Boletim n.13 – CIENTISTAS SOCIAIS E O CORONAVÍRUS
Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEG), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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Nashieli Rangel Loera*
No estado de São Paulo existem 140 assentamentos rurais estaduais, onde moram mais de 7000 famílias espalhadas ao longo de 40 municípios (ITESP, 2019)¹. A região conhecida como o Pontal de Paranapanema ao Oeste do estado é a que concentra o maior número de assentamentos, 98 no total, e tem sido, nos últimos 15 anos, o locus etnográfico das minhas pesquisas sobre o mundo rural e as populações do campo.
Contrário ao que se pensa no senso comum, os assentamentos rurais, assim como muitas outras comunidades camponesas no Brasil estão longe de serem lugares sossegados, quietos, isolados. Uma extensa produção de pesquisas antropológicas realizadas entre quilombolas, caiçaras, camponeses do norte de Minas Gerais, sertanejos e trabalhadores rurais de diversas regiões do nordeste e centro oeste do país, pescadores e ribeirinhos do norte, povos da floresta, dentre muitos outros, têm enfatizado a importância dos deslocamentos, da circulação e do movimento no cotidiano destas populações; o movimento está longe de ser uma exceção, pelo contrário, nestes diversos contextos rurais se apresenta como um valor. O movimento está na ordem do dia. No caso dos assentamentos, o movimento e a circulação nestes espaços interconectados parece ser a raiz crucial da vitalidade. No último assentamento da região, criado em 2016 no município de Mirante do Paranapanema, as 35 famílias assentadas nos lotes mantêm relações cotidianas com parentes ou conhecidos em outros assentamentos próximos. Segundo o levantamento realizado no meu último trabalho de campo, em janeiro de 2020, assentados do Irmã Dorothy mantêm um fluxo de trocas ou estão, de alguma forma, vinculados com pelo menos outros seis assentamentos da região, localizados nos municípios de Mirante, Marabá Paulista e Teodoro Sampaio.
Floriza, uma das assentadas mais velhas do assentamento Irmã Dorothy, percorre todos os dias vários quilômetros a pé, para buscar água no assentamento vizinho. A família Dos Santos, também assentada, reúne uma parentela extensa, distribuída em vários lotes de assentamentos da região e em casas localizadas em pequenas cidades vizinhas como Cuiabá, Mirante e Costa Machado. São 14 filhos e filhas do seu Lourival e da Dona Maria de Lourdes, 48 netos, 33 bisnetos e 3 tataranetos. Três jovens filhos de 3 irmãs assentadas no mesmo assentamento, percorrem de moto, praticamente todos os dias, os caminhos pelo interior das terras que conectam seu assentamento com outros três assentamentos para visitar suas namoradas. Já as suas mães, visitam frequentemente os parentes espalhados nas cidades de Cuiabá e Mirante, mas também os que estão assentados nas proximidades, e pelo menos duas vezes por semana boa parte destes assentados participam de cultos religiosos em outros assentamentos ou cidades próximas. Nesse vai-e-vem circulam recados, pessoas, sementes, ferramentas, porcos, galinhas, pedaços de carne, ovos, verduras e cuidados, principalmente com relação aos mais velhos da parentela e as crianças. Este movimento que acontece no cotidiano de cada assentamento se amplia entre os sítios e as casas nas pequenas cidades próximas, vinculando assim um extenso território ampliado.
Eu me pergunto, como é que a proposta de um isolamento vertical, conforme sugerida pelo presidente, no contexto de uma pandemia como a do coronavírus, e que implica o isolamento parcial dos que são considerados mais vulneráveis, pode dar resultado entre as populações do campo? E ainda, como viabilizar esse modelo de isolamento em um território ampliado como o dos assentamentos rurais do Pontal, mas também de muitas outras comunidades rurais onde cotidianamente há um fluxo de pessoas, objetos e alimentos circulando, e onde os mais velhos cuidam ou são cuidados pelas crianças e jovens da sua parentela? Como um isolamento vertical daria conta, por exemplo, de conter uma onda de contágios e quais seriam suas consequências para as quase 1200 famílias que compõem os 31 assentamentos do município de Mirante, onde há apenas um posto de saúde à disposição da população? Acredito não ser uma realidade somente dos assentamentos rurais paulistas.
Nestes momentos, e para pensar na melhor estratégia de contenção do contágio é preciso saber: de que população estamos falando? quais são suas rotinas? quais são suas necessidades? O conhecimento sobre a diversidade dos modos de vida da população do campo neste momento não é nada banal, e com certeza, especialistas antropólogos e cientistas sociais têm muito a dizer e a contribuir.
¹Revista Fatos da Terra. N. 27, Fundação Instituto de Terras do estado de São Paulo, 2019.
*Nashieli Rangel Loera é Professora do Departamento de Antropologia e Pesquisadora do Centro de Estudos Rurais (CERES) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Referência imagética: Batizado na roça, Anita Malfatti.