Treicy Giovanella[1]
Quais são as possibilidades de participação política entre membros do Ministério Público Brasileiro? Ainda que a Constituição Federal de 1988 seja um marco histórico para a formatação da instituição como a conhecemos, desde a metade do século XX algumas normas jurídicas já indicavam para a proibição da atividade político-partidária de membros do MP, independentemente de estarem na posição de promotor de justiça ou chefe institucional, como Procurador-Geral de Justiça. Contudo, a “negação da política” como característica marcante dos espaços do direito tem entrado em conflito com as novas dinâmicas de engajamento dos membros do Ministério Público.
Na bibliografia da sociologia política, tem-se discutido o fenômeno da politização dos espaços sociais como uma espécie de sobreposição das lógicas e regras de funcionamento dos espaços políticos tradicionais em outros (LAGROYE, 2017), como o direito. Ao lidarmos com esse fenômeno em sociedades periféricas, como é o caso do Brasil, a política ainda assume uma dimensão mais importante na análise porque aqui ela possui um peso importante nos critérios de hierarquização social. Nesse contexto, o desafio inclui a percepção sobre o que é considerado “interno” ou “externo” ao espaço político (GRILL, SEIDL, 2017). As lutas pela representação legítima do Ministério Público mobilizam seus membros em prol de uma disputa engajada na definição deste espaço social. A noção dominante entre esses agentes de uma “boa vontade desinteressada” (BOURDIEU, 1994 [2008] p. 148) — de apresentação do direito como conhecimento técnico e independente de paixões individuais — parece suavizar qualquer espécie de perspectiva conflitante sobre os usos do direito e tende a refutar a existência empreendimentos morais específicos no universo jurídico. Em poucas linhas, as diferentes perspectivas ancoradas em apreensões também morais sobre o direito coloca em jogo a definição legítima do sentido de ser promotor de justiça.
Em minha tese de doutorado analisei o processo de institucionalização do Ministério Público de Santa Catarina comparando as dinâmicas de afirmação e definição institucional e a morfologia do espaço antes e depois da Constituição Federal de 1988. Os modos de engajamento dos promotores adquirem características distintivas relacionadas ao momento histórico no qual estão inseridas. No contexto da Assembleia Constituinte, a mobilização dos membros estava voltada para a construção de uma carreira que favorecesse um modelo institucional muito específico e que, não menos importante, garantisse condições “seguras” de trabalho, como inamovibilidade, garantia de vencimentos estáveis e estrutura de carreira. Neste sentido, a literatura especializada (ARANTES, 2002) já demonstrou que o lobby dos promotores durante este processo foi essencial para o processo de formalização do Ministério Público Brasileiro.
Em paralelo, durante a transição política, parte do espaço do direito no Brasil se apropriava do movimento de “crítica do direito” ou do “direito alternativo”, que tinha influência em torno das lutas por direitos humanos e da defesa dos presos políticos durante a ditadura militar. Importante notar que a conjuntura de formação de uma perspectiva crítica no direito tem, pelo menos, dois fatores. Por um lado, as mobilizações em torno da Constituinte desde 1986 elucidavam e aproximavam diferentes bandeiras dos movimentos sociais, como o Movimento Sem Terra, movimento dos trabalhadores, movimento pelo direito das mulheres, entre outros. Por outro, a expansão do ensino jurídico no país impunha ligeiras modificações nas origens sociais dos novos bacharéis, o que tensionava os padrões de recrutamento tradicionais (ENGELMANN, 2006). Foi neste contexto que, na década de 1990, se desenvolveu o “movimento do direito alternativo”, no qual juristas de diversas carreiras (magistrados, advogados, professores) convergiam para um diagnóstico de “crítica à tradição jurídica conservadora” e se opunham às perspectivas tradicionais no direito.
Voltando as lentes para o caso do Ministério Público, em 1991 foi criado em São Paulo o “Movimento MP-Democratico” (MPD), em sintonia com um grupo já existente desde a década de 1980 na magistratura, a “Associação dos Juízes para a Democracia” e, também, com os movimentos europeus em prol da “democratização do acesso à justiça”, como o “Magistratura Democrática” na Itália e o “Jueces para la Democrácia” na Espanha (MPD EM AÇÃO, 2020). Destaca-se que, entre os associados deste primeiro grupo, grande parte entrou para a carreira na década de 1980 e se formou na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Este grupo passa a editar um periódico próprio, que inclui textos de opinião, coluna social, entrevistas, além de contribuições para jornais de grande circulação, como Estadão e Folha de São Paulo.
A efervescência do engajamento no espaço do direito foi um dos fatores que levou ao surgimento de, ao menos, mais cinco grupos durante os anos 2000. Em 2016, surgiu o “coletivo Transforma MP”, seguido pelo “Movimento de Combate à Impunidade”[2] em 2017, o “Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público” e a “Associação MP Pró-sociedade”[3] em 2018. Além disso, há um grupo que articula diversas carreiras do direito, a “Associação Brasileira de Juristas pela Democracia”, fundado também em 2018.
O “Coletivo Transforma MP” foi concebido durante o processo de Impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Segundo sua carta de princípios (COLETIVO TRANSFORMA MP, s/d) uma das principais pautas do grupo é a denúncia ao caráter punitivista do Ministério Público Brasileiro. De acordo com o grupo, ao MP caberia a função de “transformação da realidade brasileira” em prol, por exemplo, da reforma agrária e urbana, além da atuação profissional “humanista” e crítica aos modelos “reacionários” e “conservadores” de justiça. Entre os membros do grupo que se dedicam, de alguma forma, à escrita, os locais de publicação são periódicos online próximos à esquerda, como o Jornal GGN, além da coletânea de textos de seus associados lançada em 2022, intitulada “Democracia e Justiça em Pedaços: Coletivo Transforma MP” (ORGANIZAÇÃO COLETIVA E SOLIDÁRIA, 2022).
Ainda entre os grupos militantes progressistas, em 2018 foi criada a “Associação Brasileira de Juristas pela Democracia”, que congrega juristas de várias carreiras, incluindo os promotores de justiça, além de ativistas de outros movimentos sociais. Esta associação também surgiu no contexto do impeachment e tem publicações voltadas para a defesa de Luiz Inácio Lula da Silva nos julgamentos da Lava Jato e de rejeição ao governo de Jair Messias Bolsonaro.
O eixo comum entre os grupos é a perspectiva de que os usos do direito devem estar atinados às diferentes desigualdades que moldam a sociedade brasileira, tais como desigualdade de renda, gênero, dificuldade de acesso à saúde e a moradia, entre outras. Estes grupos compartilham um “diagnóstico” sobre a atuação do MP que a considera um elemento importante na luta pelo acesso à justiça e pela transformação “das injustiças históricas” enfrentadas pelos grupos socialmente e economicamente marginalizados.
Em outra chave, o “Movimento Nacional de Mulheres do MP” tem sua atuação mais voltada para o debate da própria carreira das promotoras. O grupo discute a desigualdade de gênero nas hierarquias do MP, seja nos ramos estaduais ou federais, e propõe mudanças estruturais que permitam aumentar a representatividade feminina na instituição. O modo de definir o MP tenta incluir a perspectiva de gênero no debate formal da classe em prol de “vivências menos opressoras”. A criação do “movimento” também ocorreu em 2018 e, desde então, impulsiona o surgimento de grupos orientados para a discussão de gênero nas estruturas estaduais. Além disso, suas participantes compõem os grupos de trabalho temáticos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Nota-se que entre estas promotoras há um grande investimento na formação superior (muitas possuem curso de mestrado e doutorado) e engajamento em ensino (são docentes em faculdades de direito públicas e privadas e nas respectivas escolas de governo).
Em outro espectro da militância de promotores e procuradores estão os grupos que se intitulam como conservadores e “críticos ao direito crítico”. O mesmo contexto político que motivou o surgimento das associações “à esquerda” tornou possível o aparecimento de engajamentos “à direita”. Tanto a eleição do presidente autodeclarado conservador quanto a notoriedade da força tarefa da Operação Lava Jato e os eventos institucionais de discussão sobre o “combate à corrupção” colaboraram para a legitimação de temas como “corrupção” e “impunidade” enquanto problemas sociais urgentes.
Fundado em 2017 por magistrados e membros do MP, o “Movimento de Combate à Impunidade” (MCI) surgiu com o propósito de debater a temática da segurança pública e do “garantismo penal” presente na atuação de juristas que, de acordo com o grupo, levaria à impunidade. Em 2019, o grupo publicou a “Revista Jurídica Movimento de Combate à Impunidade” (MOVIMENTO DE COMBATE À IMPUNIDADE, 2019) com textos de seus apoiadores sobre temas especialmente ligados à pauta conservadora. Além desta edição da revista, os apoiadores do grupo também publicam em jornais de grande circulação, como O Globo (MONTEIRO, TEIXEIRA, 2017) e Estadão (CARPES, 2017), e em blogs como o “Tribuna Diária” e o “Diário do observador”.
Muito próximo deste grupo — tanto em relação à perspectiva ideológica quanto a seus membros — está a “Associação Nacional Ministério Público pró-sociedade” (MPPS) criada em 2018. Seus apoiadores defendem uma perspectiva conservadora sobre o direito e a sociedade e se apoiam em nomes como Roger Scruton[4] e Olavo de Carvalho[5]. Alguns termos anunciados em sua carta de fundação (MP PRÓ-SOCIEDADE, 2018) como conceitos definidores desta visão são “Bandidolatria”, “Democídio”, “Efetivismo Penal” e “Espiral do silêncio”. Tais expressões buscam justificar uma atuação jurídica pautada em “punições mais severas” e em defesa “das verdadeiras vítimas”. Uma dimensão importante da elaboração desta perspectiva é a defesa da existência de uma “nação cristã” que pressuporia uma atuação jurídica construída em princípios religiosos. Segundo este diagnóstico dos problemas sociais, as mudanças no sistema penal e jurídico brasileiro têm beneficiado sujeitos que “por suas opções individuais escolheram o crime”. Por isso, a principal área de atuação e de “contribuição” do MP deve ser a criminal (MP PRÓ-SOCIEDADE, 2019).
Estas poucas linhas sobre os diferentes empreendimentos morais no espaço institucionalizado do Ministério Público dão conta de indicar, em alguma medida, os impactos da diversificação morfológica em carreiras no direito. O processo de profissionalização da atuação jurídica, como é o caso do MP, tem implicado no estabelecimento de experts forjados na lógica do estabelecimento de uma autoridade moral de “dizer o direito”. Os dados analisados sobre estas formas de engajamento no MP indicam o desenvolvimento do fenômeno da apropriação da política como modo legítimo de tomada de posição a partir do engajamento militante. Ao mesmo tempo, esta dinâmica teria a capacidade de “resolver” as proibições jurídicas das manifestações públicas de opinião dos membros. O processo de diferenciação de papéis e das representações sobre o cargo está ligado a transformações nas regras de entrada na carreira uma vez que há maior variedade de origens e trajetos sociais e profissionais. Esta complexificação do espaço jurídico também estrutura a dinâmica de forças de modo que o aumento de posições diferentes tensiona as distinções e oposições internas. É este cenário que possibilita a emergência de agrupamentos com pautas mais ou menos próprias.
Com exceção do primeiro grupo, em sua maioria, estes juristas militantes pertencem a geração que entrou no MP após a promulgação da CF/88 e ainda não conquistaram os espaços mais altos da hierarquia institucional. Ainda assim, estão engajados e mobilizados a ocuparem posições de destaque na administração, seja como Procurador-Geral de Justiça nos estados, seja nas comissões e outras vagas do CNMP. Estes “novos” usos do direito também estão associados ao contexto de circulação e internacionalização de agentes e saberes de Estado. Os militantes combinam trunfos internacionais (como a passagem por cursos no exterior) para legitimar tomadas de posição específicas com a capacidade de mobilização de “redes de legitimidade” para a promoção de pautas. Estas redes podem ser compostas pelos títulos acadêmicos, vínculo com personalidades jurídicas, escritores ou mesmo pela mobilização do ofício profissional como uma espécie de título simbólico de expertise jurídica guardiã da moral.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
ARANTES, Rogério. Ministério Público e política no Brasil.São Paulo: Sumaré, 2002. 328 p.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da acção. Campinas: Papirus, 1994 [2008].
CARPES, Bruno. O mito do encarceramento em massa. Estadão, 5 de setembro, 2017. Disponível em <https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/o-mito-do-encarceramento-em-massa/> Acesso em 13 de set. 2023.
COLETIVO TRANSFORMA MP. Carta de Princípios. S/d. Disponível em: <https://transformamp.com/quem-somos/carta-de-principios/>. Acesso em 13 set. 2023.
ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do Campo Jurídico: juristas e usos do direito. 01. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006. 214p
LAGROYE, Jacques. Os processos de politização. Política & Sociedade, Florianópolis, vol. 16, nº 37, set. dez., p. 18-35, 2017.
MONTEIRO, Marcelo Rocha. TEIXEIRA, Alexandre Abrahão. Verdades e Mentiras. O Brasil não prede demais; ao contrário, prende de menos. O globo, 1º de maio, 2017. Disponível em <https://oglobo.globo.com/opiniao/verdades-mentiras-21270779>. Acesso em 13 set. 2023.
MOVIMENTO DE COMBATE À IMPUNIDADE (MCI). Revista Jurídica do Combate à impunidade: número 1. Rio de Janeiro: Movimento de Combate à Impunidade, 2019.
MPD EM AÇÃO. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, agosto, 2006. Disponível em: https://mpd.org.br/wp-content/uploads/2015/08/revista-em-acao.pdf. Acesso em: 10 de maio de 2020.
MP PRÓ-SOCIEDADE. Post tenebras lux. 2018. Disponível em <https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/12/db013392cb314ee0366632dd555ee0b8.pdf> Acesso em 13 set. 2023.
______. 2º Congresso do MP Pró-sociedade: Homenagem ao Menino Rhuan Maycon! O Ministério Público, a liberdade de expressão, a patrulha ideológica e as prioridades da sociedade. 31 de outubro a 2 de novembro, Florianópolis, 2019.
ORGANIZAÇÃO COLETIVA E SOLIDÁRIA. Democracia e Justiça em Pedaços: o Coletivo Transforma MP. Curitiba: Appris, 2022, 421p.
GRILL, Igor Gastal. SEIDL, Ernesto. Apresentação do dossiê: A politização do espaço social. Política & Sociedade, Florianópolis, vol. 16, nº 37, set. dez.,p. 7-17, 2017.
SILVEIRA, Treicy Giovanella da. “Guardião da sociedade”: uma sociologia do Ministério Público. 2022. 290 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política, Florianópolis, 2022. Disponível em: https://bu.ufsc.br/teses/PSOP0730-T.pdf. Acesso em: 26 ago. 2022
[1] Doutorado em Sociologia pelo PPGSP – UFSC. Este texto faz parte da discussão apresentada na minha tese de doutorado (SILVEIRA, 2022).
[2] A página pública do grupo não está mais disponível.
[3] As páginas públicas do grupo não estão mais disponíveis.
[4] Filósofo britânico com publicações voltadas para o movimento conservador.
[5] Polemista conservador e autointitulado filósofo.
Fonte Imagética: MJSP recebe Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público para debater protocolo de atuação em casos de violência de gênero (Foto: Isaac Amorim/MJSP). Disponível em <https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/mjsp-recebe-movimento-nacional-de-mulheres-do-ministerio-publico-para-debater-protocolo-de-atuacao-em-casos-de-violencia-de-genero>. Acesso em 13 set 2023.