Wânia Pasinato
Paulo Cesar Endo
Andrei Koerner
O Boletim Lua Nova compartilha a apresentação do número 135 dos Cadernos CEDEC, uma publicação seriada e trimestral que apresenta resultados de estudos e pesquisas sobre temas de interesse do Centro. O número 135 tem como tema “Construção e Desmonte das Políticas Antirracistas e de Promoção da Igualdade Racial”, e se refere a eventos realizados em 2022.
***
Os ataques ao governo Dilma Rousseff iniciados em 2013 voltaram-se contra um governo legítimo e tiveram um propósito claramente definido: bloquear o reconhecimento, a consolidação e a promoção dos direitos da maioria da população. Esse reconhecimento se traduziu ao longo dos últimos anos em políticas institucionais de direitos humanos que se integraram num processo gradual e cumulativo para tornar efetivos os direitos da maioria, se não da totalidade, da população. As políticas não têm sido obra exclusiva de uma liderança, partido político ou grupo social, pois são produzidas por um trabalho coletivo e participativo, multifacetado e capilarizado que se vale de leis, de políticas estatais nos diversos níveis e da atuação conjunta da administração com movimentos e organizações da sociedade. Não é possível dizer que tenham um objetivo único, pois é um trabalho diversificado e abrangente, de caráter substantivo, concretizador e diferenciado. Por isso, ele não é desprovido de tensões, conflitos, erros, que sempre demandaram diálogo, negociações, avaliações, ajustes, correções. Mas essa abordagem e orientação geral produziu nítidos resultados: a partir dos princípios da democracia constitucional e por meio dos seus processos, foi possível vetorizar um grande conjunto de transformações em direção à mudança do caráter historicamente excludente, explorador e desigual da sociedade brasileira, de modo a criar as condições para a emergência de formas de sociabilidade, sensibilidades e sentidos políticos de uma ordem social justa no nosso país.
A orientação das políticas estatais para a democratização e justiça social na sociedade brasileira foi um dos principais alvos do golpe parlamentar de 2016. Seu desmonte foi o foco das mudanças legislativas antissociais do governo Temer e, com mais gravidade, a sua destruição é o propósito do governo protofascista eleito em 2018. O atual governante reitera os ataques à democracia constitucional e aos direitos humanos que marcaram sua atuação parlamentar, promovendo discursos de ódio e repetidas mobilizações incitando, clara e abertamente, seus apoiadores a atitudes golpistas e antidemocráticas. De muitas maneiras o governo vigente promove verdadeiras antipolíticas de direitos humanos: mudanças legislativas, o fechamento de órgãos e colegiados voltados à promoção de direitos, cortes orçamentários em políticas de direitos, nomeações de dirigentes inaptos ou hostis às suas funções e, ainda, a pura e simples inação diante de violações ou condições precárias enfrentadas pela maioria da população. Os programas de direitos humanos que estavam em andamento no início do atual mandato presidencial foram esvaziados, inviabilizados ou desviados dos seus propósitos, ao mesmo tempo em que outras ações indiretas precarizaram a condição dos grupos protegidos por direitos ou apoiaram aqueles que os atacaram.
É desafiador que, passados três anos desde o início deste mandato, o governo federal conte com partidos e parlamentares para dar sustentação às suas políticas e revogar a legislação de controle público e de promoção de direitos, valendo-se do uso privado e não transparente de recursos orçamentários. O mais grave é que grupos que apoiam o atual governante cristalizaram-se e, juntos, têm sido capazes de manter ativo o que há de mais nefasto historicamente na sociedade brasileira: uma mentalidade que combina política oligárquica, moral conservadora e a naturalização de relações sociais hierárquicas e excludentes que, por sua vez, é apoiada por vários grupos e frações da sociedade brasileira. Essa mentalidade havia sido adormecida parcialmente pelas políticas de inspiração democrática; contudo, sentindo-se fortalecidos e apoiados pelo atual presidente, aqueles grupos reagiram com atos, ações e discursos de agressividade e ressentimento que perduram e perdurarão no futuro. Do mesmo modo, sem perda de tempo, organizam-se pelo país muitas iniciativas para manter o atual governo na presidência, bem como para alcançar governos, prefeituras e cadeiras nos parlamentos. Assim, as políticas de direitos humanos, desde que foi iniciado o ciclo da redemocratização, hoje interrompido, vêm sendo desmanteladas exatamente pelas suas qualidades e fragilidades: a sua capacidade de promover mudanças nas instituições, mentalidades e relações sociais iníquas de nossa sociedade e uma institucionalidade frágil que sofre com as muitas formas de enfraquecimento, descaracterização, ataque e descaso empreendidos por governos.
A comunidade acadêmica também tem sido afetada por esse processo de desmantelamento sendo alvo de sucessivos ataques do governo atual. A Universidade soube responder às violações de sua autonomia institucional, às tentativas de intimidação e de desqualificação, mas padeceu enormemente com as mudanças de políticas federais para a educação de nível superior. É essencial preservar sua vocação de criadora de pensamento laico e crítico, de fator de inclusão e mobilidade social e de produtora de conhecimentos que estimulam o desenvolvimento econômico e a mudança social.
Posicionando-se diante dos ataques, o Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH) do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP) propôs-se a colaborar na construção da memória institucional das políticas de Estado de direitos humanos no Brasil desde a democratização, por meio da realização de um ciclo de eventos, debates e manifestos. Temos procurado trabalhar nesse período difícil para que a Universidade contribua para agregar forças, competências, organizações e pessoas pelos direitos humanos no Brasil.
Em 2019, o IEA/USP apoiou a realização de encontros de ex-ministros e ex-ministras que estiveram à frente das pastas de Meio Ambiente, Educação e Cultura nos anos 1990 a 2016. A cada encontro a celebração dos avanços foi mesclada com o reconhecimento das perdas provocadas pelas diretrizes políticas atuais e manifestos foram divulgados e entregues aos atuais ministérios. Reconhecendo a força desses eventos e a importância em preservar a memória do desenvolvimento das políticas de direitos humanos, o GPDH organizou o Ciclo de Memórias sobre a Política Institucional.
O primeiro evento do ciclo, realizado em 14 de maio de 2021, abordou a “Construção e Desmonte dos Direitos Humanos e Políticas para Mulheres no Brasil” com a participação de expresidentas do Conselho Nacional de Direitos da Mulher e ex-ministras da Secretaria de Políticas para Mulheres e do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos entre 1985 e 2016.
O segundo evento do ciclo, realizado em 1° de outubro de 2021, foi a “Construção e Desmonte das Políticas Nacionais de Direitos Humanos no Brasil”, que reuniu ex-secretários, ex-secretárias, ex-ministros e ex-ministras que ocuparam as Secretarias dos Direitos Humanos desde a sua criação até o governo da presidenta Dilma Rousseff. Em 23 de novembro de 2021, outro evento debateu o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o Brasil. Em 2022 será organizado um evento sobre o desmonte das políticas de combate à tortura, a violência institucional e outros a serem definidos.
O IEA é, por sua proposta e trajetória, o espaço por excelência para realizarmos a vocação e a tarefa crítica da Universidade. A direção atual dos professores Guilherme Ary Plonsky e Rosely de Deus Lopes deu pleno apoio à iniciativa do GPDH, permitindo que ela tenha as condições necessárias para obter a abrangência e a repercussão adequados ao seu propósito, mas também por entenderem que as ameaças atuais atingem a vida acadêmica e universitária no seu cerne. Faz-se isso debilitando os auxílios à pesquisa ou desviando recursos para pesquisas específicas, vigiando e patrulhando o ensino e descaracterizando a extensão.
O Cedec, centro de pesquisa e análise criado em 1976 durante a redemocratização, tem em sua trajetória a marca de se posicionar diante das ameaças e desafios à democracia. A sua diretoria atual, presidida pelo professor Bernardo Ricupero, apoiou a organização dos eventos e a publicação das sessões e dos documentos dos eventos em seus Cadernos.
Assim, com a organização do ciclo, o GPDH propôs-se a promover o diálogo entre convidados e convidadas para que construam um diagnóstico conjunto sobre as políticas e institucionalidades dos direitos humanos no Brasil. Nosso propósito é também tornar pública nossa posição coletiva contrária à destruição das políticas de direitos humanos promovidas especialmente pelo governo atual e defender a união de todos/as os/as democratas para a (re) construção dessas políticas. Atuando e trabalhando como polo articulador para o pensamento, a ação e a produção científica em e pelos direitos humanos, as/os pesquisadoras/es que compõem o GPDH se apresentam como uma das respostas necessárias e possíveis diante dos graves riscos pelos quais atravessa o país e, particularmente, como defensores da importância conferida aos direitos humanos em sua centralidade na construção de qualquer sentido que a democracia possa e venha a ter hoje e no futuro.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Fonte Imagética: Capa do número 135 dos Cadernos CEDEC.