Celly Cook Inatomi[1]
Este texto foi originalmente publicado no dia 09 de agosto de 2023, no Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), ligado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Agradecemos à autora e à editora do OPEU por gentilmente autorizar a publicação pelo Boletim Lua Nova.
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No dia 20 de julho, a Comissão do Judiciário no Senado aprovou o projeto de lei que visa a estabelecer um Código de Ética a ser seguido pelos juízes da Suprema Corte, o Supreme Court Ethics, Recusal, and Transparency Act, de autoria do senador democrata Sheldon Whitehouse (D-RI). Em uma votação marcadamente dividida, com 11 votos democratas contra 10 republicanos, a aprovação do projeto constitui, sem dúvida, uma sinalização importante para estabelecer um mínimo de accountability da Corte. Contudo, a forte obstrução por parte de republicanos no chão do Senado e da Câmara dos Representantes tornará sua derrota quase que uma certeza. Para alguns congressistas, inclusive, a proposta já nasce morta.
Segundo os republicanos, estabelecer um código de ética para os juízes da Suprema Corte é apenas uma tentativa de democratas para impedir a atuação de uma instituição que hoje é conservadora e que, por isso, desagrada suas preferências políticas e ideológicas. Tanto é assim, argumentam os republicanos, que o projeto ganhou forças, sobretudo, depois das recentes decisões da Suprema Corte sobre o aborto e as ações afirmativas. Além disso, fazem eco às palavras de John Roberts, juiz presidente da Suprema Corte, ao afirmarem que o projeto é inconstitucional, uma obstrução do poder da Corte, cuja autonomia de se autogovernar é dada pela própria Constituição dos Estados Unidos, e não pelo Congresso, não podendo este, portanto, controlar a mais alta corte do país.
Ao contrário do que alegam os republicanos, no entanto, projetos visando a um controle ético dos juízes da Suprema Corte ganharam repercussão em outras circunstâncias. Eles despontaram depois que investigações encabeçadas pelo ProPublica e pelo jornal The Washington Post revelaram casos estarrecedores de corrupção envolvendo juízes conservadores e grandes magnatas doadores do Partido Republicano. O envolvimento de Clarence Thomas e de sua esposa Virginia Ginni Thomas com os bilionários Harlan Crow e Leonard Leo é o mais emblemático, seguido do caso de Samuel Alito com o bilionário Paul Singer.
Outras investigações revelaram, ainda, que outros magistrados, como a juíza Sonia Sotomayor, também já estamparam as páginas dos noticiários por conta de suspeição de sua atuação, não sendo um problema exclusivo de juízes indicados por presidentes republicanos. Especialistas em ética governamental, inclusive, utilizam essa variedade de exemplos para contrapor a crítica dos republicanos às propostas de um código de conduta para os juízes da Suprema Corte, argumentando que ele seria benéfico para todos de modo geral. O projeto possibilitaria recuperar a confiança pública na instituição, não sendo apenas uma perseguição contra juízes conservadores, ou uma tentativa de silenciá-los.
A principal diferença do momento atual, no entanto, e que recai principalmente sobre os conservadores, reside nos valores exorbitantes por eles investidos no que vamos chamar aqui de “campanha judicial”. Ela é parte da política conservadora de direitos, que visa a revolucionar a interpretação da Constituição e das leis, com base no diapasão conservador e libertário. Cifras milionárias, sem histórico de comparação, têm sido injetadas em vários momentos dessa campanha judicial: em processos de indicação e de confirmação de juízes, em mobilizações de organizações atuantes nos amicus curiae diante da Corte e na construção de redes de socialização e de estreitamento de laços pessoais dos juízes com a elite conservadora. É justamente nesses diversos condutos de circulação de dinheiro que reside a corrupção judicial.
O projeto aprovado na Comissão do Senado toca em alguns pontos importantes de todo esse processo, mas mantém um silêncio com relação a outros, tão ou mais importantes, e que são frequentemente utilizados como justificativas pelos juízes, conservadores e liberais, para se encastelarem em seu poder. Não é de surpreender, portanto, que encontremos defesas retumbantes de Clarence Thomas não apenas por parte de seus pares conservadores, como também por parte de seus pares liberais na Corte, em um grande uníssono. Vejamos um pouco mais detidamente algumas das limitações existentes para a efetivação do projeto de lei, caso ele venha a ser, surpreendentemente, aprovado.
Campanhas judiciais e dark money
Leonard Leo, um dos líderes centrais da organização conservadora The Federalist Society e conhecido como “o encantador de juízes” de Donald Trump, disse em 2021 que as confirmações judiciais hoje em dia são como verdadeiras campanhas políticas. Tanto isso é uma verdade que, somente com os processos de nomeação de Brett Kavanaugh, Neil Gorsuch e Amy Coney Barrett, os três indicados de Trump para a Suprema Corte, atingiu-se doações em torno de US$ 3 milhões, US$ 10 milhões e US$ 30 milhões, respectivamente.
Fonte: Juízes da Suprema Corte americana com laços com a Federalist Society (em sentido horário, do alto à esq.): Samuel Alito, Clarence Thomas, Brett Kavanaugh, John Roberts, Neil Gorsuch, e Amy Coney Barrett (Crédito: The Harvard Gazette)
Nas palavras de Lisa Graves, do Center for Media and Democracy e especialista em questões de ética governamental, a exorbitância das doações de conservadores e de libertários para campanhas judiciais, ao contrário de representar um sinal positivo de engajamento cívico, tem-se mostrado apenas como o mais puro exercício do poder bruto. Isso porque se estabelece, no final de todo o processo, uma verdadeira troca entre aqueles que possuem mais recursos financeiros e os juízes por eles financiados, que passam a interpretar direitos e liberdades que deveriam ser de todos de acordo com os interesses e valores de apenas alguns poucos indivíduos.
Como já comentado anteriormente, as campanhas judiciais vão muito além dos processos de indicação, confirmação e nomeação de juízes para a Suprema Corte. Elas também abrangem mobilizações de indivíduos e organizações sociais diversas em petições de amicus curiae e a construção de redes de socialização e de estreitamento de laços de lealdade entre os juízes e setores conservadores. Inclusive, foram problemas relacionados a essas duas últimas atividades que estamparam as recentes acusações de corrupção judicial envolvendo o juiz conservador Clarence Thomas.
De acordo com as investigações realizadas, Thomas fora acusado de receber com frequência, e de nem sempre declarar, presentes luxuosos do magnata doador do Partido Republicano Harlan Crow. Além de viagens e artefatos de valor histórico, como o exemplar de uma Bíblia que havia pertencido a Frederick Douglas e avaliada em US$ 19 mil, Crow também teria sido responsável pelo pagamento de mensalidades escolares durante alguns anos de um sobrinho-neto de Thomas, podendo atingir o valor de US$ 150 mil em quatro anos. Crow, ainda, teria investido dinheiro em projetos de interesse do juiz e de sua esposa, cultivando aí uma relação de lealdade ainda mais forte. Ginni Thomas teria recebido pagamentos não apenas de Crow, mas também de Leonard Leo, por meio de organizações sem fins lucrativos que ajudou a fundar, como a Liberty Central. Segundo o Washington Post, somente Crow chegou a doar US$ 500 mil para a organização em 2009, e Ginni Thomas chegou a receber US$ 120 mil de salário em 2010.
Ao tentar se defender, Thomas disse que Crow não tinha casos judiciais de seu interesse diante da Corte e que, portanto, não se poderia configurar um quadro de corrupção judicial, mas apenas de “hospitalidade de amigos pessoais”. Contudo, as investigações realizadas mostraram que isso não é bem verdade. Pior: não só havia casos judiciais de interesse de Crow, como diversas decisões tomadas pela maioria conservadora impactaram enormemente as campanhas judiciais e os direitos de cidadania no país. Como mostrou o Washington Post, ao longo dos anos de relacionamento entre os bilionários Harlan Crow e Leonard Leo com Clarence Thomas e Ginni Thomas, a Suprema Corte julgou casos que beneficiaram os dois magnatas, além de tantos outros que investiram pesadamente em organizações conservadoras participantes de amicus curiae na Corte, como é o caso dos irmãos Koch.
Embora outras decisões da Suprema Corte possam ser aqui resgatadas, a decisão mais emblemática é, sem sombra de dúvida, a histórica e importante Citizens United v. FEC, de 2010, em que a maioria conservadora da Suprema Corte, com o apoio de Clarence Thomas, proibiu o Congresso de regular as doações de campanha, inclusive as voltadas para a Suprema Corte. Ao derrubar provisões-chave designadas a limitar a influência corrosiva e deformadora de grandes bilionários na democracia estadunidense, como a Bipartisan Campaign Reform Act, a Corte possibilitou, por exemplo, que grandes magnatas fizessem doações de valores ilimitados para campanhas judiciais específicas, mas por meio de organizações sem fins lucrativos, ou outros tipos de organizações, sem que estas tivessem a obrigatoriedade de divulgar seus nomes como doadores.
Em outras palavras, a Suprema Corte permitiu a livre circulação de dark money nas doações de campanha. Trata-se, basicamente, do dinheiro, cujo doador o cidadão comum não fica sabendo quem é, mas que é beneficiado pela decisão judicial tomada por juízes que têm relações pessoais com ele. Com isso, grandes magnatas da elite conservadora tiveram o caminho livre para influenciar não apenas o que acontece no Congresso, mas também o que acontece na Suprema Corte. Harlan Crow poderia continuar dando presentes luxuosos para Clarence Thomas e, ao mesmo tempo, manter suas doações milionárias para organizações peticionantes na Suprema Corte sem que seu nome fosse revelado e divulgado.
Essa decisão de 2010 ganha ainda mais relevância quando vemos que muitos milionários conservadores, inclusive Leonard Leo, passaram a doar fluxos cada vez maiores de dark money para a formação de uma flotilla of amici, usando aqui as palavras do senador Sheldon Whitehouse. O que seria isso? Com o objetivo central de reverter decisões históricas progressistas da Suprema Corte, bilionários conservadores puderam agora investir na formação de uma verdadeira “frota” de organizações peticionantes de amicus curiae em casos de seu interesse, mas sem ter seus nomes devidamente revelados e divulgados por essas organizações. Isso, ao mesmo tempo em que mantêm relações de amizade, de proximidade e financeiras com juízes conservadores da Corte.
O resultado mais imediato desse movimento tem-se mostrado no aumento exponencial de amicus curiae, todos com um grande volume de recursos financeiros obscuros por trás. Um estudo encabeçado pelo National Law Journal mostrou que, no período entre 2019 e 2020, houve mais de 900 amicus curiae impetrados por caso, a média mais alta até então já vista. E também mostrou que os juízes citaram esses amicus em 65% dos casos julgados – outro recorde – para falar sobre uma variedade de temas, como políticas governamentais, história, religião, medicina, psicologia e mesmo sobre implicações financeiras das decisões da Corte.
Outros estudos forneceram um retrato específico de como os grupos ligados a Leonard Leo e aos irmãos Koch foram por eles financiados para impetrar amicus curiae na Suprema Corte com o objetivo de reverter leis e decisões judiciais que desagradavam grandes magnatas conservadores. Entre 2015 e 2019, foram encontrados um total de US$ 116 milhões em doações de organizações e grupos ligados a esses magnatas. Dos casos judiciais analisados desse período, alguns já finalizados e com decisões favoráveis a eles, a mais emblemática é Shelby County v. Holder, de 2012. Cerca de US$ 12,5 milhões em dark money foram fornecidos aos grupos de amicus curiae para esse caso, conseguindo da maioria conservadora da Suprema Corte o esvaziamento do Voting Rights Acts de 1965. Para os recentes casos sobre o aborto e ações afirmativas, esses valores devem ter ultrapassado todos os recordes já registrados.
Medidas do projeto de lei e limitações institucionais
Pensando justamente em coibir a circulação de dark money nas campanhas judiciais, o projeto de lei aprovado na Comissão do Judiciário no Senado formula duas medidas centrais.
Primeiramente, determina que a Suprema Corte deve estabelecer regras claras de divulgação dos nomes de doadores e dos participantes em petições de amicus curiae, bem como de suas relações com os juízes da Suprema Corte. Para isso, ela deve requisitar às partes envolvidas nos casos e às organizações de amicus curiae que listem descrições pormenorizadas de presentes e quaisquer pagamentos concedidos por elas aos juízes, cônjuges e pessoas próximas pelo período de até dois anos antes do início da ação judicial. Além disso, também deve requisitar às partes e às organizações informações acerca de doações, ou lobbyings, em apoio à indicação, confirmação e nomeação de um juiz em exercício na Suprema Corte, listando, ainda os nomes de pessoas que contribuíram nas petições com valores para além de US$ 100 mil.
Em segundo lugar, o projeto de lei procura estabelecer regras para os processos de desqualificação dos juízes para o julgamento de casos em que eles tenham relações de proximidade com as partes envolvidas. Um juiz deve se desqualificar para um julgamento quando sabe que uma das partes ou afiliados fizeram qualquer tipo de lobbying ou financiamento para sua indicação, confirmação e nomeação, ou quando ele, seu cônjuge, filhos ou pessoas próximas receberam quaisquer presentes ou valores num período de até seis anos antes da data em que o juiz fora designado para o caso judicial em questão. Estabelece, ainda, que se deve verificar os interesses financeiros do juiz e seus próximos que poderiam afetar o processo judicial. E, mais uma vez, observada a desqualificação do juiz, deve-se notificar imediatamente todas as partes envolvidas, e divulgar as informações publicamente.
Essas medidas, no entanto, embora importantes, esbarram em alguns obstáculos sobre os quais o projeto de lei silencia e para os quais dificilmente será feita uma reforma na Suprema Corte para que eles sejam eliminados. E tais obstáculos se relacionam, sobretudo, aos processos de recusa, ou de desqualificação dos juízes da Suprema Corte para julgamentos em que possam ser considerados imparciais. A Comissão sobre a Suprema Corte de Biden, no início de seu governo, chegou a discutir, sem sucesso, inúmeras propostas de reforma voltadas para esse problema, mas a histeria política e ideológica em torno da Comissão transformou-a publicamente apenas em uma tentativa de empacotamento da Corte.
Em um estudo detalhado dos processos de recusa na Suprema Corte, Robert J. Hume argumenta sobre a necessidade de conhecermos melhor os procedimentos que envolvem a desqualificação de juízes, tanto para se ter noção do seu grau de comprometimento com os princípios de uma justiça imparcial, quanto para se elaborar projetos de reforma mais adequados.
O projeto de lei recentemente aprovado certamente acabaria com o que o Hume chama de “conspiração do silêncio”, que é uma prática bastante deletéria utilizadas pelos juízes da Suprema Corte para não justificar sua permanência em casos em que são considerados imparciais. O projeto de lei não dá conta, no entanto, de uma limitação institucional básica, deixando de responder questões práticas essenciais para o processo de recusa: quem substituirá o juiz que se recusar a avaliar um caso, dado que sua saída poderá ocasionar um empate na votação da Corte? Será um juiz vindo das cortes federais de apelação? Como ele será escolhido? Pelos próprios juízes da Suprema Corte, ou por uma junta de presidentes de cortes de apelação?
Essas são questões bastante importantes, porque são elas que os juízes utilizam quando decidem justificar suas práticas de não recusa. A doutrina do “dever de decidir” é mobilizada por eles como sendo um ato de compromisso público de não fazer o jurisdicionado esperar demais pela Justiça. E um exemplo bastante claro disso foi dado pelo já falecido juiz conservador da Suprema Corte Antonin Scalia, em 2004, em uma ocasião em que ele foi requisitado a recusar um caso envolvendo o então vice-presidente Dick Cheney, com quem tinha estabelecido relação de amizade. Scalia se recusou a recusar o caso, argumentando que só seria razoável exigir sua desqualificação, caso ele fosse juiz de uma corte menor, dado que haveria outros juízes para substituí-lo. Já na Suprema Corte, isso não seria possível, pois restariam apenas oito juízes e grandes chances de o caso ficar sem uma resolução.
Diante disso, poderíamos dizer que se trata de uma limitação eminentemente institucional, pois não existem mecanismos de substituição dos juízes da Suprema Corte em casos de recusa. Os achados de Robert Hume nos mostram, porém, que existe um cálculo estratégico dos juízes da Suprema Corte em suas práticas de recusa, que são por eles mobilizadas para fazer avançar seus próprios objetivos políticos.
Segundo o autor, os juízes não se autodesqualificam tanto quanto deveriam, aumentando ainda mais as pressões para que eles sejam obrigados, como qualquer outro juiz, a obedecerem a um código de ética. E se a limitação é de caráter institucional, a forte oposição dos conservadores, inclusive dos próprios juízes, a possíveis reformas na Suprema Corte, denuncia o real intento da doutrina do “dever de decidir”.
Naturalização do elitismo judicial
Em 2004, quando o juiz Antonin Scalia não se recusou a analisar o caso, relacionado ao então vice-presidente Dick Cheney, ele argumentou que seria totalmente incapacitante exigir que os juízes se abstivessem de casos envolvendo ações de amigos dentro do governo federal. Isso porque os juízes tendem a ser indivíduos “bem relacionados”, com muitos amigos em altos cargos políticos. Segundo ele, muitos juízes só chegaram à Suprema Corte precisamente porque eram amigos do presidente em exercício, ou de outros políticos de importância semelhante. Achar que os juízes favoreceriam amigos de forma tão vil e escancarada é uma suspeita muito grave e humilhante.
Em 2011, quando Clarence Thomas já estampava as manchetes dos jornais por conta de suas relações obscuras com o magnata Harlan Crow, John Roberts usou um espaço de seu relatório anual sobre o Judiciário Federal para defender o colega conservador e refutar as cobranças públicas para que um código de ética fosse aplicado obrigatoriamente sobre os juízes da Suprema Corte. Segundo ele, os juízes já cumprem o Código de Ética dos juízes federais, mas isso é feito de forma voluntária, e não imposta pelo Congresso.
Fonte: Linha do tempo do dark Money de Harlan Crow (Crédito: Citizensforethics.org)
Em 2023, depois de novos escândalos envolvendo o juiz c, outro documento, e dessa vez assinado pelos nove ministros da Suprema Corte, vem em defesa do juiz e reitera os mesmos pontos de Roberts. Alega-se que os juízes já seguem requisitos de divulgação financeira e de limitações de presentes estabelecidos pelo Código de Ética dos juízes federais.
O que é comum a esses três momentos acima? O caráter altamente elitista dos argumentos sobre a atuação dos juízes da Suprema Corte.
Em primeiro lugar, dizem que os cidadãos devem ficar tranquilos e confiar nas palavras dos juízes quando eles dizem que já seguem, de livre e espontânea vontade, o Código de Ética dos juízes federais, não precisando, portanto, de nenhum mecanismo que os obriguem a fazer isso. Em segundo lugar, dizem que os cidadãos também devem ficar tranquilos e confiar na imparcialidade dos juízes perante casos que envolvam amigos, pois eles são profissionais que sabem separar o público do privado e jamais seriam tão vis ou baixos a ponto de favorecê-los de forma tão descarada. E, em terceiro lugar, dizem que não existe qualquer problema na rede de relacionamentos entre juízes da Suprema Corte e a elite política e econômica dos Estados Unidos, afinal, um juiz da mais alta Corte do país é naturalmente “bem relacionado”.
A questão central que emerge de todo esse elitismo é o constante esforço de mantê-lo dentro dos parâmetros da naturalidade. Como mostrou Robert Hume, as práticas de não recusa dos juízes da Suprema Corte foram encaradas durante muito tempo com bastante naturalidade pela sociedade e pela imprensa. Mas ela foi sendo quebrada e criticada conforme as campanhas judiciais foram se tornando verdadeiras campanhas políticas e os juízes foram utilizando suas prerrogativas para destruir direitos já conquistados.
Antes dos anos 1970, relata o autor, dificilmente havia comentários na mídia se opondo ou criticando o fato de um juiz não se recusar a julgar um caso porque nele estavam envolvidos amigos ou questões de seu interesse. Por vezes, o que acontecia era justamente o oposto: os juízes eram criticados por se absterem de julgar em função dos problemas administrativos que eles acabavam acarretando. Em um importante caso de antitruste, por exemplo, a Corte não alcançou quórum para julgamento, porque quatro juízes se recusaram a analisar. Os juízes foram duramente criticados na imprensa pelo atraso desnecessário causado.
O tom começou a mudar dos anos 1970 em diante, quando se deu a tentativa sem sucesso de colocar o juiz Clement Haynsworth na Suprema Corte. Quando era juiz de corte federal de apelação, ele não se recusou a analisar diversos casos, nos quais ele tinha interesses financeiros envolvidos. Aqui, já apareceram críticas à sua atuação, tendo por base a ideia de confiança pública no Judiciário. Outro caso desse período envolveu o juiz Rehnquist. Ele foi criticado por não ter recusado três casos em que ele tinha se envolvido quando era procurador-geral no governo Nixon. Todos os três casos foram decididos de forma apertada, por 5 votos a 4, com Rehnquist dando o voto de decisão. Aqui, os comentários na mídia já passaram a questionar não somente o julgamento, como a própria integridade do juiz.
Contudo, mesmo com o aprofundamento da crise do caso Watergate, no qual o tema da ética governamental estava crescendo na preocupação nacional, os comentários na imprensa sobre as recusas judiciais permaneceram esporádicas e mais frequentemente em tom de crítica. O tema se tornou mais comum durante os processos de sabatina dos juízes, como quando Rehnquist foi nomeado presidente da Suprema Corte em 1986. Breyer e Alito chegaram a receber algumas críticas por não terem recusado casos em que tinham interesses financeiros quando ainda estavam sentados em cortes federais menores. Até mesmo John Roberts chegou a enfrentar questões no período de sua sabatina por conta de seus encontros com George W. Bush enquanto estava decidindo Hamdan v. Rumsfeld (2006), que tratava do uso de comissões militares pelo governo de W. Bush em Guantánamo.
Segundo Hume, o turning point definitivo do olhar da imprensa para as recusas judiciais veio com o caso já comentado envolvendo Antonin Scalia e o vice-presidente Dick Cheney. A partir desse caso, o crescimento da preocupação com o tema foi exponencial, especialmente após a Suprema Corte considerar a constitucionalidade da Affordable Care Act (mais conhecido como Obamacare) em 2011.
A última década assistiu a uma transformação na cobertura midiática das recusas judiciais. Se antes os comentários eram relativamente rasos e se opunham às recusas, hoje, a atenção é maior e politizada, com comentários tanto apoiando quanto criticando as recusas. Nesse sentido, a naturalização do elitismo judicial vem sendo cada vez mais contestada e criticada.
O que explica, portanto, as dificuldades ou a quase impossibilidade de se realizarem reformas na Suprema Corte ou a adoção de um Código de Ética a ser seguido por seus juízes?
O encastelamento dos juízes da Suprema Corte como projeto
Umas das lições mais importantes legadas pelo trabalho do cientista político Charles Epp sobre “revolução dos direitos” é que ela não acontece sem uma estrutura de apoio. A mudança na interpretação, na definição e no escopo dos direitos não se dá da noite para o dia, mas depende de uma série de ações cotidianas, capilarizadas e coordenadas, de baixo para cima e vice-versa, para que os significados desejados sejam socialmente reconhecidos e institucionalmente garantidos. E, se olharmos para a política de direitos que setores ultraconservadores e libertários tentam (com sucesso) implementar nos Estados Unidos, pelos menos desde meados dos anos 1950, é justamente a estrutura de apoio que mais nos chama a atenção.
Sobretudo nos últimos dez anos, diversos estudiosos passaram a analisar a construção e as formas de mobilização do direito do movimento conservador estadunidense, especialmente após a era dos direitos civis. Por meio desses estudos, ficamos conhecendo as variadas redes de apoio que os conservadores construíram em torno de seus ideais de direitos e de Estado, ou de Estado de direito. Além, obviamente, do apoio político e financeiro a campanhas eleitorais de candidatos afeitos aos seus projetos, eles também se inseriram de forma capilarizada e coordenada na vida diária das pessoas comuns, por meio de reuniões escolares, conselhos de bairro, cultos religiosos, programas de rádio e de TV de audiências massivas, bem como cursos universitários e a criação de novas universidades e de think tanks, de forma a investir na sedimentação de uma mentalidade bastante específica, que valoriza ao mesmo tempo o Estado mínimo e valores religiosos conservadores já existentes nos grupos sociais com os quais dialogam.
Os resultados mais ilustrativos dessa “revolução dos direitos conservadora” se mostram na anulação de uma série de leis federais e na reversão de precedentes judiciais que são estruturais para a democracia estadunidense. Leis que limitam o financiamento de campanhas eleitorais, que regulam minimamente o mercado e que protegem o trabalhador, bem como leis e decisões judiciais de extrema relevância para a garantia e a proteção de direitos civis e políticos básicos no país, vêm sendo anuladas pela maioria conservadora da Suprema Corte. Cúmplice ou responsável central pelo desmonte dos direitos de cidadania no país, a Suprema Corte é peça-chave na estrutura de apoio do movimento conservador e deve ser, portanto, isolada de qualquer controle ético.
Não é de surpreender que, mesmo com o aumento da atenção pública sobre questões de ética judicial, os juízes, sobretudo, os conservadores, têm sido bem-sucedidos ao continuar a alimentar o argumento da naturalidade do elitismo judicial, que se alia a uma política conservadora de direitos já bastante arraigada na sociedade estadunidense. A circulação de grandes fluxos de dark money, aliada a justificativas popularmente e historicamente construídas sobre a integridade e missão dos juízes conservadores em sua “revolução” dos direitos, constituem ingredientes poderosos para mantê-los encastelados em seu poder.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Celly Cook Inatomi é colunista do Opeu e pesquisadora colaboradora da Unicamp. Especialista em relações entre política, direito e judiciário, é autora de “As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana” (Editora Unicamp, 2020). Contato: celoca05@yahoo.com.br.
Fonte Imagética: (Arquivo) Protestos em frente à Suprema Corte, em Washington, D.C., contra reversão de Roe v Wade, em 24 jun. 2022 (Crédito: Ted Eytan/Flickr)