Rodrigo Cruz Lopes[1]
30 de janeiro de 2025
Perto do natal de 1977, em plena ditadura militar, a edição nº 53 da Revista IstoÉ foi publicada toda voltada a abordar a imprensa homossexual no Brasil. Para nossa análise, duas matérias publicadas pelo periódico importam: a primeira sobre o processo sofrido pelo jornalista Celso Curi, do jornal Última Hora. Enquadrado na Lei de Imprensa (5.250/1967), Curi estava sendo processado por “ofensa à moral e aos bons costumes” e por “promover a licença de costumes, o homossexualismo especificamente”, por veicular em sua coluna “correios elegantes” entre homens homossexuais que gostariam de se encontrar. A IstoÉ o trata como o “primeiro mártir do homossexualismo brasileiro”. A segunda matéria que salta aos olhos é sobre o lançamento de “um novo e importante jornal gay”, ainda sem nome, que iria em sua primeira edição também sair em defesa de Celso Curi, fundado por figuras atualmente conhecidas como o ex-roteirista da Globo, Aguinaldo Silva, o professor da UFRJ, Peter Fry e o dramaturgo João Silvério Trevisan.
Mal passara o ano novo de 1978, e a edição da IstoÉ já estaria na mesa do gabinete do ministro da justiça Armando Falcão, protagonista de um dossiê intitulado “IstoÉ – apologia ao homossexualismo”. A edição de dezembro caiu no desgosto dos militares e dos agentes da Polícia Federal que citam que a revista é “conhecida pela defesa das ideias-forças-esquerdistas” e que “a reportagem em questão, toda ela um elogio à homossexualidade masculina, apresenta aspectos chocantes para os moldes educacionais da sociedade brasileira”[2]. Durante o dossiê, preocupam-se particularmente com o lançamento do “novo e importante jornal gay” que também tinha sido noticiado em outros lugares como Folha de São Paulo e o Pasquim.
Ironicamente, se a IstoÉ tratou Celso Curi como primeiro mártir do “homossexualismo” brasileiro, a revista foi a segunda. O dossiê se transforma em uma peça de acusação da Polícia Federal que também processa a revista com base na Lei de Imprensa (5.250/1967) por “ofensa à moral e aos bons costumes” e “apologia ao homossexualismo”. Em abril daquele ano, o processo circulou no Rio de Janeiro e, durante o inquérito, voltou ao gabinete do Ministério da Justiça por um motivo peculiar: o novo e importante jornal havia sido publicado e ganhou um nome, Lampião da Esquina. Lampião nasce, como prometido, já defendendo Celso Curi e sua primeira edição logo se torna protagonista de um dossiê próprio na Polícia Federal que também o processa, com base na Lei de Imprensa (5.250/67) por “ofensa à moral e aos bons costumes” e “propagação homossexual”. Se tornando, se levarmos a tipificação da IstoÉ, o terceiro mártir do homossexualismo brasileiro.
A Lei de Imprensa (5.250/1967) aplicada pela Polícia Federal nestes casos era usualmente utilizada como mecanismo de controle da imprensa em alternativa à Censura Prévia, principalmente pós-1976, quando as promessas de abertura democrática fazem o decreto-lei cair em desuso. Grosso modo, a diferença entre elas é que a Censura Prévia dependia da figura de um censor que fiscalizasse publicações antes de irem para circulação. A Lei de Imprensa, por outro lado, estava sujeita à instauração de um processo jurídico que dependendo da sentença final podia tirar de circulação a publicação, fechar as portas do jornal ou até levar os jornalistas responsáveis presos até um ano. Ambas, contudo, citam não tolerar “atentados contra a moral e aos bons costumes”, mas nenhuma lei brasileira nunca condenou a homossexualidade. Pergunta-se, portanto, como isso foi possível nos casos citados acima?
Quando fala-se em “moral e bons costumes” é bom destrincharmos de que moral estamos falando. Em documentos da ditadura militar brasileira fica evidente que o objetivo do golpe era disciplinar a sexualidade nacional em torno de uma heterossexualidade cristã. O ministro da justiça de Emílio Médici, Alfredo Buzaid, em seu texto “Em Defesa Da moral e Dos Bons Costumes”[3]de 1969 cita que “o Estado se viu na contingência de executar [a legislação repressiva], a fim de reservar a integridade da família brasileira e a sua moralidade tradicional”. Desta forma, a linha do autoritarismo brasileiro foi a seguinte: se a família brasileira é o pilar moral, tudo considerado fora dela, como a homossexualidade, deve ser reprimido.
Neste sentido, seguindo os passos do processo contra o Lampião da Esquina nota-se em primeiro lugar que os três casos citados não são isolados, o periódico aparece com pelos menos mais três jornais em documentos de vigilância do governo federal: Gente Gay, A Notícia e O Repórter que também são processados baseados na Lei de Imprensa por conteúdos ligados a homossexualidade ou liberdade sexual. Além do mais, fica evidente que na interpretação dos agentes de vigilância do Estado, promover conteúdo público sobre a homossexualidade, era diretamente ofender a moral e aos bons costumes. Isto não significa dizer que a homossexualidade foi tipicamente crime durante a ditadura, mas que, em muitos casos, ela foi considerada como tal.
O caso do Lampião é emblemático, pois além da defesa jurídica, o jornal articulou ao redor de si uma defesa política e social da homossexualidade junto aos seus leitores, a movimentos sociais da época, inclusive internacionais e outros membros da imprensa. Logo, o processo contra o Lampião passa da representação de um caso de criminalização da homossexualidade, para ser considerado de forma mais geral um abuso de poder contra a liberdade de expressão como um todo e um sinal desconfiança sobre as promessas de abertura democrática. Afinal, como pode haver a abertura se ainda havia censura? Um exemplo do impacto deste processo é que em janeiro de 1979, a Folha de São Paulo publica editorial “Lampião, um processo duvidoso” em defesa de Celso Curi e Lampião, citando que “O Estado percebe a ausência de bases, a dificuldade de marcar jurisprudência sobre o homossexualismo e para levar adiante suas determinações lança mão de artifício, que não poderiam ser outros que não o arsenal das leis de exceção”. Além disso, junto ao Grupo Somos, movimento homossexual do Rio de Janeiro, o jornal consegue um abaixo assinado contra seu processo com a rubrica de nomes como Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Suplicy – que então era deputado estadual, Fernanda Montenegro, Nicete Bruno, Dercy Gonçalves dentre outras figuras de renome.
Ao final do inquérito, em outubro de 1979, o Ministério Público não aceita a acusação com a justificativa de que “a publicação inquinada de ofensiva à moral pública, pode ofender a moral de alguém, mas não de todos. Portanto é relativo e não absoluto o conceito de moral daquele que condena essas publicações”. O fato é tratado como uma absolvição pelos membros do jornal e já acena para uma disputa sobre moralidade no final dos anos de 1970, após a anistia e início da abertura democrática. O jornal continua suas publicações até julho de 1981, contudo, documentos do Serviço Nacional de Informações vigiam o jornal e pedem novamente seu processo até 1983, o que nunca ocorreu. Isto abre margem para pensarmos os mecanismos de vigilância da ditadura, sua extensão e método, uma vez que que o “ novo e importante jornal gay” foi fiscalizado pelos agentes do regime antes mesmo de ter um nome até depois de fechar suas portas, às vésperas da abertura democrática.
Os casos demonstrados, em particular do Lampião da Esquina, demonstram de forma específica a situação da homossexualidade durante a ditadura, considerada uma subversão comunista a princípio, para depois se tornar uma ofensa à moral, sempre na linha tênue entre legalidade e ilegalidade. De forma mais geral, pode-se perceber também como no ambiente da abertura democrática dos anos 1970 e 1980 convivia o desejo por liberdade com um autoritarismo ainda vigente que queria tutelar os caminhos da democracia representado aqui pelos mecanismos perpétuos de vigilância do regime. Ao mesmo tempo, como este desejo por liberdade transformou a mesma homossexualidade, a princípio considerada indesejável socialmente como a síntese da liberdade sexual e de expressão, representando como a vontade de transitar para a democracia não significava apenas uma abertura de regime político como também uma abertura para novas moralidades permearem o cenário nacional.
Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
[1]Cientista Social, Mestre e Doutorando em Ciência Política pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
[2] Documento consultado na plataforma SIAN sob o código: BR_RJANRIO_TT_0_MCP_PRO_1135_d0001de000
[3]Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/14088/1/97979%20Em%20defesa%20da%20moral%20e%20dos%20bons%20costumes.pdf <acessado 27/01/2025>
Fonte Imagética: Capa da Revista Lampião de Abril de 1978.