Silvia Brandão[1]
Em dezembro de 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu a data de 30 de agosto como o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado. No sistema de justiça internacional, o reconhecimento dessa prática como delito começa a partir da Segunda Guerra Mundial, notadamente em decorrência do desaparecimento de civis pela Alemanha de Hitler. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) de 1998, em seu artigo 7º, define os crimes contra a humanidade como ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil. Esse mesmo artigo define o desaparecimento forçado de pessoas como crime contra a humanidade. Para o direito internacional, trata-se de um crime continuado que só termina quando se apresenta o corpo.
No Brasil, esse tipo de crime emerge socialmente a partir das lutas dos familiares de militantes desaparecidos pela ditadura militar (1964-1988). Porém, a despeito das batalhas operadas por essas pessoas (mesmo o país sendo signatário do Tribunal Penal Internacional e da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, comprometendo-se a não praticar, permitir ou tolerar esse tipo de crime e também a adotar as medidas necessárias para sua tipificação[2]) e apesar da sentença da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 2010, que condenou o Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de cerca de 70 guerrilheiros no caso Araguaia; e ainda não obstante o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) indicar a ocorrência de, ao menos, 243 casos de desaparecimentos de militantes pelo Estado ; no país o crime segue não tipificado, restos mortais de vítimas permanecem não localizados e pessoas continuam desaparecendo[3]. Para se ter uma ideia, o Anuário de Segurança Pública de 2019 registrou um total de 82.094 pessoas desaparecidas apenas em 2018[4].
Contudo, embora o Estado ditatorial tenha desaparecido com opositores políticos e desaparecimentos continuem sendo operacionalizados por engrenagens do Estado democrático, é preciso reconhecer que, no território denominado Brasil, a fabricação do desaparecimento de pessoas antecede ao conceito de desaparecimento forçado, já que se inicia na colonização. Numa perspectiva histórica e ao mesmo tempo atual, os desaparecimentos contemporâneos devem ser compreendidos também como desdobramentos da política colonial branca, genocida e desumanizadora. Uma produção que remonta à invasão europeia e que segue sendo atualizada, inserindo-se, assim, no racismo que estrutura as relações sociais e econômicas no país.
No processo, criou-se o Outro como oposição ao branco civilizado que, como diz Kum Tum Akroá Gamela, vai da negação “sutil, subjetiva, até a eliminação física, (…). ‘Não são nada, nem são gente, nem são humanos, que não têm fé, porque não tem lei, porque não tem rei. Então são o que? São nada’. Daí pra cortar a cabeça ou partir ao meio com um facão ou atravessar com uma bala não faz muita diferença, porque a morte já foi decretada”[5]. Acrescento: daí para arrancar impressões digitais, arcadas dentárias, mutilar, afundar, incinerar e desaparecer com corpos, não faz diferença, porque o assassinato já foi operado.
Com relação aos indígenas, dentre tantos acontecimentos, destaco o Decreto 8.799 de 9 de setembro de 1882, momento em que o nascente Estado brasileiro concede à Companhia Mate das Laranjeiras os territórios kaiowá, localizados na então Província de Mato Grosso, construindo imensas fortunas sob as ossadas de inumeráveis indígenas[6]. Do contemporâneo, menciono o levantamento feito pelo cacique Dival, em 2016, que totaliza a existência de 200 pessoas da etnia Xetá, ao mesmo tempo em que indica haver um contingente de parentes com destino incerto, por fuga, desaparecimento forçado ou distribuição[7]. Lembro ainda o desaparecimento do cacique Guarani- Kaiowá Nísio Gomes, em 2011, durante agressão promovida por fazendeiros em conjunto com uma empresa de segurança privada, e o caso dos 3 bebês Yanomami desaparecidos no contexto da Covid 19[8].
Com relação ao povo negro, sabe-se da existência de cemitérios como o do Campo da Pólvora e o dos Pretos Novos. O Cemitério do Campo da Pólvora era administrado pela Santa Casa da Misericórdia da Bahia. De acordo com informação que consta no site da instituição, a localização do Campo é incerta e os registros não possibilitam identificações, apontando apenas dados sobre proprietários, navios e nações africanas de origem[9]. Já o Cemitério dos Pretos Novos da Baía da Guanabara era administrado pela Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e operava no Largo de Santa Rita, depois transferido para fora dos limites da cidade, em Valongo, onde funcionou de 1772 até 1830, ano em que oficialmente foi extinto o tráfico negreiro. Ele era destinado aos que morriam logo após a entrada na Baía da Guanabara ou imediatamente após o desembarque, quando então eram enterrados em valas comuns com um palmo de profundidade e sem identificação[10]. Do tempo presente, dentre os desaparecimentos que atingem a população negra, ressalto os casos do pedreiro Amarildo, dos desaparecidos dos Crimes de Maio de 2006 e das três crianças de Belford Roxo.
Em resumo, ao observarmos a prática do desaparecimento de pessoas empreendida pelo Estado ditatorial associada ao colonialismo, ao racismo e ao tempo presente, evidencia-se que quando a ditadura militar fabricou seus opositores políticos como terroristas, fez com que eles adquirissem o status do Outro do humano, tornando-os parte dos corpos que desde a colonização são desumanizados e, por isso, passíveis de torturas, assassinatos e desaparecimentos. Esses acontecimentos não apenas demonstram que no Brasil a prática de fazer desaparecer pessoas é produzida numa escala de longa duração, como atinge principalmente corpos antes categorizados como se fossem nada, como se fossem constituídos por uma humanidade inadequada ou de uma cidadania de segunda classe. Assim, uma política de governo contínua que a cada época histórica emerge atualizada. Se no colonialismo a vítima racializada e desumanizada pôde ser tratada como nada, na ditadura o Estado produziu o militante desaparecido igual ao inimigo interno (terrorista) que, como tal, pôde ter seus direitos de vida e morte suspensos sem que isso fosse considerado crime ou delito. No tempo presente, a lógica estatal que possibilita a produção de desaparecimentos articula conceitos como vida improdutiva, racismo, criminalização, inimizade e memórias ditatoriais.
Com relação as memórias da ditadura, ao menos até 2016, dentre outras formas, o aparelho de Estado possibilitou a manutenção de militantes sumidos no status de desaparecidos pelas produções memorialísticas associadas à medidas de reparação que os tratavam como assunto de família. Ao mesmo tempo, tornava socialmente palatável o fato de as Forças Armadas não abrirem todos os arquivos da repressão política, por meio de ações como as de perdão institucional operadas pela Comissão de Anistia, enquanto o Exército se tornava a instituição responsável pela localização dos restos mortais de guerrilheiros que ele mesmo havia feito desaparecer[11]. No entanto, o golpe de 2016 escancarou a defesa institucional – com destaque para o atual ocupante da cadeira presidencial – sobre o modo de operar da ditadura, o que pode ser lido também como uma espécie de autorização pública de continuidade do uso governamental da tortura e do desaparecimento de pessoas.
Em paralelo, por ação ou omissão, o Estado potencializa a fabricação de novos desaparecimentos, na medida em que efetivamente não coíbe, mas tolera e por vezes coopera com a violência fabricada por engrenagens do tipo garimpeiros, ruralistas, seguranças privados, militares da reserva, que atacam indígenas classificados ostensivamente como portadores de modos de vida inúteis ao capitalismo, daí constituídos como gente de vida improdutiva[12]. Também por meio de operações justificadas como necessárias à guerra às drogas, o Estado atua na criminalização de corpos periféricos e negros. Essa criminalização fortalece a percepção social que associa a população negra à ideia de inimigos internos, enquanto torturas e desaparecimentos atingem seus corpos através de uma espécie de divisão de tarefas entre policiais, milicianos e traficantes[13]. No processo, como ocorre com os militantes desaparecidos pela ditadura, os novos casos de desaparecimento são institucionalmente tratados como assunto de família. Sem corpo, crime, investigação, esclarecimento ou responsabilização, mas também com baixa indignação social.
Enfim, diante da reiterada produção de desaparecidos, é preciso assumir que no Brasil a fabricação de desaparecimentos, ao mesmo tempo em que se articula ao colonialismo e ao racismo, que de modo diverso afeta indígenas e negros, faz parte de atuações e/ou omissões governamentais que podem ser classificadas também como operações sistemáticas de longa duração, constituindo-se parte das políticas de Estado que atingem seguimentos específicos da população civil. Assumir essas associações, no entanto, implica reconhecer que as diferentes categorias de pessoas desaparecidas são todas vítimas políticas. Indo além, por se tratar de produções que ocorrem conectadas com modos de operar governamentais, a fabricação dessas vítimas e as questões que as circulam, como por exemplo as buscas em torno de pessoas sumidas e a tipificação do crime de desaparecimento forçado, não podem ser tratadas apenas como assunto de mães, familiares ou parentes afetados. São assuntos de Estado e requerem políticas públicas ativas no combate das causas geradoras de desaparecimentos, acompanhadas de medidas de reparação, memória e justiça, que minimizem os efeitos do sofrimento que atinge cidadãos afetados pelo sumiço de seus entes queridos[14]. Porém, por se tratar de matéria governamental, diz respeito a toda comunidade política e a convoca. Até quando?
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Fábio Alves. Das técnicas de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política. Rio de Janeiro: Lamparina, FAPERJ, 2014.
BRANDÃO, Silvia. As máquinas de memória: o corpo-vítima da ditadura militar brasileira como peça dos processos de subjetivação do contemporâneo. 2019. Tese (Doutorado em Filosofia) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos, São Paulo, 2019.
_____. Fazer morrer, deixar morrer: das memórias que nos contam. In: Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, Bauru, V. 9, N. 1, p. 137-160, jan./jun., 2021, p. 137-160.
BRAND, Antonio Jacó. O confinamento e o seu impacto sobre os Pãi-Kaiowá. 1993. Dissertação. (Mestrado em História) – Escola de Humanidades. Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1993.
CALARAM Nísio Gomes: que a justiça não se cale!. Conselho Indígena Missionário, 24 set, 2014. Disponível em: <https://cimi.org.br/2014/09/36480/>. Acesso em: 27 jul. 2021.
MILANEZ, Felipe; SÁ, Lúcia; KRENAK, Ailton; CRUZ, Felipe Sotto Maior; RAMOS, Elisa Urbano; JESUS, Genilson dos Santos de. Existência e diferença: o racismo contra povos indígenas. Revista Direito Prax., Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 3, 2019, p. 2.161-2.181.
MORAIS, Bruno Martins. Do corpo ao pó: crônicas da territorialidade kaiowá e guarani nas adjacências da morte. São Paulo: Elefante, 2017.
PACHECO, Rafael. Os Xetá e suas histórias: memória, estética, luta desde o exílio. 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Setor de Ciências Humanas. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, 2018.
PEREIRA, Júlio Cesar Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007.
[1]Doutora em filosofia pela Unifesp. Pesquisadora do Núcleo de Filosofia e Política (Unifesp/CNPq). Pós-Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, Unifesp. E-mail: silmaribra@gmail.com.
[2] O país é signatário do TPI desde 2002 e promulgou a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas através do Decreto 8.766/2016.
[3]Circula no Congresso Nacional o PL 5215/2020, que dispõe sobre prevenção e repressão ao desaparecimento forçado de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, apensado ao PL 6240/2013.
[4]Em geral, os desaparecimentos são classificados em três tipologias: voluntário, involuntário e forçado. No entanto, o Anuário não especifica quantos casos se referem a cada tipologia. Também não informa a categoria social dos desaparecidos (gênero, idade, raça, território, classe). Destaco ainda, não foi possível identificar se os números absolutos contemplam os desaparecimentos de indígenas.
[5]GAMELA apud MILANES; SÁ; KRENAK; CRUZ; RAMOS; JESUS, 2019, p. 2.172.
[6]BRAND, 1993, p. 48-49.
[7]Dentre as mais de 300 etnias existentes no país, os Xetá foram uma das dez etnias pesquisadas pela Comissão Nacional da Verdade. Com relação a essa etnia, além das mortes ocasionadas por incêndios de aldeias, envenenamento e captura, há parentes desaparecidos devido as remoções forçadas executadas pela Cobrinco (Companhia Brasileira e Imigração e Colonização, ligada ao banco Bradesco) e pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O SPI operacionalizou também a distribuição dos Xetá em áreas de outras etnias, como os Kaingang e Guarani. Cf. PACHECO, 2018.
[8]Sobre o cacique Nísio Gomes ver CALARAM Nísio Gomes: que a justiça não se cale!, 2014, s/n. Sobre os bebês Yanomami cf. BRANDÃO, 2021.
[9]Acervo de documentos históricos da Santa Casa revela a vida dos escravos da Bahia. Santa Casa BA, 27 nov. 2018. Disponível em: < https://www.santacasaba.org.br/noticias/2018/11/27/acervo-de-documentos-historicos-da-santa-casa-revela-a-vida-dos.html>. Em outra matéria, encontrei indicação de que no Campo da Pólvora foram executados escravos que participaram de revoltas como a emblemática Revolta dos Malês de 1835, em Salvador. Disponível em: <https://www.revistamuseu.com.br/site/br/noticias/nacionais/10951-09-04-2021-historiadora-lanca-site-sobre-o-cemiterio-dos-escravos-do-campo-da-polvora.html>.
[10]PEREIRA, 2007.
[11]BRANDÃO, 2019.
[12]MORAIS, 2017.
[13]ARAÚJO, 2014.
[14]ARAÚJO, 2014.
Referência imagética: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-12/comissao-reconhece-mais-de-200-desaparecidos-politicos-durante (Acesso em14 set. 2021)