Marcia Ribeiro Dias1
30 de outubro de 2025
Introdução
As eleições legislativas de outubro de 2025 na Argentina surpreenderam analistas da comunicação e do mundo político. Embora algumas pesquisas de opinião já previssem uma vitória para o partido do presidente Javier Milei, A Liberdade Avança, esperava-se que a disputa fosse acirrada com os peronistas.. Entretanto, os resultados apontaram para uma vitória significativa do campo libertário e de direita, mantendo a previsão em torno de 40% dos votos, enquanto os peronistas apresentaram um desempenho inferior ao estimado (37%), que resultou em apenas 24,3% dos votos. Esse fenômeno ocorreu em um contexto de elevada abstenção eleitoral – 32,08% (Câmara de deputados) –, um índice historicamente alto para um país com voto obrigatório, e o maior desde a redemocratização. Se já não fosse amplo o bastante, o percentual de eleitores abstencionistas se soma àqueles que, embora tenham comparecido, optaram pela renúncia ao voto através do uso estratégico de votos branco e nulo.
Os estudos sobre alienação eleitoral em sistemas de voto obrigatório, como é o caso do Brasil e da Argentina, demonstram que eleitores insatisfeitos com as alternativas eleitorais ou desencantados com o próprio sistema político, decidem pelo comparecimento eleitoral em virtude da obrigatoriedade, mas se eximem da escolha efetiva através invalidação de seus votos. Dessa forma, um total de 12.722.031 eleitores deixaram de escolher entre as alternativas eleitorais disponíveis para a Câmara de Deputados, tendo 11.459.149 eleitores se ausentado das urnas, 664.994 votado em branco e 597.938 votado nulo. Este artigo busca compreender esse resultado à luz da teoria política que associa baixa participação eleitoral a vantagens para partidos de direita, com base nos artigos de Pacek & Radcliff (1995) e Lijphart (1997).
Abstenção e Viés de Classe
A relação entre participação eleitoral e preferência partidária não é aleatória. Como demonstram Pacek e Radcliff (1995), há uma correlação positiva entre a taxa de comparecimento às urnas e o desempenho de partidos de esquerda. Isso ocorre porque eleitores de baixa renda e menor escolaridade – base tradicional da esquerda – tendem a votar com menor frequência e são mais sensíveis a barreiras logísticas e a desmobilização. Em contraste, eleitores de maior renda e educação – mais alinhados à direita – votam de forma mais consistente. Portanto, segundo os autores, existe uma relação causal positiva e significativa entre o comparecimento eleitoral e o desempenho de partidos de esquerda. Há que se considerar, entretanto, que o voto de classe não é uniforme, apresentando variações expressivas a depender da cultura política nacional. Segundo dados apresentados pelos autores acerca de 19 democracias industriais (1950–1990), a cada 1% de aumento na participação eleitoral, a esquerda apresenta um incremento médio de ~0,33, que pode alcançar ~0,83 em contextos de alto voto classista. Nesse sentido, partidos de esquerda teriam sempre um interesse estratégico direto em maximizar a participação. Considerando essa equação, se os 32% de eleitores abstencionistas tivesse comparecido às urnas e feito escolhas efetivas (votos válidos), o partido peronista poderia ter um incremento de ao menos 11% em sua votação, se aproximando da intenção de voto expressa nas pesquisas de opinião prévias às eleições.
Arend Lijphart (1997), aprofunda essa análise ao destacar que a participação eleitoral desigual é o dilema não resolvido da democracia, pois gera um viés de classe sistemático que beneficia partidos de direita: quando a abstenção é elevada, quem não vota é desproporcionalmente pobre, jovem e menos escolarizado. Assim, quando a participação cai, o eleitorado que de fato vota torna-se mais conservador e privilegiado, beneficiando partidos de direita.
A abstenção alta funciona, segundo Lijphart, como um equivalente funcional das antigas barreiras eleitorais baseadas em propriedade ou educação, excluindo indiretamente os mais pobres. A solução apresentada pelo autor é a adoção do voto obrigatório, ao considerar que as taxas de participação eleitoral nesses sistemas são significativamente mais altas.
No caso argentino, o voto já é obrigatório, o que não impediu um terço do eleitorado de não comparecer às urnas, provavelmente em virtude de facilidades para o eleitor abstencionista evitar as penalidades previstas em lei. Há que se considerar ainda que mais de 5% dos eleitores que compareceram, optaram por votos inválidos (brancos e nulos) ampliando a alienação eleitoral do cidadão argentino. Ou seja, dos quase 68% dos eleitores que compareceram às urnas no domingo, 94,7% deram votos em candidaturas, totalizado 35,7% de alienação eleitoral (abstenção efetiva).
Voto Obrigatório e a “Abstenção Efetiva”
Como observou Lijphart, mesmo onde o voto é formalmente obrigatório, a aplicação de sanções é frequentemente branda, e a abstenção pode ser alta, o que parece ter acontecido nas eleições argentinas. Quando a obrigatoriedade não é rigorosamente fiscalizada, ou quando há descrença no sistema, a abstenção efetiva pode replicar o mesmo viés de classe observado em sistemas de voto facultativo.
A “abstenção efetiva” é o filtro social que a baixa participação impõe ao eleitorado. O eleitorado potencial (100% dos eleitores aptos a votar) reflete a distribuição real de preferências políticas e classes sociais do país. O eleitorado que tende a abster-se, entretanto é enviesado: predominantemente de baixa renda e escolaridade, porque enfrenta mais barreiras logísticas (transporte, tempo disponível, etc) e tem menos incentivos percebidos para participar; jovem, que tradicionalmente vota menos que os mais velhos; e menos integrados politicamente, já que possui menor sentimento de eficácia política. Esse também é o eleitorado mais inclinado ao voto na esquerda do espectro político.
Em outras palavras, a “abstenção efetiva” distorce a representatividade do voto. O resultado das urnas deixa de refletir a vontade do povo como um todo e passa a refletir a vontade de um subgrupo privilegiado e que tem o hábito e as melhores condições de votar. Nesse contexto, a “abstenção efetiva” ocorre mesmo em um sistema de voto obrigatório. O que importa não é a lei no papel, mas o comportamento eleitoral efetivo. Se uma parcela significativa e socialmente enviesada da população ignora a obrigatoriedade, o efeito final é o mesmo de um sistema de voto voluntário: um eleitorado real mais conservador do que o eleitorado potencial.
A Conjuntura Argentina: Por que a Abstenção Beneficiou Milei?
Contrariando o senso comum sustentado pelos principais comentaristas políticos da grande mídia, o resultado das urnas na Argentina não constitui simplesmente uma vitória política de Donald Trump, presidente dos EUA, que condicionou a continuidade de seu apoio financeiro à Argentina a um resultado eleitoral favorável ao governo de Javier Milei.
O governo Milei, desde sua posse, adotou uma agenda de corte liberal-radical, com forte ajuste fiscal, desregulamentação e críticas ao Estado de bem-estar. Essas medidas são impopulares entre setores vulneráveis, que dependem de políticas sociais. No entanto, justamente esses eleitores são os mais propensos a se abster em contextos de desalento ou descrença.
Com uma campanha focada em temas como “liberdade econômica” e “combate à casta política”, Milei mobilizou um eleitorado mais engajado, ideologicamente alinhado e economicamente estável – precisamente o perfil que vota mesmo quando a participação geral cai. Enquanto isso, parte do eleitorado peronista e de esquerda, desmotivado pela fragmentação interna ao partido e pela crise econômica, teria sido justamente aquele que optou pela alienação eleitoral.
A ampla vitória do partido de Javier Milei nas eleições de 2025, contrariando as previsões das pesquisas de intenção de voto, pode ser compreendida como um caso clássico de viés abstencionista a favor da direita. A elevada abstenção – mesmo em um sistema de voto obrigatório – atuou como um filtro social, excluindo setores mais vulneráveis e inclinados à esquerda, e amplificando a voz de eleitores mais conservadores.
Esse episódio reforça a ideia de que a participação eleitoral não é um detalhe técnico, mas uma variável estratégica que pode definir resultados. Para a esquerda argentina, a lição é clara: sem mobilizar sua base e reduzir a abstenção, seguirá em desvantagem mesmo quando a opinião pública parecer favorável a seus argumentos.
Referências
Pacek, A., & Radcliff, B. (1995). Turnout and the Vote for Left-of-Centre Parties: A Cross-National Analysis. British Journal of Political Science.
Lijphart, A. (1997). Unequal Participation: Democracy’s Unresolved Dilemma. American Political Science Review.
** Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, com pós-doutorado na Universidade de Oxford (UK). Atuou como professora visitante no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca. Atualmente é professora, pesquisadora e Diretora da Escola de Ciência Política da UNIRIO. Tem experiência na área de Comportamento Político, com ênfase em Estudos Eleitorais e Partidos Políticos. ↩︎
 
								



