Renato Francisquini[1]
“Se a falsidade, como a verdade, tivesse apenas uma face, saberíamos melhor onde estamos, pois tomaríamos então por certo o contrário do que o mentiroso nos dissesse. Mas o reverso da verdade tem mil formas e um campo ilimitado”
Michel de Montaigne
Nos últimos anos, assistimos atônitos à proliferação de um sem número de narrativas cuja relação com os fatos não passa, para dizer o mínimo, de pura especulação. Por certo, não se trata de fenômeno inédito ou exclusivo do contexto atual, marcado pela quebra do monopólio da imprensa tradicional na difusão de notícias e na interpretação da realidade. Mas, parece óbvio que o aparecimento das novas tecnologias de informação, ao permitir que todos os que têm um teclado na mão e uma ideia na cabeça possam divulgar a sua versão dos acontecimentos, contribuiu para uma abundância de verdades sobre os fatos. Longe de mim afirmar que a ampliação do número e da diversidade de pontos de vista seja algo ruim em si.
Há muito que se reclamava a quebra do monopólio dos meios de comunicação de massa e do jornalismo profissional sobre a função de vigiar o poder e dar visibilidade aos conflitos que, de outra sorte, repousariam na obscuridade do mundo privado e suas relações desiguais de poder. A questão que se coloca no presente é justamente a de entender em que medida a atual configuração se equilibra entre a alvissareira pluralidade de olhares e vozes e o uso político dos novos meios com o intuito de espalhar boatos e mentiras deliberadas.
O espantoso alastramento de notícias falsas, pós e autoverdades[2], bem como a sua capacidade de influenciar a formação da opinião pública, tem posto em xeque as percepções primeiras sobre o impacto, supostamente positivo, das mídias e redes sociais sobre a comunicação política. São escassas ainda as conclusões sobre a vulnerabilidade dos indivíduos à manipulação arquitetada para favorecer determinados atores políticos e os interesses que representam. Claro está, porém, que as mídias e redes sociais são hoje uma das fontes de informação mais importantes para a constituição de um sentido sobre a realidade, sobretudo entre os jovens[3].
Em cenários de forte polarização política e de uso crescente das novas tecnologias, encontramos espaço aberto para a propagação de conteúdos que contradizem aquilo que Hannah Arendt denominou “verdades factuais” [4]. Muito embora não seja possível aferir quantitativamente a magnitude da difusão desses conteúdos, parece evidente, pelo trabalho de agências de checagem[5] e por seu impacto sobre resultados eleitorais, que se trata de um fenômeno contemporâneo central e, por isso também, área em que carecemos de pesquisas mais aprofundadas.
Ainda que seja cedo para precisar as consequências da transmissão desse tipo de conteúdo, podemos especular sobre o tipo de ambiente comunicativo que tende a se constituir em um cenário infestado por tentativas de reescrever a história e subverter os fatos, e quais seriam suas possíveis implicações para a democracia que devemos continuamente buscar construir. Notadamente desde a eleição de Donald Trump, esforços semelhantes foram feitos para entender a corrupção da esfera pública causada pelo espraiamento de “fatos alternativos”. Boa parte dessas análises lança luz sobre a capacidade dessa ação em influenciar os eleitores, fomentando agendas e criando enquadramentos que favorecem determinadas forças políticas nos processos eleitorais (veja, por exemplo, o efeito causado pelo famigerado “kit gay”, que, mesmo tendo sido proibido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), continuou sendo usado pela campanha de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições de 2018). Gostaria, contudo, de pensar nas consequências mais profundas da propagação dessas narrativas sobre o regime democrático.
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Os fatos, nos diz Arendt, “são entidades infinitamente mais frágeis que os axiomas, as descobertas e as teorias – ainda que os mais desvairadamente especulativos – produzidas pelo espírito humano”. Esses eventos estão “no campo das ocupações dos homens, em sempiterna mudança, em cujo fluxo não há nada mais permanente do que a permanência, reconhecidamente relativa, da estrutura da mente humana” (Arendt, 2007).
Se reconhecemos a falibilidade da nossa razão, cujo resultado natural é a formação de uma diversidade de doutrinas e crenças, ao mesmo tempo irreconciliáveis e incomensuráveis, a fragilidade das verdades factuais torna-se ainda mais evidente. Não é por mera coincidência que boa parte dos esforços para difundir mentiras deliberadas se vale do pluralismo para fazer coincidir as narrativas dos eventos à sua interpretação, contribuindo para o obscurecimento da linha, já por si mesma tênue, que demarca a diferença entre verdade e opinião.
As verdades dos fatos são os fios que constituem a urdidura da política em um regime democrático. Não é por outra razão que o poder autoritário, quando se lança à falsificação e à corrupção da opinião pública em prol de seus interesses, se dirige diretamente a essas verdades. Sem afastar a possibilidade, sempre a nos espreitar, de haver erros históricos, e por mais problemático que essa afirmação possa parecer, os fatos se prestam muito menos ao desacordo do que as opiniões e interpretações que se fazem sobre eles. Refiro-me aqui a fatos como o de que a Terra é redonda, eventos tais como o golpe de 1964, a ditadura civil-militar que perdurou por mais de 20 anos, o Holocausto ou mesmo a orientação ideológica do nazifascismo, para ficar apenas em exemplos recentes. Diante da profusão contemporânea de falsificações deliberadas, fica a impressão de que somos incapazes de compreender certa inflexibilidade inerente à verdade factual.
Admitindo que as falsificações produzidas refletem questões de inconteste importância política, como a natureza de um regime político ou mesmo o uso contumaz da violência para abafar a oposição, torna-se evidente que está posta em dúvida a realidade comum, que é o chão sobre o qual podemos nos mover no debate público sobre temas do presente e sobre o nosso futuro. Verdades, opiniões e interpretações pertencem aomesmo domínio, que é o campo propriamente afeito à política, âmbito do desacordo perene e da construção de consensos possíveis. No entanto, o fato de pertencerem ao mesmo domínio não pode nos impedir de estabelecer uma distinção entre elas: afirmar que todos os eventos dependem de uma interpretação e que sobre eles pode haver diversas opiniões e que estas não são, em absoluto, autoevidentes, não constitui razão suficiente para descartar que as interpretações e opiniões não podem fazer desaparecer por completo a matéria factual sobre a qual são feitas e à qual se dirigem.
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Embora a verdade dos fatos seja a matéria de que se constituem as opiniões, ao contrário destas, aquela não é discursiva e, por isso, não é completamente transparente. Recusa-se a ser iluminada pelo processo comunicativo em que se originam as opiniões. A opacidade obstinada dos fatos sobrevém de não haver uma razão definitiva para serem o que são, ou por sua contingência intrínseca. A verdade factual não é mais evidente do que a opinião, e talvez por isso muitos dos que sustentam uma opinião encontram relativa facilidade em negar os fatos ou equipará-los à opinião (à sua opinião e à interpretação que lhes favorece). As evidências que conformam a verdade dos fatos são fruto de testemunhos, documentos, obras, monumentos, dos quais sempre se pode duvidar sem que haja uma instância superior à qual recorrer. Isto é, a verdade factual não tem uma origem transcendente.
O oposto da verdade dos fatos não é, portanto, a opinião ou a interpretação, mas a falsidade deliberada, cuja intenção é, via de regra, modificar algo no mundo. O mentiroso se vale da afinidade que existe entre a capacidade tipicamente humana do agir, de transformar a realidade, e a capacidade de mentir, também inerentemente humana: “o simples fato de podermos mudar as circunstâncias sob as quais vivemos se deve ao fato de sermos relativamente livres delas, e dessa liberdade é que se abusa, pervertendo-a através da mendacidade” (Arendt, op. cit.).
As falsas narrativas não possuem uma relação com os fatos, o que permite ao mentiroso concatenar os argumentos da forma que lhe aprouver. Fica claro, portanto, a sua vantagem sobre quem pretende relatar a verdade, pois, por vezes, a mentira deliberada parecerá mais verossímil, mais lógica talvez, do que a sua alternativa. Num contexto de abundância da falsidade, espraiada pelas redes e mídias sociais, a nossa capacidade de refutação vai se tornando paulatinamente mais fraca, uma vez que se esgarça a própria tessitura factual da realidade – o que torna, em muitos aspectos, o relato da verdade um ato político em si.
Quando assistimos aos que ocupam espaços no poder político ultrapassando os limites do Twitter – onde têm plena liberdade para expor as mais absurdas mentiras e já há algum tempo as vêm fazendo proliferar organizadamente – e propondo a substituição dos livros de história e o cerceamento da produção de informações sociais, adentramos um terreno ainda mais perigoso. Afinal, a que interesses servem afirmar que em 1964 houve um “movimento” e não um golpe de Estado? O que justifica esconder que esse golpe inaugurou uma ditadura que torturou e assassinou seus opositores, e que sequer foi capaz, até o presente, de assumir os crimes bárbaros que cometeu? Por que razão é importante sustentar que o nazifascismo pertencia ao espectro ideológico da esquerda? Quem será beneficiado pelo enfraquecimento dos instrumentos de produção de indicadores sociais?
Como nos mostram Steven Levistsky e Daniel Ziblatt (2018), o fenecimento das democracias contemporâneas não depende mais de tanques nas ruas e da eliminação física dos que se opõem ao governo, ainda que essa estratégia não esteja completamente descartada. A recessão democrática que parecemos assistir em países como a Hungria, a Polônia, os EUA e o Brasil, vem à tona por meio das próprias regras formais do jogo democrático, por líderes eleitos em processos que respeitam aparentemente os ritos legais: “o paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo legalmente – para matá-la” (Levitsky e Ziblatt, op. cit.).
Governantes que ascendem ao poder se valendo de discursos populistas nem sempre tomam medidas autoritárias, mas um sinal claro de que podem fazê-lo aparece justamente quando prestamos atenção ao que dizem. A estratégia parece se repetir: Viktor Orbán, Jarosław Kaczyński, Trump ou Bolsonaro atacam a história e a verdade dos fatos de modo a favorecer seus interesses políticos. Para ficar apenas no caso brasileiro, ao determinar a “celebração” do golpe de 1964[6], Bolsonaro pretende reivindicar para si e seu governo o legado de um regime que ele sugere ter salvado a democracia brasileira. Nesse surto de revisionismo histórico, a mentira deliberada é apresentada como um fato incontestável, a exigir que os livros de história, contaminados pelo espantalho do chamado “marxismo cultural”, sejam descartados. Tendo a política uma dimensão simbólica fundamental, simbolicamente tal estratégia tem consequências nefastas para a tolerância mútua sobre a qual se erige um regime democrático.
No longo prazo, esse esforço por substituir a verdade dos fatos por versões falsas, gera uma espécie de cinismo generalizado, que passa a se manifestar em relação a qualquer fato ou evento histórico, por mais estabelecido que este tenha sido. Em outras palavras, “o resultado de uma substituição coerente e total da verdade dos fatos por mentiras não é passarem estas a ser aceitas como verdade, e a verdade ser difamada como mentira, porém um processo de destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo real – incluindo-se entre os meios mentais para esse fim a capacidade de oposição entre verdade e falsidade” (Arendt, op. cit).
Apenas o futuro está aberto às consequências da ação humana. O passado e o presente são a força estabilizadora do domínio da política. Quando são tratados como potencialidades, o passado e o presente são deslocados para o futuro, o que faz com que percamos o ponto de partida a partir do qual poderíamos agir. Há um caminho muito estreito que devemos tentar seguir, entre a naturalização dos fatos (a sua interpretação como um destino manifesto, como na tragédia grega) e o risco de tentar simplesmente negar a sua lógica ou substituí-los por mitos que servem aos nossos interesses políticos mais imediatos.
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A condição para evitar tão indesejáveis desvios passa necessariamente pelo ato político de proteger certas narrativas da subversão deliberada dos que ora ocupam o poder. Isso não pode ser realizado senão pela defesa das instituições e práticas que desenvolvemos historicamente a fim de produzir conhecimento tão fidedigno quanto possível sobre a realidade. Não é por mero acaso que observamos em nosso tempo um ataque tão obstinado à imprensa livre, às universidades e às artes. Elas representam os diques que erguemos contra a substituição pura e simples da história por falsificações decretadas pelos poderes de plantão. Tais instituições fomentam e robustecem o debate público, o que talvez não seja possível no ambiente virtual, em que as pessoas tendem a absorver informações e perspectivas que, no mais das vezes, apenas reforçam os seus próprios pontos de vista.
O dilema é que, embora sejam instituições e práticas que emergem do reconhecimento, por parte da sociedade, da importância de haver entidades capazes de fiscalizar, controlar e orientar o poder que estejam fora do domínio político do Estado, para funcionarem a contento, ela dependem de um governo democrático, que respeite as liberdades de expressão e associação, os direitos à dignidade e à autonomia. Não é certo ainda que o governo Bolsonaro irá ultrapassar o domínio das palavras transmitidas semanalmente por meio de lives e, de fato, sufocar as universidades públicas e as artes e restringir a livre expressão de ideias e a liberdade de imprensa. Mas a sinalização é, decerto, preocupante e deveria acender um alerta para a necessidade de se erguer contra o antiliberalismo ora nascente.
A construção social da realidade é maior do que a soma dos fatos e acontecimentos, pois a sua compreensão e legitimidade dependem fundamentalmente da maneira pela qual tais eventos nos são apresentados. Os responsáveis por contar a verdade dos fatos, o jornalista, o historiador, o romancista, são, por excelência, contadores de histórias: “A transformação da matéria-prima de pura ocorrência, que o historiador, assim como o ficcionista (…), deve efetivar, é bem análoga à transfiguração pelo poeta dos estados ou atividades do coração – do pesar em lamento ou do júbilo em louvor” (Arendt, op. cit.).
A função política do narrador, seja qual for o seu papel específico, consiste em apresentar os fatos e nos convencer de sua veracidade. Quando realizada de forma bem-sucedida, essa tarefa nos permite desenvolver adequadamente a capacidade do julgamento, independentemente da interpretação que venhamos a fazer dos acontecimentos. Para que isso seja possível, é fundamental que o contador de histórias esteja livre das amarras impostas pelo poder político e pelos poderes sociais.
Apenas respeitando e defendendo os mecanismos responsáveis pela constituição de algo a que possamos chamar de comunidade, teremos condições de cerzir o tecido já tão esfarrapado das nossas relações sociais. A proliferação das mentiras deliberadas por meio das novas tecnologias da informação no intuito de promover determinados interesses políticos, para normalizar um regime que cerceia as liberdades e silencia a oposição, faz ruir a própria comunidade em um mar de cinismo e negação. Na ausência de um campo comum, do comum que nos mantém amalgamados, como afirmou Eliane Brum[7], torna-se impraticável qualquer forma de ação, seja para imaginar o futuro, ou mesmo para evitar a tragédia no presente.
[1] Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com Pós-doutorado em Comunicação Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
[2] Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/16/politica/1531751001_113905.html.
[3] Regina Marchi (2012) afirma que parte significativa dos jovens norte-americanos com menos de 30 anos não têm o hábito de ler jornais ou se informar por fontes do jornalismo tradicional (embora não haja dados para o Brasil, é de se esperar que o fenômeno seja ainda mais agudo em um contexto de pouco hábito de leitura em geral)..
[4] Biller, D. 2018. Fake News Risks Plaguing Brazil Elections, Top Fact-Checkers Say. Disponível em: https://www.bloomberg.com/ news / articles / 2018 – 01 – 09 / fake – news – risks – plaguing – brazil – elections – top – fact – checkers – say. Acesso em 27 de março de 2019.
[5] Ver, por exemplo, Agência Lupa (https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/), Aos Fatos (https://aosfatos.org/) e Fato ou Fake (https://g1.globo.com/fato-ou-fake/).
[6] Ou quando elogia as ditaduras de Augusto Pinochet (Chile), Alberto Fujimori (Peru) e Alfredo Stroessner (Paraguai).
[7] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/10/opinion/1554907780_837463.html
Referências bibliográficas:
ARENDT. Hannah. “Verdade e Política”. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. (trad. Renato Aguiar). Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MARCHI, Regina. With Facebook, Blogs and Fake News, Teens Reject “Journalism Objectivity. Journal of Communication Inquiry, 36 (3), 2012, pp. 246-262.
Referência imagética:
https://feed.itsrio.org/fake-news-como-proteger-a-liberdade-de-express%C3%A3o-e-inibir-not%C3%ADcias-falsas-8058aedd9f5c (Acesso em 26 de maio de 2019)