Marina Bolfarine Caixeta[1]
Roberto Goulart Menezes[2]
5 de julho de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia o texto anterior aqui.
Desde a década de 1980, a concentração de renda aumentou vertiginosamente no mundo. A última edição do Relatório da Desigualdade Mundial (Piketty et al, 2022), revela que a iniquidade global segue crescendo: os 10% mais ricos ficaram com 52% da renda e 76% da riqueza. Na parte de baixo da pirâmide, metade da população fica apenas com 2% da riqueza e 8,5% da renda. No Brasil, de acordo com a Oxfam (2017), a desigualdade de renda segue sendo brutal: seis brasileiros possuem a mesma renda que metade da população mais pobre do país. Portanto, é fundamental que a desigualdade seja politizada e tenha sido incluída pela presidência brasileira do G20 na agenda desse que se tornou desde a crise de 2008 o principal fórum de discussão das questões econômicas e financeiras.
O lema da Cúpula do G20 escolhido pelo Brasil é ambicioso – Construindo um mundo justo e um planeta sustentável – e indica dois temas cruciais: justiça social e crise climática. O primeiro tema é bem conhecido dos/as brasileiros/as. Vivendo em um dos países mais desiguais do mundo, onde “um adulto nos 95% [isto é os 5% mais ricos] tem renda quase oito vezes maior que um nos 33%; nos 99% [isto é o 1% mais rico], quase trinta vezes maior […] o topo é tão mais rico que o restante, mas tão mais rico, que é desigual até mesmo em relação às rendas mais altas” (Medeiros, 2024, p. 24-25). E o segundo é a crise climática.
Assim, como nos seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010, o presidente Lula busca agora retomar a agenda da promoção da justiça social com a reformulação do Programa Bolsa Família, o combate à fome e a miséria, o reajuste do salário mínimo acima da inflação e com algumas iniciativas na área de educação e saúde. Os indicadores sociais nesses quase dois anos do governo Lula apresentam melhoras, ainda que muito lentamente. Entre os principais entraves estão o avanço do Congresso sobre o orçamento público desde 2016 e a austeridade fiscal.
Na trilha de finanças o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e sua equipe, tem dedicado esforços ao tema da tributação. A ideia de se criar uma tributação global não é nova e tem como referência o prêmio Nobel de Economia James Tobin (1918-2022). Ele havia proposto em 1972 a criação de uma espécie de “imposto global” sobre as movimentações financeiras de caráter especulativo. Em 1997, inspirada na proposta de Tobin, surgiu na França a Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos (ATTAC) que defende a aplicação da quantia arrecadada seja revertida para financiar o acesso a água, alimentação e educação nas regiões mais pobres do mundo.
O tema da tributação global foi retomado no livro O Capital no século XXI (2013) de Thomas Piketty. No capítulo 15, intitulado “um imposto mundial sobre o capital”, ele afirma “o imposto mundial sobre o capital é uma utopia: seria difícil acreditar que as nações do mundo pudessem concordar com essa ideia” para em seguida defendê-la: “considero uma utopia útil”, pois “muitos rejeitarão o imposto sobre o capital como uma ilusão perigosa, assim como o imposto sobre a renda foi rejeitado há pouco mais de um século” (p. 501-502). De certa forma é esta utopia ideal que o Brasil pôs sobre a mesa uma década depois da publicação do livro de Piketty. Vale observar que a tributação dos super-ricos têm convergência e o apoio da administração Biden nos Estados Unidos.
Um dos autores do Relatório mundial da Desigualdade e membro do grupo de pesquisa de Piketty, Gabriel Zucman atualmente é Diretor do Observatório Fiscal Europeu e estudioso da tributação. Ele coordenou o estudo “A blueprint for a coordinated minimum effective taxation standard for ultra-high-net-worth individuals” (“Proposta para um padrão de taxação efetiva mínima para os indivíduos de riqueza ultra-alta”) encomendado pelo Ministério da Fazenda brasileiro que será apresentado pelo Brasil como proposta de tributação internacional justa e progressiva no G20 em novembro no Rio de Janeiro. Durante a elaboração desse estudo Zucman e sua equipe mantiveram diálogos com a sociedade civil – reforçado pelo trabalho com grupos de engajamento do G20 que reúne mais de uma dezena de diferentes pautas de interesse social. Trata-se da valorização e o fortalecimento da agenda e do interesse público, contra a tendência do multistakeholderismo[3] e crise do sistema ONU.
O objetivo é propor políticas para tornar os sistemas tributários mais eficientes, possibilitando que a cooperação financeira entre os países contribua para reverter a tendência da concentração de renda e de riqueza no mundo. E o G20 Financeiro é o local privilegiado para buscar formas de reduzir as desigualdades. Afinal, uma governança global mais equitativa é um processo de governo democrático, multilateral e inclusivo. Não se deve separar o desenvolvimento nacional da luta contra as desigualdades no interior e entre os países no sistema internacional. Isso é o que discutimos neste artigo: a tributação internacional é uma forma de promover a justiça social e tem a capacidade de fortalecer os governos dos países tanto no plano doméstico quanto na governança global. Ainda que, como sabemos, os desafios são muitos.
A proposta brasileira
A proposta de tributação global prevê o pagamento de imposto por parte dos bilionários do mundo entre 1% e 3% das suas riquezas. Ou seja, a cobrança de um imposto mínimo sobre a riqueza dos super-ricos poderia arrecadar até US$ 688 bilhões por ano (Oswald, 2024). A cobrança começaria pelos cerca de 3 mil bilionários que possuem patrimônio superior a US$ 1 bilhão. O relatório coordenado por Zucman deve enfrentar muitas resistências. O Brasil tentará formar consenso em torno da ideia de taxar os super-ricos.
Essa resistência é algo chocante para a governança global que pretende criar espaços multilaterais intergovernamentais com participação social para garantir que agendas públicas sejam promovidas por meio de consensos internacionais estimulando políticas domésticas. A rede de solidariedade e ativismo da sociedade civil, entretanto, tem sucumbido diante do lobby das grandes corporações nessas agendas que deveriam ser sociais, por meio da coptação da agenda pública pelo interesse privado. Os atores que visam lucro dispõem gradualmente de maior orçamento e poder do que os governos dos países, uma espécie de estágio tardio da acumulação de capital.
Diante dessa tendência, uma taxação global progressiva seria um começo. O compromisso dos governos no G20 resultaria na implementação de impostos (mínimos!) entre 1% e 3% das riquezas dos bilionários em pagamentos de tributos anuais para os respectivos países. Trata-se de estabelecer um padrão global de tributação atrelado à ideia de justiça social global: se alguém se torna rico, deve pagar um imposto mínimo sobre a riqueza, o que seria direcionado às políticas públicas e agendas governamentais e intergovernamentais. Isso facilitaria as iniciativas pensadas para enfrentar as desigualdades globais e promover serviços públicos, garantindo os direitos humanos em todo o mundo e promovendo uma economia global mais justa e sustentável. Com a tributação global, os paraísos fiscais seriam enfraquecidos uma vez que os detentores de capital não teriam mais a opção de se refugiarem nesses territórios a fim de escaparem da tributação dos seus respectivos domicílios fiscais.
A coordenação internacional e a busca da justiça tributária
A taxação dos super-ricos é mais um passo nos avanços recentes da governança tributária internacional que busca aumentar a transparência e responsabilidade fiscal dos países. A OCDE, que vem discutindo a adoção de tributação sobre as corporações multinacionais, desde 2013 negocia um acordo entre seus membros para combater a Erosão de Base Tributária e Desvio de Lucros (BEPS, na sigla em inglês)[4]. E, mais recentemente, surge na América Latina e o Caribe uma Plataforma Tributária (a PT-LAC) para tratar dos desafios enfrentados por esses países em promover políticas fiscais equitativas e fiscais[5]. Essas experiências somam-se às iniciativas em discussão no G20 que não devem, entretanto, descolar-se destas outras coordenações mas, sim, fortalecer as iniciativas de criar mecanismos fiscais globais mais abrangentes. Assim,
É urgente e essencial conseguir uma cooperação tributária internacional justa, efetiva, transparente e inclusiva. Isso requer uma estrutura institucional e normativa que só será possível após o estabelecimento e o fortalecimento de mecanismos fiscais globais, liderados pelas Nações Unidas, com sistemas e mecanismos participativos que incluam todos os países e a sociedade civil. (Recomendações da Sociedade Civil, 2024, p.3)
No presente, a opinião pública passa a ser relevante para contribuir com debates e propostas técnicas, além de controle social. A falta de vontade política dos países, seja pela competição no sistema capitalista, seja pela denúncia a medidas de ingerência interna, tem suscitado o envolvimento e reivindicações de grupos sociais. A participação social, de fato, não apenas endossa a importância da agenda pública e do fortalecimento do Estado como ainda demanda uma moral global necessária para resolver as diferentes crises civilizatórias multissistêmicas.
Assim, a proposta brasileira criada em diálogo com organizações da sociedade civil (OSC) é um processo ousado e, ao mesmo tempo, um legado para o G20. Parte do trabalho realizado em prol do G20 Social – e sua Cúpula Social prevista para acontecer dois dias antes da Cúpula Oficial – os distintos grupos de engajamento foram convidados pela Trilha de Finanças para discutirem a proposta do governo brasileiro. De acordo com Beghin do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) acerca da Carta de Recomendações da Sociedade Civil (2024) “É importante construir espaços interativos para canalizar demandas e formular propostas, garantindo a responsabilização e a participação social na cooperação internacional sobre política fiscal”[6].
Essa proposta foi realizada em sintonia com o que tem sido feito pela Força Tarefa da Aliança Global de Combate à Fome e à Pobreza do G20 que já organizou dois eventos para ouvir OSC’s nacionais e internacionais. Essa outra proposta brasileira de promover maior cooperação internacional dedicada ao combate à fome vislumbra nesse espaço do G20 a oportunidade de promover um consenso global sobre a prioridade da segurança alimentar e nutricional (SAN) e de captar recursos para essa agenda, outra pauta que conta com grande participação social no Brasil com destaque para o CONSEA.
O maior diálogo dos Estados com as sociedades, estimulado pelo G20 sob a presidência brasileira, defende a transparência, prestação de contas e participação social na cooperação internacional sobre políticas tributárias. Em linhas gerais, as OSC recomendam: (a) uma governança fiscal internacional, fortalecendo e centralizando a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional (UNFCITC, na sigla em inglês); (b) princípios orientadores para incorporar questões abrangentes como os direitos humanos, as obrigações socioambientais e climáticas às tomadas de decisões tributárias, descolonizando os padrões vigentes e incorporando a abordagem de gênero, raça/etnia para combater as desigualdades; (c) questões substantivas centradas na UNFCITC, porquanto reúne a maioria dos países, para criar e legitimar esse imposto mínimo sobre os super-ricos e sobre transações financeiras, instituir a cooperação fiscal em benefício de um comércio e investimentos mais equitativo, adoção de um registro global de ativos, e apoiar impostos multilaterais como meios de financiamento da justiça climática, ambiental e social.
Por fim, destacamos a recomendação da sociedade civil sobre a necessidade de reforma dos sistemas tributários e o combate à concentração de riqueza através da justiça tributária: “Recomendamos que os membros do G20 apoiem, no âmbito da UNFCITC, a criação de um imposto mínimo global sobre os super-ricos, com garantias políticas de que os recursos angariados por meio deste mecanismo serão atribuídos à realização dos direitos humanos, em particular nos países empobrecidos do Sul Global.” Afinal, “A evasão e a elisão fiscal sem controle perpetuam ainda mais o ciclo de desigualdade [dentro e entre os países] e minam a base do desenvolvimento econômico sustentável.” (Carta de recomendação da Sociedade Civil, 2024, p.15)
Considerações Finais
A proposta brasileira no âmbito do G20 é condizente com as crises atuais da governança multilateral global e as reivindicações do Sul global em distintas agendas e fóruns setoriais. A forte concentração de poder em atores da iniciativa privada tanto é uma evidência da injustiça global quanto também um problema para todos os países e suas agendas de desenvolvimento. O Sul global, nesse sistema internacional, tem sido mais prejudicado. Por isso, reforça sempre a importância de se orientar pelo princípio das responsabilidades comuns em agendas globais como das transições energéticas, dos sistemas alimentares e outras, porém sempre tendo em vista as capacidades e responsabilidades diferentes entre os países.
Nesse sentido é que essa proposta, sem dúvidas, é um importante avanço na discussão global sobre o direito ao desenvolvimento dos povos do mundo, a extrema concentração de renda com a consequente captura corporativa das agendas públicas por parte de uma elite global orientada pelo interesse privado e das necessárias lutas contra as desigualdades no mundo – de renda, riqueza, raça, gênero etc. Isso é o que entendemos como sendo uma proposta por justiça social global.
Segundo Smith (2020) a reflexão sobre a ordem e a justiça global são conciliáveis e de natureza social. Passamos da década de 1980 em que se acreditava que elas eram mutuamente excludentes (Hedley Bull), à ideia de que a ordem mundial só seria possível com justiça social (John Rawls) e, posteriormente, à tentativa em indicar, por meio de estimativas, o que seria uma ordem mundial justa na proposição de Amartya Sen. Ao se questionar se seria possível uma ordem mundial justa promovida por um sistema de Estados soberanos, ou se isso somente seria viável com um governo mundial centralizado – no lugar dos distintas agendas da governança global -, Smith (2020) sugere ser necessário discutir a capacidade dos Estados em adotar uma conduta moral, um tema complexo. A proposta de tributação internacional no G20 pode ser uma contribuição nesse sentido, ou um impulso perante a opinião pública global, em uma visão mais otimista.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
Medeiros, Marcelo. Os ricos e os pobres. O Brasil e a desigualdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2024.
Oswald, Vivian. Taxar super-ricos pode arrecadar até US$ 688 bi. O Globo, 26. junho. 2024.
Oxfam. A distância que nos une. São Paulo: 2017. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/a-distancia-que-nos-une/
Piketty, T. et al. World Inequality Report 2022. Paris: World Inequality Lab, 2022. Disponível em: https://wir2022.wid.world/www-site/uploads/2022/03/0098-21_WIL_RIM_RAPPORT_A4.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
Piketty, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014 [2013].
Recomendações da Sociedade Civil sobre Tributação Internacional para os Ministros das Finanças do G20. Disponível em: g20-recomendacoes-sobre-tributacao-internacional.pdf (inesc.org.br)
Smith, Karen. International Relations from the Global South: Worlds of Difference. London: Routledge, 2020.
[1] Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Membra do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: marinabolfarinecaixeta@gmail.com
[2] Professor Associado IV e Vice-Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). Coordena o Grupo de Reflexão G20 no Brasil na mesma universidade. E-mail: rgmenezes@unb.br
[3] De difícil tradução para o português, o multistakeholderism se reflete a uma tendência global e nacional de cooptação da agenda pública por parte das grandes corporações privadas, o que, inclusive, desloca o Estado como responsável principal e imediato pela oferta de bens e serviços públicos e garantidor dos direitos humanos. Ver: The South Center e Transnational Institute: https://www.tni.org/en/event/multistakeholderism-and-the-un-20
[4] https://oecd.org/tax/bate-a-erosao-da-base-tributaria-e-a-transferencia-de-lucros-portuguese-version
[6] https://www.g20.org/pt-br/noticias/sociedade-civil-entrega-recomendacoes-sobre-tributacao-internacional-ao-g20
Fonte imagética: Agência Brasil. Gabriel Zucman economista francês professor e diretor do Observatório Fiscal da UE durante entrevista no G20. 29 fev. 2024. Fotografia de Paulo Pinto/Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2024-02/economista-gabriel-zucman-1709230251>. Acesso em: 28 jun. 2024.