Marina Bozzetto[1]
No artigo “Análise da aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento (2020), a partir do ‘Narrative Policy Framework’ (NPF)”, publicado na Revista Perspectivas Sociais V. 8, N. 01 (2022), analiso a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (NMLSB) na Câmara Legislativa por meio das narrativas construídas no processo. No artigo, são discutidos três documentos à luz do modelo de análise de políticas públicas “Narrative Policy Framework” (NPF), cujos parágrafos de cada texto foram codificados em elementos narrativos com auxílio do software de análise qualitativa Atlas.ti, possibilitando e, assim, as comparações entre os documentos.
O artigo visou, num primeiro momento, contribuir para o debate de mudança de políticas públicas a partir de narrativas, explorando o NPF e exemplos de sua utilização no Brasil. Para além, ao abordar o tema do saneamento básico nessa perspectiva, pretendeu-se indicar as diferentes possibilidades de análises que esse tema possui. Dessa forma, o artigo começou por explorar o lugar das narrativas na produção de agendas, trazendo para o debate o “Narrative Policy Framework” e algumas de suas aplicações. Posteriormente, o texto parte para explicação do tema e metodologia utilizada e, por fim, para a análise dos documentos, concluindo, então, que os documentos foram construídos a partir de elementos narrativos diferentes, a depender de como cada ator identificou, por exemplo, o papel e eficiência do Estado nas políticas públicas. Ou seja, mesmo os documentos em análise convergirem para aprovação do Novo Marco, cada um foi defendido mobilizando enredos próprios.
Elementos do Narrative Policy Framework
Há diversos modelos que se debruçam sobre processos de mudança e consolidação das políticas públicas, entrada na agenda, produção e sua aprovação ou não. No campo do estudo de formação de agenda, os principais modelos destacados são o dos Múltiplos Fluxos (Kingdon, [1984] 2003) e Equilíbrio Pontuado (Baumgartener; Jones 1993). Já para análise dos processos de produção das políticas públicas, duas abordagens possíveis são o Advocacy Coalision Framework (ACF) (Sabatier; Jenkins-Smith, 1993) e o Narrative Policy Framework (NPF).
Para o artigo, a abordagem escolhida foi o NPF, que, em resumo, é um framework que dá centralidade aos atores e às ideias na produção da política pública. Para além, traz as narrativas empreendidas na defesa ou oposição às políticas como pilar fundamental a ser considerado na análise, pois as “histórias” influenciariam as policies (políticas) (Jones et. al., 2015).
Desta forma, os autores defendem que as narrativas de políticas seguem a lógica de uma história, que é composta por diversos elementos estruturais – cenário, roteiro, personagens e moral. Como bem analisado por Barcelos et. al. (2020, p. 1632):
são ‘histórias com uma sequência temporal de eventos que ocorrem em um roteiro populado por momentos dramáticos, símbolos e personagens arquétipos, culminando em uma moral da história’ (Jones & McBeth, 2010, p. 329). De acordo com o quadro teórico, os componentes das narrativas de políticas são os elementos estruturais citados no conceito acima (cenário, roteiro, personagens e moral da história) e as estratégias de narrativa que compõem o conteúdo de cada narrativa de política
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Nessa estrutura, o cenário seria o local em que a história se encontra, podendo ser uma localização física, uma situação institucional, contexto etc; o roteiro, por sua vez, é a história apresentada que vai amarrar todos os elementos narrativos; os personagens são os vilões, heróis e vítimas da história; a moral é a conclusão da história, ou seja, a ação a ser tomada para solucionar um problema (Barcelos et. al., 2020); e, por fim, um outro um outro elemento é a “definição do problema” (Camargo, 2018), que seria justamente o motivo de uma situação estar errada, sendo o ponto chave no entendimento das narrativas e soluções propostas.
Saneamento Básico e o Novo Marco Legal
O saneamento básico é um tema complexo, cujos números evidenciam um cenário alarmante. Segundo a Lei Nº- 11.445/2007, que estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico, este possui caráter de direito fundamental ao cidadão, e é constituído pelo “conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de: a) abastecimento de água potável […]; b) esgotamento sanitário […]; c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos […]; d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas”. Sobre esses serviços, alguns números são importantes de destacar. Segundo o Painel do Saneamento Básico, havia aproximadamente 34 milhões de pessoas sem acesso a abastecimento de água no Brasil em 2019, e 94 milhões de pessoas moravam em casas sem ligação com a rede de esgoto. Ainda, cerca de 18 milhões não possuíam coleta de lixo domiciliar (Brasil, 2020).
O Novo Marco Legal do Saneamento Básico foi sancionado em 2020, trazendo alterações às regras para prestação dos serviços de água e esgoto. A partir do Novo Marco, então, as empresas e companhias estaduais, que antes podiam fazer acordos e fechar contratos diretos com os municípios, precisariam agora passar obrigatoriamente por licitações, incentivando, assim, a entrada de atores privados no setor. Além do mais, o Novo Marco previu a prestação regionalizada, a partir do agrupamento de bairros e/ou municípios em blocos, e deu novas atribuições à Agência Nacional das Águas (Bozzetto; D’Agosta, 2021).
Principais resultados
Dado o cenário do Novo Marco Legal, o artigo se propôs a mudar um pouco o olhar: ao invés de se debruçar nos possíveis resultados dessa nova legislação, fez-se o exercício de entender melhor os elementos mobilizados na aprovação dessa política em três documentos: i) Projeto de Lei 4162/ 2019, do Senado Federal; ii) Parecer, de 2020, do PL 4162/2019, da Comissão de Meio Ambiente; iii) Parecer, de 2020, do PL 4162/2019, do Plenário. Assim, os parágrafos dos textos foram codificados a partir dos elementos narrativos do NPF (Cenário, Roteiro, Personagens, Definição do Problema e Moral da História), a fim de analisar as narrativas presentes nos documentos que aprovaram o Novo Marco Legal do Saneamento Básico.
Em suma, os três documentos convergem no sentido de trazerem um Cenário institucional, ou seja, no contexto das legislações vigentes do setor e das medidas provisórias e PLs antecedentes às discussões do Projeto em análise. O Roteiro, por sua vez, é construído a partir dos dados de acesso ao saneamento, evidenciando as deficiências do setor. A Moral da História também é a mesma entre os três documentos, que apontam o Novo Marco como a solução, resultando na sua aprovação. Os P roblemas identificados foram basicamente a forma de regulação e atraso institucional, precariedade dos serviços, capacidade do Estado e falta de orçamento. Estes problemas, no entanto, ao serem combinados com os personagens – em especial os vilões narrados – evidenciaram divergência entre os documentos.
No documento i (Projeto de Lei), o Vilão foi identificado como sendo “os Estados e as concessionárias públicas [que] não conseguiram executar os empreendimentos previstos” e “a grande variabilidade de regras regulatórias [que] se consolidou como um obstáculo ao desenvolvimento do setor e à universalização dos serviços”. Assim, há uma defesa da maior participação da iniciativa privada para solucionar o problema do saneamento. Já nos Pareceres, essa história em cima da disputa entre o serviço público e o privado não acontece, sendo o vilão identificado como o atraso na legislação, gerando, assim, a necessidade de uma atualização do modelo institucional para solucionar o problema do setor.
A análise da aprovação do Novo Marco Legal a partir do NPF, então, foi interessante tanto para aproximar o saneamento de estudos de produção de políticas públicas a partir de narrativas, quanto para evidenciar algumas visões sobre o setor e sobre um mesmo projeto de lei. Verificou-se no artigo que os atores de fato construíram narrativas diferentes para a aprovação do Novo Marco, em especial no que diz respeito às visões sobre as políticas públicas e o papel do Estado. Além do mais, essas narrativas de fato expressam ideias e preferências políticas dos atores, já que, por exemplo, o Documento I – que identifica o poder público como ineficiente – foi assinado pelo Ministério da Economia do Governo Jair Bolsonaro, alinhado com ideais neoliberais (MARQUES SCHAEFER, 2019).
O autor evidencia, a partir de entrevistas e textos publicados na mídia, que Guedes “se situa como um continuador dos clássicos liberais e neoliberais” (idem, p. 113), defendendo que a atuação do estado se restrinja, nas palavras do ministro, em “garantir a vida e a propriedade”. Mais importante para a reflexão feita aqui é que Guedes sugere, de acordo com Marques Schaefer, que os problemas do Brasil advêm das políticas sociais levadas a cabo pelos governos PT e PSDB. Logo, como as narrativas em torno do novo Marco Legal do Saneamento evidenciam, há um debate mais profundo sobre o papel do Estado e seu lugar na produção de políticas.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
Barcelos, Márcio; Rodrigues Neto, Damasio Duval. (2020). “Histórias na agenda: uma aplicação do ‘Narrative Policy Framework’”. Revista de Administração Pública, v. 54, n. 6, p. 1632-1653.
Baumgartner, Frank; Jones, Bryan. (1993). “Agendas and Instability in American Politics”. University of Chicago Press.
Bozzetto, M; D’Agosta, M. Dilemas da regionalização no Novo Marco Legal do Saneamento: o caso da CEDAE no Estado do Rio de Janeiro. In: 45º Encontro Anual da Anpocs, 2021, São Paulo. Anais do 45º Encontro Anual da ANPOCS, 2021.
Camargo, Thais Medina Coeli Rochel de. (2018). “Narrativas de políticas sobre aborto no Brasil: uma análise a partir do narrative policy framework”. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
Jones et. al. (2015). “The Narrative Policy Framework: Child or monster?” Critical Studies Journal, 9(3), 339-355.
Kingdon, John. (2003). “Agendas, Alternatives and Public Policies”. Longman Classics in Political Science. 2nd edition.
Marques Schaefer, B. (2019). “Paulo Guedes e o (Neo) Liberalismo: Apontamentos Preliminares Acerca da Nova (Velha) Direita Brasileira”. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais, v. 4, n. 3, 5 dez.
Sabatier, Paul A. e Jenkins-Smith, Hank C. (1993). “Policy Change and Learning: an advocacy coalition approach”. Oxford: Westview Press.
SENADO FEDERAL. Projeto de Lei 4162/ 2019. 2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=178746 2. Acesso em 7 nov. 2020.
SENADO FEDERAL. PARECER, DE 2020, do PL 4162/2019. Comissão de Meio Ambiente. 07/04/2020. 2020a. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=8090241&ts=1616445853615&disposition=inline. Acesso em 7 nov. 2020
SENADO FEDERAL. PARECER Nº 71, DE 2020, do PL 4162/ 2019. Plenário. 2020b. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=8125482&ts=1616445848371&disposition=inline. Acesso em 7 nov. 2020.
[1] Bacharel em Ciências Sociais e mestranda do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.
Fonte Imagética: O projeto é considerado prioritário no Senado e foi listado pela equipe econômica entre as que devem ter tramitação acelerada para enfrentamento da pandemia, Agência Senado (Créditos: Fernando Frazão/Agência Senado). Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/06/novo-marco-do-saneamento-basico-pode-ser-votado-no-combate-ao-coronavirus>. Acesso em 02 set 2022.