Ana Paula Lima dos Santos[1]
28 de abril de 2025
Na obra Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1981), Erving Goffman traça uma análise de como a sociedade separa os indivíduos e como ocorre esse processo de separação, chamado de “estigma”. Goffman tem o objetivo de estudá-lo dentro das relações sociais, entendendo como os grupos entram em contato uns com os outros. Para isso, trabalha com alguns conceitos como identidade pessoal, identidade social, controle social, normas, desvios, entre outros. Ao decorrer dos parágrafos, o autor apresenta diversos relatos para ilustrar os aspectos dos sujeitos estigmatizados, perpassando por diferentes círculos sociais, como os deficientes físicos, as trabalhadoras do sexo, os ciganos, as pessoas em situação de rua etc.
O livro começa explicando a etimologia do termo “estigma”, que era utilizado para fazer referência ao status moral de determinados indivíduos que tinham sinais feitos no corpo com cortes ou fogo. Essas marcas sinalizavam que a pessoa era criminosa, escrava ou traidora e, por esse motivo, deveria ser evitada, sobretudo em espaços públicos. Posteriormente, na Era Cristã, o termo passou a ser entendido também de outras duas formas: na primeira, os sinais corporais em formato de flores em erupção eram entendidos como graça divina; na segunda, as marcas eram vistas como distúrbio físico.
Goffman afirma que a sociedade estabelece a ideia de sujeitos típicos (normais) e atípicos. Os sujeitos normais seriam aqueles que estigmatizam, enquanto os atípicos seriam os estigmatizados. O conceito de estigma é definido como uma classificação negativa a partir de um atributo ou uma marca que determinados grupos sociais utilizam para reduzir o sujeito portador a “uma pessoa estragada e diminuída” (1981, p. 6). Assim, o indivíduo torna-se inabilitado para uma situação social plena. Esse processo se dá por meio das expectativas normativas, quando os sujeitos típicos instituem uma expectativa rigorosa dos lugares e das formas de se relacionar e, caso o indivíduo não corresponda a essas expectativas, ele passa a ter sua potência reduzida. Dessa forma, o estigma reduz a capacidade de existência do sujeito.
O autor também diferencia a identidade social virtual da identidade social real. A primeira está relacionada à construção que é feita pelo “eu” a respeito do caráter do “outro”. Já a segunda refere-se aos atributos e às categorias que o outro de fato tem.
O processo de estigmatização ocorre devido à incongruência na relação entre os atributos e os estereótipos. Entende-se, então, que o estigma requer uma linguagem de relações. Isto é, não é possível explicar o estigma somente por meio do atributo que desqualifica o indivíduo, mas, sim, através das relações. O estigma varia conforme o momento e contexto, além de variar de acordo com a exposição e evidência das qualidades dos sujeitos.
O estigma oculta uma dupla perspectiva: o estigmatizado pode ser um sujeito desacreditado ou um sujeito desacreditável. No caso do indivíduo desacreditado, todos têm conhecimento do seu atributo desqualificador, sendo de notória evidência. Por outro lado, o desacreditável é portador do atributo, mas ainda não é de conhecimento do grupo, podendo vir a ser a qualquer momento.
Goffman distingue três tipos de estigmas: 1) abominações do corpo, relacionadas às deficiências físicas; 2) culpas de caráter individual, referindo-se a sexualidade, transtornos mentais e psíquicos; e 3) aspectos étnico-raciais, nações e religiões, podendo ser hereditário.
Dado que o estigma reduz a potência do existir, o sujeito estigmatizado não é visto como completamente humano. Assim, o portador do atributo desqualificador é excluído da participação da vida em sociedade por meio da discriminação. Um padrão de julgamento pode ser imputado ao grupo estigmatizado, mas não ser aplicado ao grupo considerado normal, como no caso de um homem exigir um comportamento feminino de uma mulher e não seguir essa mesma conduta. A conservação da imagem do indivíduo estigmatizado é importante para a manutenção simbólica do controle social dentro da sociedade.
Em busca de aceitação, o indivíduo estigmatizado pode tentar corrigir o “defeito”, por meio de cirurgias, plásticas e próteses, por exemplo. Contudo, o sujeito estigmatizado não assume o status de completo normal após a realização de tais procedimentos. Ocorre somente uma transformação do ego: ele passa a ter provas da tentativa de corrigir o defeito. Ou ele pode tentar superar sua condição de forma indireta, dedicando um forte esforço para provar que o atributo não o desqualifica. Esse seria o caso, para o autor, de um deficiente físico que pratica um esporte.
No entanto, essa busca por aceitação é permeada por angústia. Goffman declara que a ausência de um feedback saudável nas interações sociais cotidianas transforma o estigmatizado em uma pessoa desconfiada, hostil, ansiosa, deprimida e confusa. Além disso, o sujeito estigmatizado pode sentir que é o alvo das atenções quando há um contato entre os dois grupos, tendo que se policiar e se controlar a todo momento. A certeza de não aceitação pode resultar em situações de violência, em uma repulsa do estigmatizado ao grupo, ou em uma retração total, isolando-se, podendo oscilar entre os dois extremos.
Assim, o livro se encarrega de analisar o intercâmbio social entre os normais e os estigmatizados quando se encontram em uma mesma situação social. Quando ocorre um “contato misto” entre os dois grupos, ambos perpassam pelas causas e os efeitos do estigma. O sujeito estigmatizado pode perceber sua insegurança ao modo como será identificado e recebido pelos normais. A incerteza reside no fato de não saber o que verdadeiramente os outros estão pensando a seu respeito, estando constantemente em exibição.
O autor pontua que o estigmatizado pode receber apoio de outros dois grupos: os iguais e os informados. Os iguais seriam aqueles que têm o mesmo estigma; já os informados seriam os indivíduos normais que simpatizam com o grupo estigmatizado, considerando-os como pessoas comuns. Este último geralmente atravessa uma experiência de arrependimento pessoal e coloca-se à disposição para ser validado e aceito pelo grupo. Há dois tipos de informado: o que trabalha cuidando dos estigmatizados, como terapeutas e psicólogos; e o que se relaciona com o sujeito portador do estigma em uma estrutura social, tal como a esposa de um paciente mental.
O estigma torna-se mais evidente a partir da visão do grupo normal. Por esse motivo, Goffman afirma que os termos “perceptilidade” ou “evidencialismo” seriam mais precisos do que “visibilidade”. Primeiramente, a visibilidade de um estigma não é o mesmo que a “possibilidade de ser conhecido”. Para que as pessoas reconheçam o estigma de um indivíduo, é necessário conhecer o sujeito estigmatizado previamente, seja por meio de um contato anterior ou através de fofocas. Em segundo lugar, visibilidade é diferente de intrusibilidade. No caso de o estigma ser perceptível, ainda há a questão de entender em que medida ele interfere no fluxo da interação. Por fim, a visibilidade se distingue do chamado “foco de percepção”. A visibilidade está relacionada à capacidade decodificadora do público.
A manipulação do estigma possui relação com as expectativas normativas referentes ao caráter e à conduta, que criam um perfil estereotipado. Popularmente, na medida em que você conhece melhor o outro e aumenta a intimidade da relação, as respostas estereotípicas são substituídas pela compreensão, simpatia e avaliação real das qualidades pessoais. Dessa forma, o fato de conhecer ou não o indivíduo estigmatizado influencia diretamente esse processo. Compreende-se, portanto, que a manipulação do estigma é intrínseca à vida pública.
Dentro desse contexto, cada membro de um grupo carrega consigo o entendimento do outro ser uma pessoa “única”. Tal noção de unicidade possui implícitamente a ideia de “marca positiva”. O conjunto de fatos encontrados em uma pessoa é diferente da combinação dos fatos vistos em todos os outros, sendo esta uma diferenciação positiva de um indivíduo do restante do mundo. Dessa forma, o conceito de “identidade pessoal” utilizado pelo autor carrega essa ideia de marca positiva (ou apoio de identidade) e a combinação única dos fatos relativos à história de vida que se incorporam aos indivíduos.
O estigma e a tentativa de escondê-lo fazem parte da identidade pessoal. A figura apresentada pelo indivíduo cotidianamente diante daqueles com quem estabelece relações diárias é reduzida e estragada pelas demandas virtuais, que são criadas pela sua imagem pública. Quando o indivíduo tenta corrigir os estigmas, ele pode ser considerado por si e pelos outros como alguém que altera sua personalidade. A mudança de percepção se dá devido à nova relação da interação face-a-face, que possui outras contingências de aceitação, sendo necessárias novas estratégias para se adaptar.
A manipulação do estigma é considerada como um processo que acontece quando existem normas de identidades, uma característica geral da sociedade. Indivíduos que possuem estigmas diferentes experimentam uma situação semelhante e respondem de forma também semelhante. Além disso, os sujeitos estigmatizados e os sujeitos normais possuem a mesma caracterização mental, sendo esta a caracterização-padrão da sociedade. Mesmo quando o indivíduo possui crenças e sentimentos considerados anormais, ele também terá preocupações que são entendidas como normais e utilizará estratégias normais na tentativa de esconder das outras pessoas suas anormalidades.
Goffman caminha para a conclusão do livro enfatizando que o normal e o estigmatizado não são indivíduos concretos. Trata-se, na verdade, de perspectivas geradas por meio dos contatos mistos em situações sociais. Cada indivíduo pode alternar na ocupação de tais categorias conforme o tempo, contexto e fases da vida. Um indivíduo pode possuir os atributos estigmatizadores em determinado aspecto e apresentar características normais em outro. Sendo assim, todos os sujeitos possuem a capacidade para aprender e para desempenhar os dois papéis do modo como lhe é determinado. Isto ocorre porque os papéis de normais e estigmatizados são complementares, possuindo semelhanças e paralelos. Cada um desses indivíduos pode pensar não possuir total aceitação pelo outro e que o outro está constantemente observando sua conduta. Além disso, eles podem querer ficar somente com os seus “iguais” a fim de não enfrentar o problema de uma relação desconfortável para ambos os lados.
Cada grupo na sociedade possui um conjunto de normas sociais relativas à conduta e às características sociais. Aquele indivíduo que não adere às normas estabelecidas por determinado grupo é chamado de “destoante” e sua peculiaridade é denominada “desvio”. Existem diversos exemplos de destoantes nas comunidades que passam a desempenhar um papel cômico, como o bêbado da cidade, o gordo fraternal, o palhaço do pelotão etc. Ao mesmo tempo que lhe negam o respeito, o indivíduo torna-se o símbolo do grupo, aproximando-se dos demais ao invés de afastar-se. No extremo oposto, há outro tipo de destoante, aquele que se isola do grupo, agindo de tal modo que, ao mesmo tempo que não pertence, continua a presenciar as situações sociais que envolvem o grupo.
Goffman conclui destacando que “os desviantes intragrupais, os desviantes sociais, os membros de minorias e as pessoas de classe baixa” (1981, p. 123) por vezes irão desempenhar o papel de estigmatizados, estando inseguros acerca do que esperar da interação face-a-face. Estigmatizados possuem muita semelhança entre si, o que permite classificá-los em conjunto ao fazer análises. A partir do conhecimento sobre o que as áreas que envolvem o envelhecimento, a saúde mental e as relações étnico-raciais – campos que tradicionalmente fazem parte dos problemas sociais – têm em comum, é possível analisar no que consistem as diferenças.
A melhor forma de evitar o processo de estigmatização é compreendendo e conhecendo os grupos estigmatizados, relacionando as características imputadas a eles com as forças sociais, culturais, políticas e econômicas. Para isso, é necessário entender os mecanismos de coerção e exclusão que esses grupos enfrentam e a forma como a sociedade legitima o processo de estigmatização e a segregação.
No período em que Goffman escreve, entre os anos 50 e 60, há uma evidente mudança nas perspectivas teóricas que deixam de estudar o macro e passam a produzir microanálises. O autor tornou-se uma referência por olhar para as experiências individuais dos sujeitos nas relações cotidianas e tentar entender as particularidades que envolvem a “identidade” dos indivíduos.
As trends virais nas redes sociais escancaram o quanto o estigma continua a moldar nossas relações sociais — só que agora em uma arena pública ainda mais exposta, constante e acelerada. Goffman nos mostra que o estigma opera a partir de um descompasso entre a identidade social real e a identidade social virtual, ou seja, entre quem somos de fato e como somos percebidos. Hoje, esse descompasso é amplificado por algoritmos que recompensam determinados corpos, comportamentos e estilos de vida. Trends como “magras, magras, magras”, “hot girl walk” ou “clean girl aesthetic” impõem uma estética da normalidade que se disfarça de autocuidado, mas que, na prática, exclui e silencia corpos e subjetividades que fogem ao padrão.
Por outro lado, há também um movimento de exposição de vulnerabilidades — como nos vídeos de “in my healing era” ou “things I’m ashamed to admit” — que tenta negociar a aceitação social através da identificação coletiva com aquilo que antes era escondido (Jobe, 2024). Essas performances públicas de “autenticidade” podem tanto desestabilizar quanto reforçar os estigmas, a depender de como são recebidas. Goffman nos ajuda a perceber que essas práticas não são apenas conteúdos virais, mas sim estratégias de manipulação da identidade em uma sociedade que vigia, julga e classifica incessantemente. Retomar sua obra hoje é essencial para compreender como seguimos nos esforçando para sermos vistos como plenamente humanos — e como esse esforço continua profundamente atravessado por normas, expectativas e assimetrias de poder.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências
Goffman, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro, LTC, 1981.
Jobe, Nyima. ‘Things I’m ashamed to admit’: TikTok trend driving new level of oversharing. The Guardian, 8 abr. 2024. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2024/apr/08/things-im-ashamed-to-admit-tiktok-trend-driving-new-level-of-oversharing?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 22 abr. 2025.
[1] Doutoranda em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Mestra e bacharel em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).