O texto abaixo é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e as Ciências Sociais que será publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta, que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando. Acompanhe e compartilhe!
Sérgio Carrara*
Uma das áreas mais antigas e tradicionais das ciências sociais é a que se volta à reflexão dos processos de saúde e doença e das relações entre o biológico e o social. É tão significativa essa preocupação no campo da Antropologia Social que, em vários países, especialmente nos Estados Unidos, institucionalizou-se uma subdisciplina inteiramente dedicada a ela: a Antropologia Médica.
No Brasil, esse subcampo do saber antropológico tem sido geralmente designado como Antropologia do Corpo e da Saúde. Para seu desenvolvimento, a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, a ANPOCS, promove anualmente grupos de trabalho, fóruns e mesas redondas; e, nos últimos anos, foram realizados três encontros nacionais específicos, intitulados Reuniões de Antropologia da Saúde (RAS).
Obviamente, não se trata aqui de arrolar as inúmeras contribuições das Ciências Sociais, em geral, e da Antropologia Social, em particular, para a Saúde Pública brasileira e internacional. Para isso precisaríamos de muitas páginas. E seriam necessárias muitíssimas mais, caso agregássemos a produção sobre o tema oriunda da Filosofia, da História, da Demografia, da Psicologia, da Administração, do Direito e até da Economia.
Para que se tenha apenas uma pálida ideia da importância e robustez da produção das Ciências Humanas e Sociais em saúde, lembramos que a maioria dos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva, Saúde Pública ou Medicina Social do País contam com departamentos que reúnem cientistas sociais de diferentes feitios (antropólogos, cientistas políticos, sociólogos) e que duas das três comissões em que se divide a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) – a Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde e a Comissão de Política, Planejamento e Gestão – reúnem ramos importantes do conhecimento sociológico.
Lembremos também que a mais importante instituição de Saúde Pública do País e da América Latina – a respeitada Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) – é atualmente presidida por uma profissional graduada em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política e doutora em Sociologia. Uma segura demonstração da qualidade dos cursos de graduação e pós-graduação brasileiros na área.
Qualquer ação em Saúde Pública não pode prescindir da contribuição de cientistas sociais, ou seja, não pode prescindir de uma perspectiva abrangente sobre como se desenrolam as interações entre pessoas e grupos humanos, sobre como as sociedades se estruturam e, enfim, sobre como os processos patológicos adquirem diferentes significados em cada uma delas.
É indiscutível que a trajetória descrita por uma doença contagiosa epidêmica em uma sociedade na qual são vigentes estritas regras de evitação entre categorias sociais ou castas (o que inclui a evitação do contato com fluidos corporais) será inteiramente diferente da trajetória da mesma epidemia em uma sociedade em que tais regras não existem.
Do mesmo modo, grupos sociais pouco permeáveis ao discurso científico reagirão de modo diferente daqueles que não o são. O conhecimento sócio-antropológico é, portanto, estratégico para a compreensão da distribuição e difusão de diferentes epidemias em determinado espaço social.
Além disso, no campo da chamada “educação sanitária”, tal conhecimento tem sido igualmente crucial para o desenvolvimento de técnicas de ação mais eficazes, baseadas no respeito aos direitos humanos e no permanente diálogo com as visões de mundo – às vezes fortemente contrastantes – mantidas pelos diferentes atores sociais. Lembremos que a eficácia dessa tecnologia foi amplamente comprovada no âmbito da “resposta brasileira à AIDS”, considerada por muito tempo como política de saúde exemplar e merecedora do respeito internacional.
Apenas a má-fé, o preconceito ou a mais profunda ignorância são capazes de explicar que, opondo profissionais de saúde a antropólogos(as) e filósofos(as), autoridades brasileiras insistam em reafirmar o caráter secundário da contribuição das ciências humanas e sociais, particularmente da Antropologia Social, na luta contra doenças endêmicas e epidêmicas.
É acusação tão despropositada e infundada que se torna até difícil responder a ela. Trata-se de afirmação irresponsável especialmente no momento atual, em que devemos agregar esforços, ideias e técnicas de todas as áreas do conhecimento para enfrentar uma epidemia que se configura como a mais grave ameaça à saúde pública desde a gripe espanhola.
* Sérgio Carrara é professor do Instituto de Medicina Social da UERJ e vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Referência imagética: Museu Nacional em reforma depois do incêndio de 2018. Foto: Luciana Cavalcanti.