Antônio Luiz Arquetti Faraco Junior[1]
02 de dezembro de 2024
Este texto é fruto de artigo recém publicado pelo autor na Revista de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (RAP/FGV). O artigo na íntegra pode ser lido aqui.
Desde Max Weber, a politização da burocracia, prática que envolve a nomeação ou designação de pessoas em órgãos governamentais pelo chefe do executivo, tem merecido a atenção de especialistas pelo impacto que pode provocar no desempenho das políticas públicas e na governança (Kennedy , 2015; Lewis , 2008). Sua utilização está relacionada à tensão entre controle político e competência técnica na Administração Pública, sendo geralmente aplicada para estabelecer formas de controle e supervisão da burocracia estatal e para o atendimento às demandas de patronagem, contribuindo para construção de apoio político às propostas e ações do governante.
Partindo de uma perspectiva teórica ancorada em modelos do tipo principal-agente, empregados pela Teoria da Escolha Pública e considerando os incentivos para a politização capazes de mobilizar atores racionais, auto interessados, agindo estrategicamente para alcançar seus objetivos dentro de um “mercado político” e envolvidos em dilemas de delegação, o artigo “O espaço da politização na estrutura do Governo Federal brasileiro, 1999-2021”, publicado originalmente na Revista de Administração Pública (FGV/EBAPE) [2] e resultado de pesquisa financiada pela CAPES[3], procurou responder à questão: qual foi o tamanho do espaço que o presidente brasileiro possuiu para politizações na estrutura da burocracia pública federal no período 1999-2021? Como a politização possui relevância estratégica, o objetivo foi analisar a extensão e a composição de seu espaço por meio das nomeações e designações discricionárias do presidente, visando identificar padrões que esclarecessem a estratégia da politização.
O dimensionamento do espaço da politização foi feito empregando metodologia descritiva, baseada em coleta de dados obtidos do Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal, abrangendo cargos de livre nomeação e exoneração, como ministérios, cargos de natureza especial, cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) e as funções de confiança. As funções de confiança, desempenhadas apenas por servidores efetivos, foram incluídas por conta do sistema de designação discricionária, que não estabelece uma distinção clara entre o comando técnico-administrativo e o comando político. Isso resulta em designações para cargos de comando técnico-administrativo baseadas em critérios de confiança, frequentemente associados às indicações para posições de comando político (Graef; Carmo, 2008).
O artigo destacou que ministérios e cargos de natureza especial foram utilizados em estratégias de centralização que buscavam intensificar o controle e a supervisão presidencial sobre as agências (Howell; Lewis, 2002; Inácio, 2018), e em estratégias de acomodação da base parlamentar de sustentação do governo, contribuindo para a estabilização na relação Executivo-Legislativo, em uma lógica associada ao presidencialismo de coalizão (Abranches, 1988; Amorim Neto, 2018; Figueiredo; Limongi, 1999).
Ademais, o artigo enfatizou que as pesquisas sobre politização da burocracia precisam incluir as funções de confiança, pois o critério de designação dessas funções é político. Quando a análise é ampliada para incluir as funções de confiança, há uma mudança de padrão na politização. Inicialmente, grande parte da politização era feita utilizando-se os cargos, e a discricionariedade da nomeação era maior. Ao longo do período analisado, foi ampliada a exigência de um percentual mínimo de servidores de carreira nas indicações para os cargos DAS (ver Tabela 1) e, a partir de 2016, houve crescimento expressivo das funções de confiança, exercidas apenas por esses servidores. Esse crescimento das funções de confiança se deu quase na mesma proporção da expressiva diminuição dos cargos DAS, como se houvesse uma paulatina substituição de um pelo outro (ver Gráfico 1). Esses fatos, combinados, representaram a valorização do servidor de carreira na estratégia de politização.
Tabela 1
Limites percentuais mínimos de ocupação de cargos DAS por servidores de carreira, 1979-2021
CARGOS | Figueiredo | Itamar | Lula 1 | Temer | Bolsonaro |
Decreto-lei nº 1.660/1979, art. 10. | Lei nº 8.460/1992, art. 14. | Decreto nº 5.497/2005, art. 1º. | Decreto nº 9.021/2017, art. 1º. | Lei nº 14.204/2021, art. 13, III. Decreto nº 10.829/2021, art. 27. | |
DAS 1 | 50% | 50% | 75% | 50% | 60% |
DAS 2 | 50% | 50% | 75% | 50% | 60% |
DAS 3 | – | 50% | 75% | 50% | 60% |
DAS 4 | – | – | 50% | 50% | 60% |
DAS 5 | – | – | – | 60% | 60% |
DAS 6 | – | – | – | 60% | 60% |
Fonte: D’Araújo e Lameirão (2009) e as normas citadas nesta Tabela.
Gráfico 1
Número de cargos de natureza especial, cargos DAS e funções de confiança, Governo Federal, Brasil, 1999-2021
Fonte: Elaborado pelo autor com base nos dados do Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal.
O novo padrão de politização contribuiu para reduzir a discricionariedade presidencial, pois impôs ao presidente a observação da condição de servidor de carreira para fazer a nomeação para um cargo ou a designação para uma função.
Desta forma, o artigo demonstrou que o tamanho do espaço para politização não foi alterado substancialmente no período analisado, mesmo quando considerada a grande redução de cargos DAS (Gráfico 2).
Gráfico 2
Cargos sujeitos à politização, exceto ministérios, e seus percentuais em relação ao total de servidores ativos, Governo Federal, Brasil, 1999-2021
Fonte: Elaborado pelo autor com base nos dados do Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal.
Também demonstrou um novo padrão da politização, marcado pelo maior uso das funções de confiança, desempenhadas exclusivamente por servidores de carreira, e pela valorização desses servidores também entre as nomeações para cargos DAS (Tabela 1 e Gráfico 1). A princípio, essa mudança de padrão parece atender a uma visão de valorização da perspectiva meritocrática ou weberiana de serviço público (Graef, 2008; Martello, 2016), tornando esse serviço mais profissionalizado (Lopez; Praça, 2018) e, com isso, mais eficiente, embora, paradoxalmente, tenha tido como resultado a manutenção dos níveis de politização pelo efeito da natureza mista da função comissionada (política e técnica).
Mas há que se considerar os efeitos indesejados da ampliação do espaço do servidor de carreira também (Loureiro; Abrucio, 1999), como os apontados por autores como Crozier (2017), Grindle (2012), Niskanen (2017), Peters (2018), Weber (1991, 1999): excessiva estabilidade, rigidez, incompetência, comportamento oportunista, capacidade limitada de resposta às necessidades dos cidadãos por parte da burocracia, tensão em relação ao padrão decisório posto pela democracia. Além disso, as nomeações políticas não possuem apenas efeitos negativos, como a ampliação da corrupção ou a ineficiência, mas podem ajudar a aumentar a capacidade estatal, promover a governabilidade e facilitar a implementação de reformas (Grindle, 2012).
Atualmente, em países europeus desenvolvidos, como Alemanha, Dinamarca, Espanha, França e Reino Unido, para citar alguns exemplos, há um debate sobre como encontrar maneiras de repolitizar o serviço público e reduzir a independência da burocracia na formulação de políticas, de modo a devolver aos políticos a capacidade de influenciar os rumos das políticas públicas (Lopez; Praça, 2018; Peters; Pierre, 2004).
Como visto, não há um consenso na literatura sobre qual o melhor modelo que equilibre funções técnicas e políticas na Administração Pública. No caso brasileiro, o impacto da mudança apontada no artigo ainda está por ser adequadamente mensurado e constitui uma importante agenda de pesquisa futura. Ela pode também indicar uma estratégia de politização mais preocupada com o controle da burocracia, de seu papel no desenho e na implementação das políticas públicas, em relação à repartição do espaço do comando da gestão entre parceiros políticos. Mas o artigo não foi conclusivo a esse respeito.
Em certa medida, ele provoca o raciocínio sobre como os atores políticos podem reagir a um cenário no qual a politização passa a ocorrer mais entre os servidores de carreira. Isso poderia resultar em maior partidarização da burocracia? Parte da literatura especializada, analisando cargos DAS, têm explorado a partidarização (filiação partidária) como indicadora da politização (Lopez; Silva, 2019; Praça; Freitas; Hoepers, 2012), mas, apesar de a filiação ser um aspecto da politização, o vínculo formal com um partido não é o único critério que revela a afinidade com o indicado, o que remete aos desafios metodológicos de se tentar mensurar algo que muitos querem esconder.
Por fim, cabe ressaltar que nem sempre politizar significa obter controle eficaz sobre a burocracia. A mera politização de uma agência não garante necessariamente uma resposta positiva às demandas do presidente. Existem questões de ordem técnica envolvidas que podem comprometer o desempenho das nomeações ou designações políticas e das agências sujeitas a essas indicações (Lewis, 2008, Kennedy, 2015). Além disso, é essencial considerar as reações da burocracia à tentativa de controle por meio da politização, como o boicote ou a sabotagem em relação aos indicados pelo presidente (O’LEARY, 2014), ou até mesmo o uso de manobras processuais para evitar o controle político (POTTER, 2019), entre outras formas de reação.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
REFERÊNCIAS
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FARACO JUNIOR, A. L. A. O espaço da politização na estrutura do Governo Federal brasileiro, 1999-2021. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 58, n. 4, p. e2023–0264, 2024. DOI: 10.1590/0034-761220230264. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/91779. Acesso em: 6 out. 2024.
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[1] Doutorando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Especialista em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Especialista em Sociologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: antoniofaracojr@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8043-9280..
[2] FARACO JUNIOR, A. L. A. O espaço da politização na estrutura do Governo Federal brasileiro, 1999-2021. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 58, n. 4, p. e2023–0264, 2024. DOI: 10.1590/0034-761220230264. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/91779. Acesso em: 6 out. 2024.
[3] O autor agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado concedida durante o desenvolvimento da pesquisa, por meio do Programa de Excelência Acadêmica (PROEX).
Referência imagética: Esplanada dos Ministérios. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=esplanada+dos+minist%C3%A9rios&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image