Flavio Williges1
29 de setembro de 2025
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O Boletim Lua Nova republica a resenha de Flavio Williges sobre a obra recém-lançada de Alessandro Pinzani e Walquíria Domingues Leão Rego, “Vidas Roubadas: sofrimento social e pobreza”, publicada originalmente no site da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia em 10 de setembro de 2025.
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Algumas das marcas mais visíveis da pobreza no Brasil estão em índices conhecidos: analfabetismo, fome, violência. Outras, menos evidentes, funcionam como um pano de fundo invisível da existência: a humilhação cotidiana, um sentido persistente de inferioridade e impotência diante da vida. É esse aspecto que Alessandro Pinzani e Walquíria Leão Rego buscam iluminar em Vidas Roubadas: sofrimento social e pobreza (Unesp, 2025).
O livro é continuação de Vozes do Bolsa Família (2013), em que os autores investigaram os efeitos do programa social por meio de entrevistas com beneficiários. Se naquela ocasião o foco recaía nos impactos positivos da conquista de autonomia moral, política e econômica advindas de políticas redistributivas, desta vez a ênfase foi direcionada à compreensão da experiência de sofrimento social produzida por pobreza e exclusão.
O estudo vai bem além de uma mera análise teórica. Ele conta, por meio de seis entrevistas longas e aprofundadas, realizadas no sertão nordestino, “fragmentos da história de vida” de cinco mulheres (Fátima, Níobe, Edineide, Graciele, Claudineide) e um homem (Jorge), que ilustram e substanciam o debate conceitual e sociológico. Os relatos surgem não como biografia ou indícios anedóticos, mas como conceitos encarnados. Fátima fala da sede como sensação que atravessa corpo e espírito; Jorge descreve o racismo como um “dragão” que estrutura sua vida; outras entrevistadas relatam abusos, marginalização e a dificuldade de traçar qualquer horizonte de autonomia. O livro permite, nessa perspectiva, um tipo de experiência cognitiva que poderia ser chamada de logopática (Cabrera, 2006), por envolver uma dimensão ao mesmo tempo racional e emocional de apreensão de conceitos, na medida em que explora elementos teóricos e sensíveis na construção de sua abordagem.
Ao dar voz a essas experiências, Vidas Roubadas desmonta estereótipos ainda frequentes no discurso público, como o do pobre preguiçoso, dependente de benefícios, que teria filhos para viver do Estado. As narrativas revelam justamente o oposto: vidas moldadas por obstáculos estruturais, em que programas sociais como o Bolsa Família representam não dependência, mas abertura de possibilidades, sobretudo para os filhos, cuja frequência escolar projeta um futuro antes interditado.
Essa dimensão política se articula a uma reflexão filosófica. O livro ecoa Adorno, citado em epígrafe, para quem “a necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade”. Não se trata apenas de medir a pobreza, mas de compreendê-la em sua dimensão subjetiva. Ao fazê-lo, Pinzani e Rego aproximam-se da tradição moral de análise das emoções, através de autoras como Iris Murdoch (2013) e Martha Nussbaum (2015), mas também na direção dos estudos culturais e críticos da afetividade de Sara Ahmed (2004), tradições, ambas, que insistem no papel das emoções e afetos como formas de apreensão do real. A consequência é um deslocamento importante: a verdade não se alcança apesar da dor, mas com ela, quando o sofrimento deixa de ser ruído e se converte em linguagem. É dessa escuta que nasce a filosofia que o livro pratica.
Vidas Roubadas é, assim, uma contribuição notável aos estudos filosóficos e sociais brasileiros. Combina rigor científico, densidade conceitual e coragem política, afirmando que a filosofia e as ciências humanas praticadas em nossas universidades não precisam importar da Europa ou Estados Unidos seus paradigmas inovadores: eles podem nascer, e com vigor, da escuta das vidas roubadas no sertão brasileiro.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências
AHMED, Sara. The cultural politics of emotion. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004.
CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
MURDOCH, Iris. A soberania do bem. São Paulo: Editora Unesp, 2013.NUSSBAUM, Martha. Political emotions: why love matters for justice. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015.
- Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). ↩︎