxima visita ao ídolo, Donald Trump.
[1] Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais da UnB e Professor visitante no Arrighi Center for Global Studies na Johns Hopkins University. Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INEU).
[2] RUSSEL, Robert; TOKATLIAN, Juan. G. El Lugar de Brasil en la Política Exterior Argentina. Buenos Aires: Fundo de Cultura Econômica, 2003.
[3] Ibidem, p. 46-47.
[4] SCUDÉ, Carlos. El Realismo de los Estados débiles. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1995, principalmente os capítulos 5 e 6.
[5] BATISTA, Paulo Nogueira. A Política externa de Collor: Modernização ou retrocesso? Política Externa, vol. 1, nº 4, p. 111, mar.- mai. 1993.
[6] BBC BRASIL. ‘Não bastasse Trump, agora Bolsonaro nos cria dificuldades’, diz líder de associação de imigrantes brasileiros nos EUA. 19. março. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47619269 Acesso em: 19. março. 2019.
[7] VALOR. ‘Bolsonaro é presente para Trump, mas alinhamento afoito pode ser venenoso. Entrevista com Peter Hakim. Disponível em: https://www.valor.com.br/brasil/6164867/bolsonaro-e-presente-para-trump-mas-alinhamento-afoito-pode-ser-venenoso. Acesso em:18. março. 2018.
[8] VIGEVANI, Tullo; LIMA, Thiago; MENDONÇA, Filipe. Poder e comércio. São Paulo: Unesp, 2018, p. 23.
[9] FOLHA DE S. Paulo. Após Bolsonaro abrir mão de benefício na OMC, Trump apoia entrada do Brasil na OCDE. 19. março. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/apos-elogios-e-concessoes-de-bolsonaro-trump-apoia-entrada-do-brasil-na-ocde.shtml Acesso em: 19. março. 2019.
[10] FOLHA DE S. PAULO. A novos diplomatas, Araújo diz que país ‘não venderá alma’ para exportar minério de ferro e soja. 11. março.2019b. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/a-novos-diplomatas-araujo-diz-que-pais-nao-vendera-alma-para-exportar-minerio-de-ferro-e-soja.shtml Acesso em: 11. março.2019.
Referência imagética:
Foto: Alan Santos/PR – Palácio do Planalto