Natalia Fingermann[1] e Roberto Georg Uebel[2]
13 de junho de 2025
Esta publicação faz parte de uma série especial de análises sobre a 17ª Cúpula dos BRICS, que ocorrerá no Brasil sob a presidência rotativa do país em 2025. Fruto de uma nova parceria entre o Boletim Lua Nova e pesquisadores do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, esta série visa aprofundar o debate sobre os principais temas, prioridades e desafios que marcarão este importante encontro multilateral.
O bloco dos BRICs foi oficialmente formado em 2009, com uma liderança relevante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que promovia, à época, uma política externa ativa e autônoma com o objetivo de fortalecer o protagonismo brasileiro entre os países emergentes. Nesse primeiro ano, o bloco divulgou sua primeira Declaração Conjunta em uma reunião em Ekaterinburgo, na Rússia, que tratava principalmente de duas questões centrais ao Sul Global: a reformulação do sistema financeiro mundial pós-2008 e a reestruturação das instituições internacionais. Naquele momento, o bloco ainda não contava com a participação da África do Sul, país que seria admitido somente em 14 de abril de 2011.
Atualmente, o BRICS tem uma maior representatividade econômica.Com a admissão de novos membros entre os anos de 2023 e 2024- Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia – o grupo atingiu 46% da população mundial, com um PIB em poder de paridade de compra de 40,2% em 2024, superando significativamente o grupo dos países do G-7 (28,8%) (SOUTO, 2025). Entretanto, esse aumento no poder econômico do bloco não tem alterado a sua capacidade de concertação política em um cenário de evidente desestruturação da Ordem Internacional de Bretton Woods, abrindo uma janela de oportunidade para um maior protagonismo do grupo no sistema internacional.
Em abril deste ano, já sob a presidência brasileira, a reunião de chanceleres dos BRICS não apresentou uma Declaração Conjunta oficial, demonstrando a dificuldade de se alcançar um consenso político entre os 11 países-membros. Para os meios de comunicação, o resultado dessa reunião ministerial mostra a vulnerabilidade da posição brasileira no interior do bloco, que não tem conseguido articular posições comuns sobre temas sensíveis da agenda, tal como Ucrânia e Gaza, seja quando esteve com o comando do G-20 em 2024, seja na liderança dos BRICS em 2025. Além disso, outra crítica feita diretamente ao chanceler Mauro Vieira foi a ausência, na declaração da presidência, de qualquer referência à criação de uma moeda própria para o comércio intra-bloco, tal como já havia sido ventilado pelos representantes da diplomacia nacional.
Contudo, é importante destacar que essa responsabilização imposta exclusivamente ao Itamaraty e/ou ao presidente Lula desconsidera, pelo menos, três fatores externos à atuação direta do Brasil: I. as divergências históricas intra-membros; II. a participação direta e/ou indireta dos membros em conflitos regionais atuais; e III. o limitado nível de institucionalidade do BRICS.
As divergências históricas intra-membros
A composição inicial do BRIC já enfrentava o desafio de equilibrar interesses entre dois rivais históricos, China e Índia. Contudo, vale ressaltar que, à época de sua formação, o governo Lula II detinha uma ampla capacidade de articulação do Sul Global, com uma aliança estratégica já estabelecida previamente com a Índia e África do Sul, por meio da consolidação do Fórum IBSA (2003).
Além disso, a China, sob Hu Jintao (2003-2013), e a Índia, sob Manmohan Singh (2004-2014), adotavam um estilo de política externa diferente daquele estabelecido pelos seus respectivos sucessores, Xi Jinping e Narendra Modi. Em ambos os países se notava a vontade de se criar uma relação mais harmoniosa e cooperativa com os parceiros do Sul Global, adotando uma postura mais cautelosa entre os vizinhos asiáticos. No ano de 2005, por exemplo, a China e a Índia assinaram a Strategic and Cooperative Partnership for Peace and Prosperity, e, logo no ano seguinte, ambos os países decidiram reabrir a passagem de Nathula, que estava fechada por 44 anos, para facilitar o comércio regional. Depois, houve ainda avanços na solução de questões na Caxemira e um acordo assinado durante a Cúpula dos BRICS, em 2011, que sinalizava não somente uma aproximação comercial, mas também o estreitamento das relações entre outras áreas, como cooperação em defesa.
Entretanto, a “lua de mel” entre esses dois rivais históricos começou a se deteriorar com a mudança de governo, chegando a uma situação dramática em 2020 com o enfrentamento das tropas chinesas e indianas na fronteira de Sikkim e Tibete . Esse cenário já se delineava desde 2014, quando Xi Jinping optou por militarizar o Oceano Índico, incluindo o maior rival indiano, o Paquistão, na Rota da Seda. Com isso, Modi, recém-empossado, decidiu alterar sua estratégia diplomática com o vizinho, reativando o grupo dos Quad, envolvendo os Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália, desde 2017, com o propósito de reequilibrar o poder militar regional. Hoje, as relações comerciais entre a China e Índia se mantêm estáveis e representativas, porém diplomaticamente abaladas, principalmente pelo claro financiamento militar chinês ao Paquistão, tal como foi visto na disputa fronteiriça de 2025.
Outra rivalidade histórica entre os membros é a do Irã com os Emirados Árabes Unidos, uma vez que os EAU assinaram o Acordo de Abraão, mediado pelos Estados Unidos para normalizar as relações com Israel, além de participar da parceria estratégica I2U2, envolvendo Estados Unidos, Índia e Israel. Já as relações conflituosas entre Arabia Saudita e Irã, que haviam sido cortadas após Riad executar um clérigo xiita em 2016, foram restabelecidas, ainda que de maneira tímida, graças a um acordo mediado pela China, em 2023, quando os dois países se comprometeram a retomar as relações diplomáticas com a reabertura de suas embaixadas.
Por fim, destaca-se a disputa mais recente entre o Egito e a Etiópia em relação à Grande Barragem da Renascença Etíope no Rio Nilo, que tem gerado tensões entre os dois membros dos BRICS, com queixas formalmente apresentadas pelo Egito no Conselho de Segurança das Nações Unidas, nos anos de 2021 e 2024, sobre recorrentes violações do direito internacional por parte do governo etíope.
Portanto, nota-se que a expansão dos BRICS não promove necessariamente um aumento na capacidade de coesão política entre o grupo, uma vez que há disputas históricas tanto entre os membros originários, como entre os novos membros. Essas divergências tornam-se ainda mais acirradas no contexto internacional atual, em que o envolvimento direto e/ou indireto dos países membros nos conflitos regionais é uma constante.
A participação direta e/ou indireta dos membros em conflitos regionais atuais
Dos membros fundadores do bloco, apenas Brasil e África do Sul não apresentam conflitos geopolíticos de ordem territorial-fronteiriça e regional, tampouco internacional. Este fato, sob uma perspectiva de poder estrutural, também limita uma coesão entre seus membros, haja vista que existem conflitos regionais entre os próprios membros, como o caso de China e Índia, além de animosidades pretéritas entre a própria Rússia e China, aparentemente superadas pelas boas relações entre Putin e Xi Jinping.
Cabe observar que, no caso do entorno estratégico do Brasil, China e Rússia estão diretamente relacionadas com a questão da Venezuela e, mais recentemente, com o caso da Guiana Essequiba. O envolvimento de Pequim e Moscou coloca Brasília e, particularmente, o próprio Itamaraty, em uma situação complexa, seja como mediador, seja como observador ou partícipe das instabilidades geopolíticas na parte setentrional da América do Sul.
No caso sul-africano, apesar das instabilidades regionais, o país tem evitado um esforço de participação, senão como mediador- aos mesmos moldes do Brasil, no caso sul-americano- mas em menor proporção. Em episódios de querelas territoriais recentes na região, como em Moçambique e no Oceano Índico, Pretória tem buscado exercer um papel simbólico, com pouca capacidade de influência efetiva , priorizando a mediação da União Africana, como o Brasil, que também tentou desempenhar um papel de mediador regional no Mercosul e na CELAC.
As implicações da guerra na Ucrânia e as tensões territoriais na Caxemira, Xinjiang, Taiwan e no Tibete colocam Rússia, Índia e China em uma posição contrária, para não dizer refratária, em comparação aos demais membros do BRICS original. Se somados os novos membros, pelo menos cada um deles apresenta um conflito regional no qual está diretamente envolvido, senão todos, quando observada a guerra em Gaza e as instabilidades em todo o Oriente Médio e Norte da África. Até mesmo a Indonésia, que deverá ser a terceira maior economia do mundo até 2050, tem enfrentado cenários de tensionamento geopolítico no seu entorno do Sudeste Asiático, inclusive com a própria China.
Nesse contexto, o direcionamento para uma construção de coesão no âmbito dos BRICS, coordenado pela presidência pro tempore do Brasil encontra limitações de ordem geográfico-política (COSTA, 2008) e de posicionamento da própria política externa brasileira neste ambiente de fragmentação do multilateralismo, o que dificulta o grau de institucionalidade do próprio BRICS.
O limitado nível de institucionalidade do BRICS
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o Acordo de Reserva Contingente (CRA), propostos pelos membros originários na 6ª Cúpula dos BRICS, em 2014, são considerados a primeira tentativa de se criar mecanismos institucionais mais consolidados entre os países membros (FOKINA, 2023). Entretanto, nota-se que os avanços no sentido de estabelecer uma institucionalidade rígida e formal no bloco ainda são precários Pois, o grupo não possui estatuto próprio, não funciona com um secretariado fixo e não dispõe de recursos para financiar suas atividades.
Apesar dessa limitação institucional, que faz o grupo ser apresentado como uma entidade semelhante ao G-7, Papa e Han (2025) indicam a ocorrência de um processo gradual de institucionalização do bloco, que é importante para se buscar contrabalancear com a hegemonia norte-americana no sistema internacional. De acordo com os autores, o BRICS adota um modelo de institucionalidade flexível e seletiva, caracterizado por três dimensões principais: (1) a produção de saídas institucionalizadas, como declarações conjuntas, planos de ação e, em menor grau, instituições formais como o NDB e o CRA; (2) a mobilização de diferentes tipos de atores domésticos, incluindo líderes estatais, ministérios, governos subnacionais e sociedade civil; (3) a formação de subcoalizões internas para facilitar consensos e avançar pautas específicas.
Contudo, os mesmos autores ressaltam desafios significativos na institucionalidade do bloco. Eles decorrem da diversidade de interesses nacionais e da assimetria de poder entre seus membros, especialmente no que diz respeito ao peso político e econômico exercido por China e Rússia em relação aos demais integrantes do grupo. Essas disparidades dificultam a construção de instituições formais mais robustas e permanentes, uma vez que a tomada de decisões consensuais se torna complexa.
Considerações Finais
Diante disso, é possível afirmar que os limites da atuação brasileira dentro do BRICS devem ser analisados a partir de um contexto mais amplo, que supere um olhar restrito às questões endógenas da diplomacia nacional. Em primeiro lugar, vale notar que as divergências históricas entre os membros, como no caso das rivalidades persistentes entre China e Índia ou Irã e Emirados Árabes Unidos, impõem barreiras significativas à construção de consensos duradouros no bloco, comprometendo sua coesão política. Em segundo lugar, a participação direta ou indireta dos países-membros em conflitos regionais intensifica a fragmentação da agenda comum, uma vez que muitos desses atores se encontram em lados opostos nas disputas geopolíticas sensíveis, tal como Gaza, Ucrânia e Caxemira. Por fim, o limitado nível de institucionalidade do BRICS compromete ainda mais sua capacidade de resposta coordenada frente aos atuais desafios globais, restringindo o potencial do grupo como ator estratégico dentro do sistema internacional.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências
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[1] Professora Adjunta do Bacharelado em Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing-ESPM.
[2] Professor Assistente do Bacharelado em Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing -ESPM.