Victor Farinelli1
19 de dezembro de 2025
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Em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), o Boletim Lua Nova republica o relato de uma das mesas do Encontro Anual do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), ocorrido entre 3 e 5 de dezembro de 2025. O texto foi originalmente publicado em 17 de dezembro de 2025, no site do OPEU.
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O Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) realizou mais uma edição do seu encontro anual, entre os dias 3 e 5 de dezembro, neste 2025 marcado pelo retorno de Donald Trump à Casa Branca.
Em cenário de revitalização da “Doutrina Monroe” e ameaças diretas dos Estados Unidos contra os países latino-americanos, a segunda mesa do dia 4 de dezembro, “América Latina e os múltiplos desafios impostos pelo Governo Trump”, abordou tanto as ações de Washington quanto a reação dos países da região.
O debate foi mediado pelo professor Marcos Cordeiro Pires (Unesp) e teve como participantes Silvia Núñez García (CISAN-UNAM/México), Roberto Moll (UFF), Roberto Goulart Menezes (UnB/IREL) e Pedro Silva Barros (IPEA).
O evento teve transmissão ao vivo e todas as discussões podem ser conferidas no Canal do INEU na plataforma YouTube. Acompanhe os principais argumentos dos participantes das mesas.
México e Estados Unidos
A relação do México com os Estado Unidos “é como um laboratório vivo, no qual a interdependência assimétrica é vivida de forma cotidiana”, afirmou a professora Silvia Núñez García, investigadora do Centro de Investigações sobre América do Norte (CISAN) da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).
Ela destacou que mais de 37 milhões de mexicanos vivem atualmente nos Estados Unidos. E que Trump vem tendo sucesso ao se aproveitar de conflitos há muito tempo instalados na relação entre os dois países, em particular, na questão migratória e da segurança.
“No primeiro mandato, [Trump] deixou assentada a plataforma retomada nesta nova gestão que, agora sim, tem resultado em mudanças muito sensíveis na relação entre os dois países”, analisou. Para Núñez García, no entanto, o governo mexicano tem sabido lidar com os desafios impostos por Washington. Ela destacou o estilo da presidente mexicana Claudia Sheinbaum, que encabeça o segundo governo consecutivo do Movimento de Regeneração Nacional (Morena, por sua sigla em espanhol), como fator fundamental para este resultado.
Ela destacou Sheinbaum tem sido hábil e inteligente em sua relação com Trump, apontando tratar-se de uma estratégia com “um rosto de mulher”. “As mulheres se relacionam com o poder de uma forma diferente da dos homens, e Claudia (Sheinbaum) tem sabido entender as nuances, sem confrontar o tirano predileto da história contemporânea, para chegar ao cenário que temos hoje”, afirmou.
A professora salientou quatro temas na agenda entre México e Estados Unidos: a imigração irregular, o crime organizado, a questão comercial e os desafios meio ambientais, priorizando os três primeiros tópicos.
Em relação à imigração, destacou que os Estados Unidos conseguiram consolidar uma visão unilateral, tratando os temas da segurança e da imigração de forma consubstanciada, “o que tem tornado impossível ao México enfrentar os temas comerciais sem lidar, ao mesmo tempo, com a questão da imigração e da segurança”.
Segundo a pesquisadora, “as prioridades dos Estados Unidos, em sua agenda com o México, são os imigrantes ‘ilegais’, que para eles são criminosos; o tráfico de drogas, em especial o fentanil; o terrorismo e a imposição de tarifas”.
Ela destacou que o país vem enfrentando a questão da segurança e do combate ao crime organizado não só a partir do tema da guerra às drogas, mas, sobretudo, no combate ao tráfico de armas, salientando que as fabricantes de armas dos Estados Unidos fazem negócio com grandes grupos narcotraficantes mexicanos.
“Os governos mexicanos mais recentes têm destacado, diante da acusação estadunidense dos que morrem nos Estados Unidos por causa das drogas vendidas por quadrilhas mexicanas no mercado ilegal, que no México também morrem muitas pessoas vítimas das armas vendidas pelas empresas estadunidenses através de um mercado também ilegal”, frisou.
Ela contou que o governo de Sheinbaum iniciou ações judiciais contra empresas armamentistas no país vizinho, embora sem obter resultados até o momento.
Ao abordar a questão comercial, Núñez García lembrou que o México tem superávit com os Estados Unidos e por isso tem priorizado a defesa do tratado T-MEC, classificado por Trump como “o pior de todos os tratados”. E alertou sobre alguns índices preocupantes da economia mexicana para 2025.
“A estimativa de crescimento para este ano, segundo o Banco do México, é de 0,7%, baixíssimo. Um governo progressista, que está dando tão maus resultados, porque tampouco conseguiu diminuir a inflação, e que vê a demanda interna se desacelerando, corre o risco de começar a perder certa popularidade, porque isso abre uma janela de oportunidades aos partidos de oposição”, afirmou.
Em relação à imigração, a professora da UNAM explicou que, no México, se utiliza o termo “imigrantes irregulares”, e que o país “não considera os imigrantes como criminosos e sim como uma questão a ser tratada no âmbito administrativo”. Ademais, observou que este segundo mandato de Donald Trump tem priorizado a militarização da fronteira, razão pela qual se gerou “um processo claro de externalização das fronteiras”.
Ao finalizar, a professora da UNAM alertou que pesquisas de opinião recentes mostram uma opinião negativa sobre a forma como a presidente Sheinbaum está manejando a relação com os Estados Unidos. “Isso, em algum momento, pode colocar em risco o governo de Sheinbaum e o projeto do Morena”, advertiu.
Confira a íntegra da fala de Silvia Núñez García.
América Latina: crucial à coesão do bloco trumpista
A segunda apresentação da mesa ficou por conta do historiador Roberto Moll, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que destacou a centralidade da América Latina na política norte-americana neste segundo governo Trump.
Segundo Moll, a relação deste segundo mandato com os países latino-americanos funciona como “um elemento de coesão do bloco político trumpista em seus aspectos subjetivos e objetivos”, sendo fundamental à reconstrução da hegemonia norte-americana.
Esse bloco (trumpista) congrega diferentes frações de classe, apontou o pesquisador: “a fração da classe trabalhadora branca, atomizada, empobrecida, que oferece apoio ao Trump em consequência do crescimento da pobreza e do ressentimento; do capital ultrapassado da energia suja, carvão e petróleo principalmente; da indústria de Defesa, que em geral apoia os dois grandes partidos nos Estados Unidos; a do capital financeiro pressionado pela crise pós-2008 e, recentemente, a fração do capital transnacional moderno”.
Esta última, salientou, “após a pandemia da Covid-19, viu a necessidade de controlar cadeias de valor diante da perda de competitividade frente à ascensão chinesa”, incluindo as chamadas “big techs”.
Ele recordou que, em encontro anual realizado pelo INEU anos atrás, após o fim do primeiro governo de Trump, havia um debate sobre a importância ou não da América Latina para o projeto trumpista. Hoje, destacou o acadêmico, a controvérsia já não existe mais: a prioridade é evidente.
“Trump volta ao poder falando em ‘política hemisférica’ (para a América Latina) e isso não é à toa, porque a ‘política hemisférica’ não é ‘externa’. No discurso, para os Estados Unidos, isso faz muita diferença”, disse o historiador.
Ele lembrou que no primeiro mandato de Trump, também houve um esforço em recuperar a “Doutrina Monroe”. Naquele momento, Trump visou esvaziar o sistema interamericano como forma de enfraquecer a integração regional, estabelecendo a chamada “Troika da Tirania”, conformada pelos governos de Cuba, Nicarágua e Venezuela.
Em relação à Caracas, o historiador lembrou que Trump tentou, em seu primeiro mandato, aproximar-se de militares venezuelanos para conseguir o apoio do setor ao projeto então liderado por Juan Guaidó, o que não teve sucesso; e que naquela ocasião, o então secretário de Estado, Mike Pompeo, também chegou a cogitar uma intervenção militar no país sul-americano.
Ele também citou o apoio dado aos governos alinhados com Washington na Colômbia e na Argentina – incluindo o emblemático caso dos auxílios financeiros entregues pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) ao governo argentino de Mauricio Macri em 2018; o mesmo tipo de resgate com o qual a Casa Branca tem ajudado o governo de Javier Milei.
Já, sobre o segundo mandato de Trump, Moll enfatizou que o Projeto 2025, que norteia a política do republicano, tem como objetivo principal conter a influência da China no mundo, especialmente na América Latina.
Os principais interesses da política norte-americana atual para a região, elencou, são o acesso a minerais críticos, o controle da migração como forma de controle do trabalho e a recomposição da hegemonia interna e externa dos Estados Unidos, sobretudo a defesa da economia de mercado e de uma determinada forma de acumulação capitalista.
Para alcançar esses objetivos, a primeira estratégia de Washington foi construir um consenso para a utilização de violência física, econômica e simbólica sobre a região, substituindo a “Troika da Tirania” para uma versão renovada de “Guerra às drogas”.
A segunda está ancorada na guerra tarifária, cujos acordos feitos para reverter a imposição das tarifas visam abrir uma via livre para o capital transnacional, eliminando as regulações estatais.
A terceira, acrescenta o pesquisador, é a tentativa de construir uma coalizão interamericana de extrema direita que poderia resultar em um movimento maior para a desestabilização da democracia no continente.
Neste sentido, ele alertou sobre as ameaças em curso na Venezuela. “A ideia do fortalecimento da política de combate às drogas na Colômbia e na Venezuela pode ser expandir rapidamente para o Brasil, Peru, Equador e Bolívia. Uma possível invasão da Venezuela criaria uma crise generalizada, uma crise migratória, mas também significaria um sinal verde para novas ações dos Estados Unidos em outras regiões”, advertiu.
Confira a íntegra da fala de Roberto Moll.
O Brasil na disputa entre Estados Unidos e China
O professor Roberto Goulart Menezes (UnB) trouxe em sua exposição o revigoramento da parceria Brasil-China, em meio ao contexto de turbulências das relações com os Estados Unidos.
Menezes observa que a opção do governo Lula, neste terceiro mandato, vem sendo equilibrar o fortalecimento da aliança com a China, ao mesmo tempo em que mantém o diálogo com os Estados Unidos. “Desde que sofreu o tarifaço em julho deste ano, após ter sofrido a primeira parte (do tarifaço) em abril com os demais países, o Brasil tentou circunscrever o atrito com os Estados Unidos ao campo comercial”, destaca.
O professor da UnB lembrou que o Brasil ficou entre os países menos taxados na primeira rodada de tarifas, em comparação com os demais, com apenas 10%. Deste então, o Brasil tentou se articular com a União Europeia, o Japão e outros países, inclusive com a China, mas “rapidamente esses países decidiram entabular negociações com os Estados Unidos, e como não encontrou eco nesse primeiro momento, passou a buscar a sua própria estratégia”.
Ele salientou que a busca pela China como alternativa encontra o desafio da assimetria estrutural das relações Brasília-Pequim. Quando o BRICS foi criado, em 2009, “o PIB brasileiro estava entre US$ 1,4 trilhão e US$ 1,5 trilhão, enquanto o da China era duas vezes isso. Dez anos depois, o PIB da China é dez vezes o PIB brasileiro”, ressaltou.
Menezes também apresentou os números dessa aproximação. Em 2000, a China sequer figurava no ranking das exportações nacionais, mas, a partir de 2010, passou a liderá-lo com 15% e, em 2020, mais do que duplicou sua presença, com 32%.
Os Estados Unidos, por sua vez, lideravam em 2000, com 24%, como maior destino das exportações brasileiras. No entanto, em 2010, o país manteve o patamar de 10% e, a partir de 2020, a distância em relação à China aumentou paulatinamente.
Segundo Menezes, enquanto adota uma postura pragmática e multidimensional, o governo Lula vem buscando equilibrar a parceria estratégica com a China e a relação com os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que busca aprofundar a integração regional”.
Em sua conclusão, ele destacou que “o Governo Lula 3 adota uma postura pragmática, busca se equilibrar nessa parceria estratégica com a China e com os Estados Unidos, busca o aprofundamento da integração regional – mas que nós sabemos que é uma interrogação – e o fortalecimento dos mecanismos de cooperação internacional”.
“O ponto é que diante dessa agressividade do Governo Trump, o Brasil vem se preparando, como foi destacado, mas esse ‘segundo tempo’, digamos, no que diz respeito às tarifas dos Estados Unidos, é preciso insistir: para tirar essas tarifas de vez, sobre 22% dos produtos brasileiros exportados, preservar que o Brasil continue no acordo relativo ao Sistema Geral de Preferência, e para circunscrever ao campo comercial qualquer conflito, para que não transborde para a dimensão política, sobretudo para a política interna brasileira”, frisou.
Confira a íntegra da fala de Roberto Goulart Menezes.
Estados Unidos e América do Sul
A quarta e última apresentação da mesa ficou por conta de Pedro Silva Barros (foto), pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que abordou os desafios impostos pelos Estados Unidos aos países da América do Sul.
“A nossa região vem se desintegrando econômica e comercialmente, e se fragmentando e polarizando politicamente há vários anos. Isso não ocorre somente por causa do Governo Trump, mas se acentua devido às políticas do Governo Trump, que potencializam esses fatores”, explicou o pesquisador, ao acrescentar que “uma região dividida e fragmentada é muito mais vulnerável à ingerência extrarregional”.
Neste contexto, o foco da diplomacia brasileira tem sido manter a América do Sul como uma zona de paz. “Todas as ações de política externa devem ser formuladas e executadas no curto prazo a partir desse objetivo”, frisou, ao mencionar no escopo desse objetivo a assinatura do acordo do Mercosul com a União Europeia. “Esse não é um acordo feito para garantir mais comércio. É um acordo feito numa visão maior, para ajudar a manter a região como uma zona de paz”, afirmou.
Em sua apresentação, Barros trouxe os números das relações comerciais do Brasil com os demais países da América do Sul. Os dados apontam para uma significativa diminuição, a partir de 2023 (atual mandato do presidente Lula), nas trocas comerciais. Inclusive, com quedas acentuadas em relação a países ideologicamente alinhados com o governo brasileiro, destaca o pesquisador, como o Chile de Gabriel Boric e a Colômbia de Gustavo Petro.
Em contrapartida, 95% dos US$ 804,5 milhões em desembolsos pós-embarque, [após o envio físico da mercadoria] do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durante o ano de 2024, foram destinados aos Estados Unidos.
Isso representa a “concentração desses investimentos em um só destino, em detrimento dos países da América do Sul, que vêm assistindo a uma diminuição importante dos investimentos da entidade no comércio regional”, salientou.
Essa tendência, avalia, ainda é um resquício da Operação Lava Jato. “Nós abandonamos esse tipo de financiamento para a América do Sul, para a América Latina e para a África. A Lava Jato morreu do ponto de vista político, ou dos personagens, mas seus efeitos concretos na política externa seguem vivos e este gráfico é uma prova disso”, frisou.
O pesquisador também advertiu contra a inclusão dos termos narcotráfico e terrorismo na Estratégia Nacional de Defesa apresentada pelo governo brasileiro em 2025. Ele salientou que eles não constituem ameaças à soberania do Brasil e nem à segurança da América do Sul, “e são justamente os temas dos ataques de Trump à América Latina. Nós estamos corroborando com isso”.
Barros também advertiu que o Ministério da Defesa iniciará a coordenação dos trabalhos de atualização de sua Estratégia Nacional em julho de 2026. Nesta atualização, alertou, “seria importantíssimo definir as bases para a construção de uma Doutrina Sul-Americana de Defesa, já necessária hoje e ainda mais necessária [no futuro]”.
Ademais, ele apontou a necessidade de recriação da Comissão Interamericana de Planejamento e Acompanhamento da Integração de Infraestrutura Regional Latino-Americana, que existiu entre 2001 e 2019, incluindo mais atores, junto com a promoção e ampliação das linhas de cabotagem nas costas marítimas do subcontinente.
Outro ponto destacado por ele foi a infraestrutura logística e de desenvolvimento, especialmente em áreas de fronteira, de modo integrado, desde as obras até a gestão aduaneira, com harmonização normativa e livre circulação de transportadores, incluindo energia e comunicação.
Barros terminou sua apresentação defendendo a participação ativa dos atores subnacionais nesses processos, o estabelecimento de uma governança para rota ou corredor em temas de infraestrutura e logística.
Ele também advogou por um estímulo para que a rede interoceânica de infraestrutura física e digital reconsidere os corredores bioceânicos e demais projetos de infraestrutura como um conjunto complementar, com grande potencial de expandir as trocas circulares intrarregionais e extrarregionais, e não somente como projetos isolados de corredores concorrentes.
Confira a íntegra da apresentação de Pedro Barros.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Informe OPEU. ↩︎



