Felipe Adão[1]
Encontra-se atualmente em discussão no Senado Federal o Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 17/2021, a “Nova Reforma Trabalhista” de autoria do Deputado Federal Christino Aureo (PP/RJ), que tem como objetivo transformar em lei a Medida Provisória (MP) nº 1.045 de 28 de abril de 2021, que está prestes a vencer. O projeto de Lei em questão, já aprovado pela Câmara dos Deputados, consolida o “Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”, previsto na dita MP, e traz medidas complementares para o enfrentamento das consequências, no âmbito das relações de trabalho, da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. O Projeto justifica a necessidade de flexibilizar a legislação trabalhista a fim de aumentar a empregabilidade e inserir jovens no mercado de trabalho.
Ao lado dos artigos que renovam a possibilidade de suspensão temporária de contratos de trabalho e de redução proporcional de jornada e de salários no contexto da pandemia (nos termos da Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020, que atualmente não está em vigência), o projeto de lei introduz três novos programas com modalidades contratuais diferenciadas e propõe a alteração de diversos artigos da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) e do CPC (Código de Processo Civil). Dada a amplitude das modificações previstas no PLV, analistas o têm denominado de “minirreforma trabalhista”, pois representa a maior proposta de alteração da CLT desde a Reforma Trabalhista (Lei nº13.467/2017), aprovada durante o governo de Michel Temer (MDB).
Entidades como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Central Única de Trabalhadores (CUT) já alertaram para a inconstitucionalidade das alterações propostas pelo PLV[2] e temem que, se aprovado pelo Senado Federal, o projeto acentuará os quadros de precarização e de redução das garantias processuais iniciado com a Reforma Trabalhista, uma vez que introduz modalidades de labor sem vínculo empregatício, sem direito a férias remuneradas, 13º salário e FGTS, além de dificultar o acesso à Justiça e limitar a atuação dos Auditores Fiscais do Trabalho. De forma específica, o projeto também afetará decisivamente o enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil. Assim, este texto analisa algumas delas, pontuando inicialmente as alterações que trarão consequências diretas para o combate a esta prática e, em seguida, indicando as medidas de flexibilização de direitos trabalhistas que podem influenciar no aumento de casos de trabalho escravo no país. O intuito deste texto é, ao final, demonstrar a gravidade do PLV para o futuro do trabalho no Brasil.
O PLV nº17/2021 e o enfraquecimento do combate ao trabalho escravo
O PLV nº 17/2021, se aprovado, introduzirá na legislação trabalhista modificações que afetarão diretamente o enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil, principalmente pelo enfraquecimento das fiscalizações do trabalho e a limitação do acesso à Justiça. A seguir, comento algumas destas modificações em detalhe.
As alterações de artigos da CLT propostas pelo PLV nº 17/2021 estão concentradas em seu artigo 88. A primeira mudança que impactará negativamente o combate ao trabalho escravo é a modificação do artigo 626 da CLT para atribuir competência exclusiva das Auditorias Fiscais do Trabalho para o planejamento e execução de inspeções para verificação do cumprimento das normas de proteção ao trabalho, inclusive as relacionadas à segurança e à saúde do trabalho. Essa medida enfraquece diretamente o sistema multi-institucional de combate ao trabalho escravo no país, que conta com a atuação conjunta do atual Ministério do Trabalho e Previdência, Ministério Público do Trabalho, Vigilâncias Sanitárias (no âmbito do SUS), Polícia Militar e Defesa Civil, entidades historicamente parceiras em inspeções de resgate de trabalhadores em condições análogas à de escravo. Em um contexto de diminuição de verbas destinadas às ações fiscais do Ministério do Trabalho e Previdência e com a redução anual no quadro de auditores fiscais, a alteração proposta limitaria ainda mais o combate ao trabalho escravo, que somente ficaria a cargo dos auditores fiscais do trabalho que já enfrentam um cenário de sucateamento de recursos. Além disso, essa alteração implicaria no fim dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel (GEFM), os “Grupos Móveis”, criados em 1995 e formados por auditores fiscais do trabalho, policiais federais e procuradores do MPT para a realização de operações especiais de combate ao trabalho escravo. Tal alteração representaria um retrocesso de 25 anos no combate à prática, visto que a atuação histórica dos Grupos Móveis tornou o Brasil um dos pioneiros no combate ao trabalho escravo no mundo.
O projeto também altera o artigo 627 da CLT ao ampliar as situações em que os auditores fiscais devem observar o critério da dupla visita, que exige que a fiscalização do trabalho, ao encontrar irregularidades durante uma inspeção, primeiro emita orientações à empresa fiscalizada para sanar as irregularidades e somente aplique multas administrativas, em uma segunda inspeção, caso se constate a permanência delas. A ampliação do critério da dupla visita alcançaria até mesmo os casos de trabalho escravo ou infantil, a menos que a fiscalização encontre “irregularidades diretamente relacionadas à configuração da situação” (artigo 627, § 2º, inciso V, na redação proposta pelo PLV). Considerando que as condições análogas à de escravo normalmente estão ligadas a uma cadeia complexa de ilícitos trabalhistas (ajolamentos precários, falta de pagamentos, insalubridade, longas jornadas de trabalho)[3], seria impossível definir quais seriam as irregularidades diretamente relacionadas à sua configuração que permitiriam a aplicação imediata de multas administrativas. É visível que a falta de clareza do texto tem como finalidade limitar ainda mais a atuação das auditorias fiscais do trabalho e facilitar a continuidade destas condutas pelas empresas.
Outro ponto relevante é a alteração do artigo 790 da CLT para limitar o acesso à justiça gratuita apenas (i) à pessoa pertencente à família com renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo ou com renda familiar mensal de até 3 salários-mínimos ou (ii) à pessoa física que, durante a vigência do contrato de trabalho mais recente, ainda que este não esteja mais vigente, recebeu salário igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Quanto ao critério de pertencimento a família de baixa renda, o projeto exige “comprovante de habilitação em cadastro oficial do governo federal instituído para programas sociais, não bastando a mera apresentação de declaração de insuficiência”, o que afetaria especialmente trabalhadores encontrados em condições análogas à de escravo, que muitas vezes estão fora dos programas sociais do governo federal e que, em algumas situações, sequer possuem documentos de identidade e CPF regularizados. O mesmo se aplica às pessoas que receberam salário igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, pois trabalhadores em condições análogas à de escravo (e trabalhadores precarizados em geral) em regra laboram em condições de informalidade, sem vínculo empregatício e à margem do sistema de garantias trabalhistas.
Ao lado da modificação do artigo 790 da CLT, o PLV cria o artigo 790-C da CLT, que prevê a obrigatoriedade de pagamento de honorários pela parte que perder o processo (honorários de sucumbência), ainda que ela seja beneficiária da Justiça Gratuita. O artigo também prevê a possibilidade de o trabalhador deduzir os valores de créditos trabalhistas pendentes em outros processos para pagar os honorários de sucumbência. O novo artigo, junto com a alteração do art. 790 da CLT, cria mais empecilhos para o ingresso de ações trabalhistas contra empregadores, principalmente por parte de trabalhadores em condição análoga à de escravo, dificultando ainda mais seu acesso à justiça e intensificando as restrições anteriormente introduzidas pela Reforma Trabalhista de 2017.
O PLV nº17/2021 e a flexibilização dos direitos trabalhistas
Ao lado das alterações que afetam diretamente o combate ao trabalho escravo no Brasil, o PLV traz algumas propostas que visam flexibilizar direitos trabalhistas e podem acentuar o quadro de trabalhadores em condições análogas à de escravo no país. Inicialmente, destaco dois programas com modalidades diferenciadas de contração introduzidos pelo projeto que poderão intensificar o quadro de precarização do trabalho no país e contribuir para o aparecimento de novos casos de trabalho escravo.
O primeiro deles é o Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip), que cria uma modalidade de trabalho por prazo determinado (3 anos) destinada a jovens entre 18 e 29 anos, trabalhadores sem registro em carteira há mais de dois anos ou pessoas de baixa renda oriundas de programas de transferência de renda (artigo 43 e seguintes do PLV). Esse regime é composto por um Termo de Compromisso de Inclusão Produtiva (CIP) de natureza civil (e não trabalhista)[4], de duração de 24 meses e prevê o pagamento de um Bônus de Inclusão Produtiva (BIP), no valor horário do salário-mínimo e pago com recursos públicos, alcançando a metade do número de horas trabalhadas pelo beneficiário, limitado a 11 (onze) horas semanais, bem como uma Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ), com o mesmo valor, paga pelo ofertante do CIP. O Requip não gera nenhum vínculo trabalhista (art. 45), não prevê o reconhecimento de vínculo quando extrapolada a jornada de trabalho (art. 55, caput e § 2º), não dá direito a férias remuneradas – apenas um recesso não remunerado de 30 dias (art. 67) -, não dá direito a recolhimentos previdenciários (art. 70) e prevê o pagamento parcial de vale-transporte. O programa cria uma modalidade de contrato cível que retira do trabalhador toda a proteção social presente na Constituição Federal e na legislação trabalhista e favorece o aparecimento de trabalho em condições degradantes e jornadas exaustivas que seriam mais dificilmente identificadas fora dos contornos de uma relação de trabalho.
O segundo programa a ser destacado é o “Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego” (PRIORE) (artigo 24 e seguintes do PLV), que tem como premissa estimular a empregabilidade e é destinado a trabalhadores com idades entre 18 e 29 anos ou mais de 55 anos que estejam sem vínculo de emprego formal há mais de 12 meses. Ele renova as propostas da MP 905/2020 (a MP da “Carteira de Trabalho Verde Amarela”) ao criar um contrato de trabalho por tempo determinado com regras específicas que preveem a diluição do valor das férias e 13º salário, diminuem a alíquota do FGTS e possibilidade de ampliação de jornadas e compensação em banco de horas. Esse programa seria uma espécie de substituto dos contratos de aprendizagem, que garantem mais direitos, e, apesar de ter como pretexto o aumento na empregabilidade, cria uma modalidade contratual que facilita a dispensa sem justa causa por conferir menor proteção ao trabalhador. Da mesma forma que o REQUIP, o PRIORE amplia as modalidades de trabalho precarizado permitidas por lei e pode contribuir para o aparecimento de novas formas de trabalho escravo, que se proliferam em contextos laborais informais ou com menos direitos e garantias trabalhistas.
Outro ponto relevante do PLV é a mudança do artigo 293 da CLT para estender as jornadas de trabalhadores em minas de subsolo para até 12 horas diárias. A CLT atualmente limita a jornada dos mineiros a 6 horas diárias e 36 horas semanais. Além disso, a mudança eliminaria o intervalo de 15 minutos a cada 3 horas de trabalho, o que tornaria ainda mais insalubre o trabalho em minas de subsolo. Fica evidente que esse aumento pode gerar quadros de trabalho degradante e jornadas exaustivas (além de acidentes e doenças ocupacionais), contribuindo para o aparecimento de casos de trabalho escravo nestes contextos.
Analisadas todas essas e outras alterações em conjunto, observa-se que o PLV objetiva alterar de forma sensível o sistema de garantias trabalhistas já impactado pela Reforma Trabalhista, inclusive por meio de inovações jurídicas e legais que afrontam a Constituição Federal e Convenções da OIT ratificadas pelo Brasil.
Considerações finais
Como visto, o PLV nº 17/2021 é uma medida ousada de flexibilização da legislação trabalhista e enfraquecimento do combate ao trabalho escravo no Brasil. Se for aprovado pelo Senado Federal, o projeto representará um largo passo em direção à destruição do sistema de proteção social do trabalho presente na CLT e CF e inaugurará um novo capítulo da história da precarização do trabalho no país.
Os argumentos dos proponentes do projeto de que ele servirá para dinamizar as relações de trabalho, aumentar os postos de trabalho e reduzir as cargas tributárias suportadas pelas empresas (os mesmos apresentados pelos defensores da Reforma Trabalhistas[5]) servem de pretexto para favorecer grandes empresas, limitar a fiscalização do trabalho e continuar a exploração do trabalho em condições precárias, inseguras e sem garantias, em um contexto em que o país possui cerca de 15 milhões de desempregados e 6 milhões desalentados.
Portanto, para evitar o desmantelamento completo dos direitos sociais no Brasil, é urgente a necessidade de rejeição completa do projeto pelo Senado Federal.
[1] Assessor Jurídico do Ministério Público do Trabalho e Doutorando em Ciência Política pelo IFCH-UNICAMP.
[2] A alteração substancialdo conteúdo original de uma medida provisória, inclusive com propostas ousadas de alteração que não tem relação com sua matéria original, é popularmente chamada de “jabuti”. O STF já decidiu pela inconstitucionalidade destas medidas no ADI 5127/DF, em 15/10/2015.
[3] O conceito de trabalho análogo ao de escravo está previsto no caput do artigo 149 do Código Penal, que dispõe: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.”
[4] Isso significa que as condições do termo de compromisso em tese não poderiam ser questionadas perante a Justiça do Trabalho e dificultaria a discussão sobre verbas devidas e outras irregularidades de cunho trabalhista.
[5] Segundo as pesquisadoras Magda Barros Biavaschi e Marilane Oliveira Teixeira, os resultados imediatos da Reforma Trabalhista não concretizaram as promessas de modernização das relações de trabalho e recuperação econômica trazidas por seus proponentes, mas somente intensificaram os quadros de precarização do trabalho no Brasil. O estudo está disponível em: https://doi.org/10.33239/rtdh.v2i1.44.
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