Lia de Mattos Rocha [1]
Em 14 de março de 2023 completam-se cinco anos do assassinato político que vitimou a vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes, seu motorista. Neste momento, em que se inicia um novo governo federal – após quatro anos que governos nada fizeram para esclarecer o crime que vitimou os dois, pelo contrário – as demandas por Justiça para Marielle e Anderson voltam a ocupar o espaço público. Até o momento foram identificados e acusados os executores do atentado, mas os mandantes permanecem desconhecidos e impunes. O que se sabe sobre o crime, contudo, indica que sua morte está entrelaçada profundamente com a política do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil, e com a relação entre política e crime que marcam nossa história.
Conheci Marielle Franco há mais de dez anos, quando ela já trabalhava na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, junto com o Deputado Estadual Marcelo Freixo do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Marielle era socióloga e tinha muitos interesses acadêmicos, especialmente na área de sociologia e violência urbana – temas que nos aproximaram em termos profissionais. Depois desenvolvemos uma forte amizade, que me marcou profundamente, e com isso tento justificar o tom pessoal e emotivo deste texto. Escrever sobre a Mari é sempre difícil, mas é minha pequena contribuição para dar continuidade a seu legado.
Após sua morte milhões de brasileiros e pessoas no mundo todo conheceram e passaram a amar Marielle Franco. Infelizmente, para muitos foi somente após a sua morte. Quem teve a sorte de conhecer Marielle viva sabe a força que ela transmitia no olhar e no sorriso, sempre aberto e caloroso. Apesar de ser para nós tão especial, Marielle era uma mulher como muitas outras, mãe de uma filha de 18 anos, trabalhadora, que lutou muito para ter sua formação universitária.
Nascida em uma família de migrantes do Nordeste, Marielle foi criada na Favela da Maré, bairro do Rio de Janeiro onde moravam em 2010 cerca de 140 mil pessoas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE, 2010). Como às vezes se parece esquecer, as favelas cariocas são o local de moradia de um em cada cinco moradores da cidade do Rio de Janeiro (ainda segundo o Censo 2010). Os moradores de favela são estigmatizados e criminalizados desde o surgimento das primeiras favelas no final do século XIX (VALLADARES, 2005). A forte presença da população negra – que era muito numerosa no país à época e ali encontrou abrigo após a Abolição da escravidão, e que ainda hoje é a maioria entre os favelados[2] (MARIANI et al., 2017) – explica porque os moradores de favelas no Brasil sofrem com uma espécie de duplo estigma: o racismo e o preconceito por morarem em locais originalmente ocupados, por não terem a propriedade do terreno onde moram, por serem considerados invasores.
Mas as favelas são também lugar de resistência. Quando a Favela da Maré começou a ser ocupada mais intensamente, em meados de 1940, já foi criada a primeira associação de moradores para melhoramentos do local. Assim, a história da Favela da Maré e de seus moradores é também uma história de luta e organização coletiva, o que se refletiu diretamente na trajetória de Marielle. Foram os próprios moradores que aterraram boa parte do terreno onde se localiza a favela, atualmente uma área de mais de 400 hectares (ou 4 milhões de metros quadrados), e também construíram ruas, colocaram eletricidade nas casas, entre outros melhoramentos.
E foi também a organização coletiva dos moradores da Maré que criou, em 1988, o Pré-Vestibular Comunitário da Maré. Uma das primeiras iniciativas nesse campo, que posteriormente tornou-se um forte movimento social, o Pré-Vestibular Comunitário da Maré pretendia “treinar” os filhos da classe trabalhadora moradora da favela a passar no vestibular, instituição que mesmo reformulada permanece como garantidora do acesso desigual ao ensino superior por meio da ideologia da “meritocracia”.
Mas o Pré-Vestibular da Maré era mais que isso. O curso contava com muitos professores militantes que faziam discussões políticas profundas e apresentavam aos jovens favelados explicações diferentes para as injustiças do mundo. Marielle foi aluna do Pré-Vestibular Comunitário da Maré em 1998, logo depois do nascimento de sua filha Luyara, e essa experiência marcou sua vida. Marielle foi aprovada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), para cursar Ciências Sociais, com uma bolsa para estudantes pobres. Assim começou a carreira acadêmica de Marielle, sempre ligada à sua origem favelada e suas preocupações sociais e políticas.
Quando Luyara nasceu Marielle tinha 19 anos, e por isso sua experiência universitária não foi a mais comum. Ela já tinha 23 anos, era mãe de uma criança pequena, já trabalhava desde os 11 anos de idade e naquele momento era secretária do próprio Pré-Vestibular da Maré. Mas ainda assim a experiência no Pré-Vestibular Comunitário e depois na PUC abriram para Marielle um mundo novo. Ela se filiou inicialmente ao Partido dos Trabalhadores (PT) e depois ao PSOL, partido pelo qual foi eleita vereadora em 2016, e passou a ter uma atuação política mais organizada.
Sua militância, mesmo antes da sua filiação a partidos políticos, sempre foi na área de Direitos Humanos. Para os moradores de favela, a luta por direitos humanos é fundamental, porque se trata da luta pela própria sobrevivência. Além da desigualdade econômica, os favelados enfrentam cotidianamente a luta pela vida, já que as favelas são territórios onde a violência do Estado Brasileiro contra os pobres e a classe trabalhadora é muito presente[3]. Assim, infelizmente, é comum que muitos moradores de favelas tenham perdido amigos e parentes seja para a violência dos traficantes, seja para a violência da polícia, seja durante o confronto entre as duas forças. Com Marielle não foi diferente: ainda adolescente, ela perdeu uma amiga assassinada durante um desses confrontos entre policiais e traficantes na Maré. A dor e a indignação com essa morte foram fundamentais para levar Marielle para a vida política.
Em 2006 o PSOL elegeu Marcelo Freixo como candidato a deputado estadual, com a bandeira dos Direitos Humanos. Marcelo, professor de História em escolas e no curso de pré-vestibular da Maré, era um ativista reconhecido nessa área. Marielle fez a campanha do Freixo na Maré e depois foi convidada por ele para compor seu gabinete. Na Comissão de Direitos Humanos, junto a outros importantes ativistas, trabalharam de forma incansável no acompanhamento de casos de chacinas e execuções policiais, prestando apoio jurídico e psicológico às famílias e cobrando das autoridades celeridade nas investigações. É neste período que Marielle ganha mais destaque como uma militante dos Direitos Humanos.
Marielle trabalhou com Freixo de 2006 até 2016, quando ele se candidatou a prefeito e ela a vereadora, pela primeira vez. Com a bandeira de ser uma mulher, negra e favelada militante dos direitos humanos ela conseguiu o apoio de outros moradores de favelas, de intelectuais, de parte do movimento negro , de mulheres, de jovens universitários que viam naquela mulher tão diferente dos outros candidatos uma oportunidade de fazer outra política, de fazer outro mundo possível. Com o lema “Eu sou porque nós somos”[4], a campanha de Marielle articulava ideias como a união, a representatividade, a possibilidade de ter na política alguém que não era como os políticos tradicionais. Dos cinquenta e um vereadores eleitos em 2016, apenas seis eram mulheres, e apenas um, além de Marielle, era negro.
Durante a campanha ficou evidente que ela representava em seu próprio corpo muito dos anseios por mudança na política. Marielle vinha das lutas, dos movimentos sociais, dos coletivos negros das universidades, vinha dos blocos de carnaval, vinha dos grupos de artistas do funk. Representava uma forma diferente de viver, de circular na cidade, de estar na política, de lutar. Marielle foi eleita com surpreendentes 46.502 votos, sendo a quinta mais votada na cidade e a segunda mulher com o maior número de votos. A noite de sua eleição foi uma das mais felizes que já vivi.
Seu mandato foi marcado por uma atuação forte nos temas dos direitos das mulheres e da população favelada. Marielle Franco presidiu a Comissão de Defesa das Mulheres da Câmara do Rio de Janeiro, e junto à bancada do PSOL denunciaram diversos esquemas de corrupção existentes na cidade, ligados tanto à máfia que controla o sistema de transporte público quanto às empreiteiras e construtoras envolvidas na construção dos estádios para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Seus discursos na tribuna sempre tiveram muito impacto, mas como uma vereadora de um partido de oposição e minoritário, sempre foi muito difícil para Marielle aprovar leis. Dos dezesseis projetos de lei que apresentou enquanto foi vereadora, sete foram aprovados, sendo que cinco foram aprovados somente depois de sua morte.
O período em que Marielle foi vereadora foi marcado por sua atuação corajosa e vibrante, mas a situação da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil se agravou muito quando comparada com 2015, quando foi eleita. A Intervenção Federal na Segurança do Rio de Janeiro, decretada pelo Presidente Michel Temer em 19 de fevereiro de 2018 e comandada por Walter Braga Netto, representou o ápice de um processo de militarização da cidade que já vinha sendo implementado durante o Programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), mas que tem origens em nossa ditadura militar. Dentro desse processo de militarização as favelas cariocas são tratadas como “o inimigo” (COIMBRA, 2001; LEITE et al., 2018); por exemplo, a favela da Maré, onde Marielle nasceu e foi criada, foi ocupada por 14 meses pelo Exército, entre 2014 e 2015.
Foi contra essa representação da favela e dos favelados como inimigos que Marielle se insurgiu. Por conta de toda a sua militância na área de Direitos Humanos, Marielle se tornou um dos quatro vereadores relatores da Comissão da Câmara para acompanhamento da Intervenção Federal. Apesar de ter se colocado desde o início contrária à intervenção, por saber seu potencial letal contra a população favelada, sua morte foi usada por Michel Temer como justificativa para legitimá-la[5].
O trabalho acadêmico de Marielle embasava seu posicionamento. Sua dissertação de mestrado, que foi publicada pela Editora n-1 (FRANCO, 2018), discute as raízes sociais que legitimam a submissão dos moradores de favelas, por meio da análise do projeto das UPPs. O trabalho apresenta as resistências populares e as alternativas para se produzir uma outra segurança pública que considere a vida e a cidadania dessa enorme parcela de cidadãos brasileiros, da qual Marielle fazia parte e era representante. A dissertação colabora para o debate sobre a necessidade da desmilitarização da Polícia Militar e da abertura das instituições policiais para a participação da sociedade civil – que inclui, na perspectiva defendida por Marielle, fundamentalmente os moradores de favela, excluídos sistematicamente deste debate.
Assim, o atentado político que vitimou a vereadora do PSOL Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes talvez seja a mais terrível expressão dessa pretensa guerra que vivemos no Brasil, que promete segurança, mas traz em seu ventre mais morte, arbitrariedades e autoritarismo. Marielle foi executada, na noite do dia 14 de Março de 2018, com quatro tiros. Sua execução foi uma forma de silenciá-la e parar sua luta, em defesa dos direitos dos moradores de favela, mulheres, negros e negras, LGBTs, ou seja, da classe trabalhadora tão explorada e violentada. Foi também uma tentativa de calar e amedrontar outras tantas “Marielles” que ocupam cada vez mais espaço na política institucional – o que desperta o ódio dos representantes das elites tradicionais e dos novos movimentos de extrema-direita. Sentimento que ficou evidente, por exemplo, nas inúmeras fakenews que circularam após sua morte, bem como no episódio em que uma placa com seu nome foi quebrada em praça pública. Frequentemente o nome de Marielle reaparece na fala desses personagens – até hoje essa mulher corajosa desperta a raiva dos poderosos.
Mas sua morte despertou também tristeza, indignação e vontade de continuar sua luta. Milhares de pessoas foram às ruas exigir Justiça para Marielle e Anderson. Manifestações ocorreram no mundo todo. Marielle foi homenageada por diversas escolas, universidades, prefeituras, grupos culturais. Multiplicam-se pelo país e pelo mundo coletivos de pessoas negras e mulheres com seu nome, bem como prêmios, instituições, redes de ativistas, entre outros. Desde 2018, diversas mulheres identificadas como “sementes” de Marielle foram eleitas e/ou passaram a ocupar cargos públicos, entre elas Renata Souza, Talíria Petrone, Mônica Benício e Anielle Franco. Em 2020 sua família inaugurou o Instituto Marielle Franco, que além de articular ações que visam de cobrar a resolução do crime também impulsiona campanhas contra a violência política contra mulheres por todo o Brasil. A essas mulheres se juntam muitos outros defensores/as dos Direitos Humanos, da democracia e da igualdade, que não desistiram da luta ao longo desses cinco anos. Não calarão Marielle Franco, não calarão também aqueles que denunciam sua morte e exigem justiça. Justiça para ela e para tantos brasileiros e brasileiras, que são desrespeitados, violentados e massacrados.
As faixas que apareceram nas manifestações após sua morte traziam o convite: “Lute como Marielle Franco”. Marielle é “força que nunca seca” porque muitos continuarão lutando tendo sua vida e suas lutas como inspiração.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências:
COIMBRA, C. M. B. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. 1. ed. Rio de Janeiro: Oficina do autor;Intertexto, 2001.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2018. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/anuario-12/>. Acesso em: 1 mar. 2023.
FRANCO, M. UPP: a redução da favela em três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. São Paulo: n-1, 2018.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo 2010. Brasília: [s.n.]. Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 26 out. 2018.
LEITE, M. et al. Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018. v. 1
MARIANI, D. et al. Censo de 1872: o retrato do Brasil da escravidão | Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/especial/2017/07/07/Censo-de-1872-o-retrato-do-Brasil-da-escravid%C3%A3o>. Acesso em: 1 mar. 2023.
ROCHA, L. D. M. A vida e as lutas de Marielle Franco. Revista Em Pauta, v. 16, n. 42, 16 jan. 2019.
VALLADARES, L. DO P. A invenção da favela: do mito de origem a favela. com. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. v. 1
[1] Professora Associada do Departamento de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esta é uma versão modificada e atualizada de artigo publicado em 2019 na Revista Em Pauta, da Uerj (ROCHA, 2019). Apresentei uma primeira versão deste como Conferência Magistral na IV Convención Latinoamericana de Estudiantes de Sociología na Cidade do Panamá, em 09 de Outubro de 2018. Marielle Franco foi homenageada pelas Escuela de Sociología de la Universidad de Panamá (UP), Asociación de Estudiantes de Sociología (AES) e Red de Estudiantes de Sociología de Latinoamérica y el Caribe (RESLAC). Versões desse texto também foram publicadas em espanhol e inglês no site www.opendemocracy.net.
[2] Segundo o Censo de 1872, dos quase dez milhões de brasileiros que viviam no país aquele ano, 1,5 milhões eram africanos trazidos à força ao país e escravizados (MARIANI et al., 2017). Segundo o Censo de 2010, 66% dos lares localizados em áreas de favela no Rio de Janeiro são chefiados por homens e mulheres negros (IBGE, 2010).
[3] A Polícia Militar do Rio de Janeiro é especialmente violenta: Em 2017, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 5.144 pessoas morreram em decorrência de ações policiais, sendo que 1.127 (22% aproximadamente) desses casos ocorreram no Estado do Rio de Janeiro – cuja população de 16,72 milhões de habitantes representa 8% da população brasileira (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2018)
[4] Referência ao conceito Ubuntu, de origem africana.
[5] “Eu quero não só me solidarizar com a família da Marielle, do Anderson Gomes, o seu motorista, me solidarizar com todos aqueles que foram vítimas de violência no Rio de Janeiro, mas salientar que essas quadrilhas organizadas, essas organizações criminosas não matarão o nosso futuro. Nós estamos ali no Rio de Janeiro para reestabelecer a paz, reestabelecer a tranquilidade”, disse o presidente”. Trecho da matéria “Temer diz que morte de vereadora no Rio foi ato de ‘extrema covardia’ e um ‘atentado à democracia’”, publicada no G1 em 15 de março de 2018. Disponível em: < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/planalto-vai-acompanhar-apuracao-do-assassinato-da-vereadora-marielle-franco.ghtml>. Da mesma forma, em entrevista coletiva dada no mesmo dia, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, afirmou que o assassinato de Marielle Franco “confirma a necessidade da intervenção federal”, segundo o portal de notícias Reuters (“Assassinato de vereadora no Rio corrobora necessidade de intervenção federal, diz Marun”, matéria do portal Reuters publicada em 15 de março de 2018, disponível em: <https://www.reuters.com/article/politica-marun-vereadora-intervencao-idBRKCN1GR357-OBRDN).
Fonte Imagética: Foto de Leon Diniz, encaminhada ao Boletim Lua Nova pela autora.