Gabriel de Matos Garcia[1]
O objetivo deste texto é apresentar, de forma abreviada, o artigo que apresentei no VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política – indicado como o melhor trabalho do GT de Teoria e Pensamento Político. Neste, busquei principalmente analisar quais concepções de pessoa e sociedade são defendidas, implícita ou explicitamente, pelos autores liberais, e como essas concepções fundamentam a importância que esses autores atribuem às liberdades econômicas.
Em dois artigos escritos ao longo de dez anos, Iliberal libertarians: why libertarianism is not a liberal view publicado em 2001, e Capitalism in the classical and high liberal traditions publicado em 2011, Samuel Freeman discute o que é o liberalismo. Sua visão é a de que liberais são aqueles que defendem certas práticas e instituições como “liberdades e direitos fundamentais iguais; igualdade de oportunidades; mercados livres e competitivos, e propriedade privada; bens públicos e um mínimo social; e a natureza pública do poder político e (desde o século XX) o regime democrático”. (FREEMAN, 2018, p. 2)[2].
Porém, como Freeman destaca, há um grande desacordo entre os liberais quanto à interpretação dessas instituições. E a origem desse desacordo está no entendimento distinto que os liberais possuem em relação ao status normativo adequado das liberdades econômicas. Liberais clássicos[3] sustentam que as liberdades econômicas devem ser consideradas básicas, sendo a elas atribuído o mesmo status que outras liberdades, como a de religião ou associação. Liberais progressistas[4] atribuem à maioria das liberdades econômicas um status subordinado, considerando-as menos importantes que as liberdades pessoais e políticas. Por fim, libertarianos[5] sustentam que as liberdades econômicas são absolutas.
Dada a importância que a interpretação das liberdades econômicas possui para o pensamento liberal, é natural indagar o que leva essas correntes a sustentarem concepções tão díspares dessas liberdades. Uma resposta tradicional a essa questão é associar o status normativo atribuído às liberdades econômicas com a “estrutura filosófica” utilizada por essas correntes. Nesse sentido, liberais clássicos partiriam de uma estrutura consequencialista que determinaria um status fundamental às liberdades econômicas; liberais progressistas utilizariam uma estrutura contratualista que rebaixaria o status dessas liberdades; e libertarianos, partindo de uma estrutura baseada em uma ideia de direitos naturais, considerariam as liberdades econômicas absolutas.
Freeman considera que essa resposta tradicional está equivocada. Para ele, uma das maiores contribuições de Rawls foi explicitar que o status normativo das liberdades econômicas não se fundamenta nas estruturas filosóficas, mas sim em uma “concepção ideal de pessoa e sociedade” (FREEMAN, 2011, p. 54) que todas essas correntes, explícita ou implicitamente, sustentam. Neste sentido, o meu objetivo principal no artigo original escrito para o VII Fórum Brasileiro de Pós-graduação em Ciência Política foi aprofundar quais são esses ideais de pessoa e sociedade sustentados por essas diferentes correntes do liberalismo e de que modo esses ideais se relacionam às liberdades econômicas.
A concepção ideal de pessoa e sociedade do liberalismo clássico
A visão ideal de pessoa do liberalismo clássico é a da pessoa como maximizadora de sua utilidade, ou seja, que age racionalmente para alcançar a maior satisfação possível de suas preferências individuais. Nessa perspectiva, a pessoa é entendida como racionalmente autointeressada. É importante ressaltar que isso não significa que a pessoa seja necessariamente egoísta. O egoísta só leva em conta a sua própria felicidade, enquanto uma pessoa autointeressada pode incorporar a felicidade de outras pessoas em suas preferências. Ainda assim, essa concepção ideal de pessoa é limitada, pois a normatividade da formação de preferências está restrita apenas a limites formais mínimos.
Liberais clássicos consideram que a sociedade é fundamental para resolver problemas de coordenação entre os indivíduos. Suas normas e instituições evoluíram ao longo do tempo para permitir uma melhor coordenação entre os interesses individuais, principalmente de modo a permitir a satisfação de um maior conjunto de preferências por parte dos indivíduos.
Essas concepções ideais de pessoa e sociedade, sustentadas pelos liberais clássicos, levam-nos a atribuir às liberdades econômicas um status fundamental – o mesmo de outras liberdades, como a religiosa e de associação. Deste modo, as liberdades econômicas só podem ser restringidas quando a manutenção de outras liberdades se faz necessária. As liberdades econômicas permitem que os indivíduos ajam racionalmente para satisfazer uma ampla gama de preferências individuais, como o que e de quem comprar, como dividir o tempo entre trabalho e lazer, como investir, etc. Além disso, uma sociedade que garanta uma importância fundamental para as liberdades econômicas possui uma organização econômica mais eficiente e, consequentemente, mais próspera, o que permite um maior bem-estar geral para todos os indivíduos que a compõem.
Neste sentido, os liberais clássicos entendem as pessoas como racionalmente autointeressadas que visam à satisfação de suas preferências individuais e a sociedade como um conjunto de normas e instituições que devem coordenar as ações desses indivíduos para promover o bem-estar geral.
A concepção ideal de pessoa e sociedade do liberalismo progressista
A concepção ideal de pessoa do liberalismo progressista se baseia na ideia de que as pessoas são moralmente livres e iguais. Para Rawls, ser uma pessoa moralmente livre e igual envolve o desenvolvimento do que ele denomina os “dois poderes morais”, a saber, os poderes da racionalidade e da razoabilidade. O primeiro envolve “a capacidade de ser ‘racional’, de ter uma concepção racional do bem – o poder de formar, revisar e buscar racionalmente uma concepção coerente de valores, baseados em uma visão do que dá sentido à vida e às suas buscas” (FREEMAN, 2007, p. 54). O segundo, por sua vez, envolve “a capacidade de ser ‘razoável’, a qual é uma capacidade moral para a justiça – o poder de compreender, aplicar e cooperar com outros em termos de cooperação que sejam justos” (Ibid.).
Como destacado por Platz, o poder moral da razoabilidade tem três implicações principais. Em primeiro lugar, “pessoas razoáveis não permitem que preferências desarrazoadas motivem seu comportamento” (PLATZ, 2020, p. 162), ou seja, suas preferências não podem, por exemplo, se basear em desejos sádicos ou de humilhação perante outras pessoas. Em segundo lugar, “pessoas razoáveis não permitem que opções de escolha injustas figurem em sua classificação de opções de escolha” (Ibid.). Ainda que um indivíduo possa melhorar a sua situação por meio de uma violação dos direitos de outro, esse tipo de escolha não figura entre as suas preferências. Por fim, “pessoas razoáveis não proporiam termos de cooperação injustos a outros, mas estariam dispostas a oferecer e cumprir termos de cooperação justos, desde que outros estivessem dispostos a fazer o mesmo” (Ibid.).
Esta última implicação se conecta com a concepção ideal de sociedade defendida pelos liberais progressistas. Estes, ao contrário dos liberais clássicos com seu ideal de sociedade como coordenação, têm um ideal de sociedade como cooperação, ou seja, os indivíduos devem cooperar submetidos a princípios de justiça (que possam aceitar como pessoas livres e iguais) que dividam de forma justa os benefícios e obrigações decorrentes da cooperação social.
Essas concepções ideais de pessoa e sociedade orientam a formulação dos dois princípios de justiça. Rawls sustenta que apenas as liberdades direta ou indiretamente envolvidas no desenvolvimento e exercício das duas capacidades morais mencionadas acima podem ser consideradas fundamentais e, consequentemente, protegidas pelo primeiro princípio de justiça. A partir desse critério, apenas duas liberdades econômicas são consideradas fundamentais: a liberdade de ocupação e o direito de propriedade pessoal. Ainda que esses direitos não estejam diretamente relacionados ao desenvolvimento e exercício das duas faculdades morais, seu objetivo é “proporcionar uma base material suficiente para a independência da pessoa e um sentimento de auto-respeito [sic], ambos essenciais para o desenvolvimento e exercício adequados das faculdades morais” (RAWLS, 2003, p. 160).
Rawls considera que as demais liberdades econômicas não podem ser incluídas entre as liberdades fundamentais. Isso porque, em primeiro lugar, elas não são necessárias para o desenvolvimento e exercício adequados das duas capacidades morais. Além disso, Rawls considera que o direito fundamental a amplas liberdades econômicas não pode ser incluído entre os termos razoáveis de cooperação entre pessoas consideradas livres e iguais que se relacionam em torno da ideia de reciprocidade, pois essa inclusão poderia impedir que muitos indivíduos tivessem os recursos materiais adequados para o desenvolvimento de suas duas capacidades morais fundamentais. As demais liberdades econômicas estão submetidas às exigências do segundo princípio de justiça e da exigência do valor equitativo das liberdades políticas estabelecida no primeiro princípio.
Neste sentido, liberais progressistas entendem as pessoas como moralmente livres e iguais, o que envolve o desenvolvimento de suas capacidades morais fundamentais, e a sociedade como um sistema de cooperação social baseada em uma ideia de reciprocidade.
A concepção ideal de pessoa e sociedade do libertarianismo
A concepção ideal de pessoa desenvolvida por Nozick em sua obra Anarquia, estado e utopia é a união de duas interpretações feitas por ele a respeito do significado do segundo imperativo categórico de Kant, de um lado, e sobre a ideia das pessoas como proprietárias de si mesmas desenvolvida por Locke, de outro. Nozick inicia sua obra sustentando que “os indivíduos têm direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer contra eles (sem violar seus direitos)” (NOZICK, 2016, p. ix). A ideia de direitos pode ser compreendida de muitas formas, mas Nozick considera que a maneira correta de entendê-la é considerar os direitos “como restrições indiretas às ações a serem praticadas” (Ibid., p. 35), uma vez que essa interpretação reflete de forma mais fiel, em sua visão, o segundo imperativo categórico de Kant, que sustenta a inviolabilidade das pessoas. Além disso, Nozick sustenta que a inviolabilidade das pessoas fundamenta uma restrição libertariana específica: a não agressão.
Quais características dos indivíduos os tornam invioláveis e fundamentam restrições sobre as formas pelas quais podem ser tratados? Não é possível reconstruir todo o argumento realizado no artigo original sobre esse ponto, mas Nozick apresenta uma série de características das pessoas que não são suficientes para fundamentar a extensão e o conteúdo das restrições laterais defendidas por ele. Argumentei no artigo original que Nozick se baseia em uma ideia complementar que supre essas deficiências: a ideia da propriedade de si mesmo (self-ownership).
Nozick define o direito de propriedade, de forma simplificada, como o “direito de determinar o que será feito com X” (Ibid., p. 220). Essa definição não se aplica apenas a recursos externos, mas também aos próprios indivíduos consigo mesmos. Ele sustenta que todas as capacidades, escolhas e potencialidades que os indivíduos possuem são tipos da propriedade que possuem sobre si mesmos. Como essas características são fundamentais para o desenvolvimento de uma concepção geral de longo prazo (e, consequentemente, de uma vida significativa) e esta, por sua vez, fundamenta a interpretação dos direitos individuais como restrições laterais à ação, o direito de propriedade sobre si mesmo deve ser protegido de acordo com a restrição libertariana de não agressão. Esse status normativo também se estende a recursos externos, uma vez que estes são necessários para que os indivíduos sejam capazes de desenvolver suas concepções gerais de longo prazo.
Dada essa concepção de pessoa, o ideal de sociedade de Nozick se baseia em grande parte na ideia de consentimento. Como possuímos um conhecimento limitado a respeito dos fins humanos, assim como dos meios necessários para atingi-los, Nozick considera que a sua sociedade possuiria uma estrutura com algumas funções, mas teria um amplo espaço para a experimentação. Sob a estrutura, os indivíduos poderiam formar diversas comunidades que, de certa forma, competiriam entre si para agradar o maior número possível de indivíduos, e estes teriam a condição de participarem do tipo de comunidade que considerarem mais adequado, desde que o façam de maneira voluntária. O objetivo da estrutura é apenas o de garantir que essas diversas comunidades coexistam de maneira pacífica, e que os direitos de propriedade dos indivíduos (pessoal e de recursos externos) não sejam violados.
A partir dessas considerações é possível compreender o significado absoluto atribuído por Nozick às liberdades econômicas. As liberdades econômicas são valorizadas pelo entendimento do autor de que as pessoas possuem um direito de propriedade sobre si mesmas. Essas liberdades adquirem um significado absoluto porque Nozick considera que as pessoas (proprietárias de si mesmas) são invioláveis, e uma moralidade que respeita essas características deve estabelecer restrições laterais às formas pelas quais elas podem ser tratadas. Dessa forma, a ideia de propriedade de si mesmo oferece o conteúdo (quais liberdades devem ser consideradas mais importantes) e a ideia de restrições laterais define um significado absoluto a elas.
O ideal de sociedade baseado no consentimento é especialmente importante para atribuir um status absoluto à liberdade de contratos. Como os indivíduos são livres para ingressar nas comunidades que consideram mais adequadas aos seus fins, eles devem ter a liberdade de alienar, por meio de contratos, as partes constituintes dos direitos de propriedade sobre si mesmos necessárias para esse objetivo.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas
FREEMAN, Samuel. “Capitalism in the Classical and High Liberal Traditions”. Social Philosophy and Policy, v. 28, n. 2, p. 19-55, 2011.
_____. “Iliberal Libertarians: Why Libertarianism is Not a Liberal View”. Philosophy and Public Affairs, v. 30, n. 2, p. 105-151, 2001.
_____. Liberalism and Distributive Justice. Oxford: Oxford University Press, 2018.
_____. Rawls. Londres: Routledge, 2007.
NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
PLATZ, Jeppe von. Theories of Distributive Justice: Who gets what and why. Londres: Routledge, 2020.
RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail para contato: gabriel.ggarcia87@gmail.com.
[2] Todas as citações de obras em inglês foram traduzidas pelo autor.
[3] Representados por autores como Adam Smith, F.A. Hayek, Milton Friedman, David Gauthier, Richard Epstein, entre outros.
[4] O liberalismo progressista nesse contexto envolve John Rawls e os autores que compartilham seu pensamento, como Brian Barry, Thomas Scanlon e o próprio Samuel Freeman.
[5] Representados na sua forma mais ortodoxa na obra de Robert Nozick.
Fonte Imagética: Composição a partir de imagens da Scottish National Gallery (Adam Smith) e da Harvard University News Office (John Rawls e Robert Nozick). Disponíveis em: <https://www.nationalgalleries.org/art-and-artists/3787/adam-smith-1723-1790-political-economist>; <https://www.britannica.com/biography/John-Rawls/images-videos>; <https://www.britannica.com/biography/Robert-Nozick/images-videos>.