Nayane Victória Brassaroto de Macedo1
6 de setembro de 20242
A história não é gentil com a gente
nós a recriamos ao viver
memória ida adiante
rumo ao desejo
rumo ao pânico articulação
de gana tendo nada
nem mesmo a promessa de conseguir.
(Quando saía eu passei por você na ponte de Verrazano, Audre Lorde)3
O mês de agosto é celebrado como o Mês da Visibilidade Lésbica por concentrar duas datas significativas para o ativismo: o Dia Nacional do Orgulho Lésbico, em 19 de agosto, e o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, em 29 de agosto. A primeira data marca o Levante Lésbico no Ferro’s Bar, em São Paulo, na década de 1980, enquanto a segunda refere-se à criação do primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (Senale) em 1996, no Rio de Janeiro, destacando o protagonismo das lésbicas negras na sua construção. Com a concentração dessas datas, agosto tornou-se um mês de celebração da resistência lésbica e de realização de diversos eventos no Brasil que buscam trazer visibilidade às pautas deste grupo.
Diante da importância dessas datas e da luta contínua das lésbicas pela legitimação de suas existências, este texto visa endossar essa luta histórica e contribuir para sua visibilidade. As lésbicas, enquanto dissidentes de gênero e sexualidade, enfrentam uma história de violências que negam seu direito humano à integridade. Trata-se de um ensaio breve que promove um diálogo entre o uso criativo das possibilidades noturnas e a luta pelo direito ao dia, destacando ambos como essenciais para a legitimação e segurança de suas existências.
Baseando-se nas teorias de Monique Wittig e Jack Halberstam, este texto argumenta que as sociabilidades lésbicas em bares noturnos demonstram como a noite pode proporcionar oportunidades para o florescimento de identidades não normativas, frequentemente suprimidas pelas imposições do dia. Para desenvolver essa discussão, o texto será dividido em duas partes: a primeira abordará as oportunidades oferecidas pela noite, com ênfase na importância histórica das experiências no Ferro’s Bar, em São Paulo; a segunda discutirá as ações contemporâneas do ativismo lésbico paulista, destacando a luta contínua dessas lésbicas para existir além das sombras e conquistar visibilidade e reconhecimento social.
Controle da transitividade como prática de lesbo-ódio: a experiência das lésbicas nos bares noturnos
A criação de espaços que permitam o florescimento de identidades dissidentes de gênero e sexualidade é essencial para resistir à hegemonia do pensamento heterossexual. Monique Wittig4 observa que esse discurso hegemônico, fundamentado na heterossexualidade, “se entrega a uma interpretação totalizadora da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e de todos os fenômenos subjetivos”. Essa interpretação organiza o simbólico, define o que é real e legítimo, e influencia o valor social atribuído às pessoas, moldando como são percebidas e tratadas. Especialmente durante o dia, as imposições do pensamento hétero orientam a ordem social, afetando diretamente as experiências das pessoas dissidentes.
Em contrapartida, a noite historicamente oferece a possibilidade de aflorar identidades suprimidas, tornando-se um refúgio e um meio de existência para pessoas queer, que encontram nas sociabilidades noturnas uma forma de resistir e recriar suas vidas. Jack Halberstam5, ao analisar a estética sombria na arte queer, argumenta que a posição marginalizada do sujeito queer, associado à sombra, revela um potencial perturbador nos mundos marginais. O fracasso queer tem o poder de expor a arbitrariedade da produção discursiva binária imposta pela economia heterossexual. A noção de fracasso surge da ideologia de progresso capitalista, que associa o positivo aos vencedores e o negativo aos perdedores. Dessa forma, a visibilidade de existências que desafiam a heteronorma e a experiência marginal na sombra contribuem para a construção de um fracasso queer que favorece a reconstrução da ordem social.
Neste contexto, Halberstam argumenta que a questão de gênero associada às lésbicas caminhoneiras6 está no cerne do fracasso queer. A ideia de uma escuridão queer refere-se a uma maneira específica de estar no mundo, como ilustram as fotografias de Brassai apresentadas por Halberstam, que capturam a vida noturna em bares lésbicos parisienses na década de 1930, na França. Essas imagens revelam a presença de butches7e de butch/femme8, demonstrando como a vida noturna possibilita a adoção de estéticas que desafiam a conformidade de gênero.
Os registros fotográficos das sociabilidades lésbicas em bares de Paris são apenas um exemplo da importância da vida noturna para as comunidades gays e lésbicas urbanas. Outra evidência dessa relevância é o trabalho da antropóloga Gayle Rubin, que recapitula etnografias de comunidades gays e lésbicas em contextos urbanos dos Estados Unidos. Rubin destaca que, na era pré-Stonewall, as condições marginais da economia gay e os riscos constantes de intervenções policiais faziam com que tanto donos quanto frequentadores dos bares não pudessem garantir a continuidade desses estabelecimentos.
Na década de 1960, Hooker identificou mais de sessenta bares gays e lésbicos em Los Angeles, que enfrentavam constante perseguição policial e das autoridades de controle do consumo de álcool. Esses bares eram fundamentais para a vida social dissidente da heteronorma, funcionando como espaços de confraternização e interação social. A importância institucional desses bares é evidente, visto que os protestos da comunidade homossexual frequentemente se mobilizavam em resposta às ações policiais.
Essa dinâmica também se manifesta em outras partes do mundo, como foi o caso do Levante no Ferro’s Bar, em São Paulo, no dia 19 de agosto de 1983. Inaugurado em 1961, o Ferro’s tornou-se um ponto de encontro relevante para a comunidade lésbica apenas no final da década de 1970. Naquela época, antes da crise da AIDS, os movimentos sociais pelos direitos LGBTQ+ começavam a se consolidar com a abertura gradual do regime militar. Esse período viu o surgimento de diversos movimentos sociais que encontraram espaço para reivindicar seus direitos na esfera pública. Grupos de gays e lésbicas surgiram de forma orgânica e muitas vezes oculta, aproveitando a vida noturna para se apropriar de espaços como o Ferro’s.
As interações sociais entre as frequentadoras do Ferro’s Bar deram origem ao grupo político Lésbica-Feminista (LF). Segundo Oliveira, o LF funcionou inicialmente como subgrupo do SOMOS, um grupo de afirmação homossexual. Em outubro de 1981, militantes do LF fundaram o Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) para dar continuidade às suas atividades políticas. Durante a década de 1980, o GALF desempenhou um papel significativo na resistência contra a onda de prisões arbitrárias, torturas e extorsões que afetaram mais de 1500 pessoas LGBTQ+, desempregadas e prostitutas nos últimos anos do regime ditatorial brasileiro. Em colaboração com movimentos feministas, homossexuais e coletivos antirracistas, o GALF publicou, em 13 de junho de 1980, uma carta aberta intitulada “Pelo prazer lésbico e contra a violência policial”, considerada até hoje uma das primeiras demandas públicas de lésbicas no Brasil.
Com o objetivo de ter um espaço próprio para abordar suas pautas, o grupo LF lançou o jornal ChanacomChana, que, após se tornar um boletim, teve 12 edições entre 1981 e 1987. O Ferro’s Bar era um ponto de distribuição do boletim, e a proibição de sua venda, junto com a tentativa de expulsão das militantes, culminou no Levante. As militantes do GALF denunciaram discriminação e agressões físicas no Ferro’s, o que levou feministas e militantes gays a se unirem em uma ocupação do bar. Durante o ato, exigiu-se dos proprietários a permissão para a venda do ChanacomChana no estabelecimento.
As agressões denunciadas pelas militantes referem-se às inúmeras batidas policiais que ocorreram durante a ditadura militar (1964-1985), período em que o lesbo-ódio9 foi explicitamente institucionalizado, resultando na repressão e violação constante dos direitos das lésbicas. Um dos marcos dessa repressão ocorreu em 15 de novembro de 1980, com foco em bares frequentados por lésbicas, como o Ferro’s, Último Tango, Canapé e Cachação. Esse episódio, divulgado pela imprensa como “Operação Sapatão” e articulado pelo delegado Richetti, teve como alvo específico as lésbicas, resultando na prisão e extorsão de aproximadamente 200 mulheres. Segundo a Comissão da Verdade, essa operação constituiu um “arrastão de extorsão e corrupção mascarado por uma ideologia homofóbica, que associava a homossexualidade às esquerdas e à subversão”.
No documentário Ferro’s Bar (2023), lançado recentemente e dirigido coletivamente por Nayla Guerra, Aline A. Assis, Rita Quadros e Fernanda Elias, integrantes do Coletivo CineSapatão, são apresentados relatos de lésbicas que sofreram violência policial no Ferro’s. O documentário revela que a batida policial de 15 de novembro foi apenas um entre muitos episódios semelhantes, indicando que tais práticas eram comuns. Cabe destacar que a produção desse documentário surgiu de uma compreensão coletiva da importância de registrar as trajetórias das lésbicas no Ferro’s, contribuindo para a construção e preservação da memória lésbica, frequentemente ameaçada de cair no esquecimento por ser desconsiderada na construção da memória institucionalizada.
As memórias lésbicas são cruciais na busca por uma transformação conceitual do mundo que legitime a existência de pessoas dissidentes da cisheteronormatividade. Considerando a importância dos discursos na estruturação da realidade material, coibir as possibilidades de imaginar e conceber relações fora da lógica dominante configura-se como uma violência orquestrada pela hegemonia do pensamento hétero. Assim, as possibilidades noturnas nos centros urbanos tornam-se ainda mais significativas, pois não apenas oferecem uma forma de expressar a dissidência de gênero e sexualidade, mas também representam uma maneira de preservar e construir memórias lésbicas em um contexto que as nega.
A coragem de abraçar o fracasso queer e as sombras expõe a arbitrariedade da produção discursiva binária que sustenta a economia heterossexual, ao mesmo tempo que abre novas possibilidades de existência. Contudo, o controle da transitividade, que limitava a existência lésbica ao espaço noturno e continua limitando, tendo em vista as estimativas alarmantes de lesbocídio, revelou-se uma forma de violência institucionalizada. Portanto, é essencial que o reconhecimento do potencial do fracasso queer conduza a uma reconfiguração social que desmonte a lógica do fracasso enraizada na racionalidade capitalista. A segunda parte abordará a importância da luta contínua das lésbicas para o reconhecimento de sua existência e a conquista de seus direitos, a partir das ações contemporâneas do ativismo lésbico em São Paulo.
Além das sombras: a luta contínua das lésbicas pelo direito ao dia
Tanto a marginalidade que empurra as lésbicas para a sombra quanto suas tentativas sistemáticas de vir à luz representam usos criativos das potencialidades noturnas. No entanto, essa necessidade de existir além das sombras também revela a urgência de confrontar o lesbo-ódio institucionalizado, que controla a transitividade das lésbicas. A continuidade da luta pelo direito de existir à luz do dia se manifesta nas formas de ativismo contemporâneo, protagonizadas por lésbicas cis e trans, sapatões não-bináries10 e mulheres bissexuais.
Os esforços das diretoras supracitadas na produção e divulgação do documentário Ferro’s Bar (2023) revelam-se cruciais para a construção de registros históricos que respaldam as existências das lésbicas. O esquecimento que ameaça as trajetórias de lésbicas não deve ser entendido como uma consequência inevitável da história. As memórias, enquanto construção coletiva, estão intrinsecamente ligadas às relações de poder que estruturam a sociedade. Nesse sentido, a ameaça de esquecimento reflete um controle da produção discursiva que visa conservar a economia heterossexual, uma vez que a ausência de registros que retratem a existência lésbica serve como um mecanismo para a manutenção da heterossexualidade compulsória. Assim, os esforços das escritoras do ChanacomChana e, mais recentemente, das diretoras do documentário, não apenas preservam essas memórias, mas também contribuem para uma transformação conceitual do mundo que o torne mais aberto para pessoas dissidentes.
Além dos esforços empreendidos pelas diretoras do CineSapatão, destaca-se um ato organizado pelo “SaPatrônica”, projeto audiovisual que visa construir uma cartografia da afetividade sapatão na cidade de São Paulo, em conjunto com o CineSapatão e o “Gaavah”, coletivo judaico-LGBTQ+. As ativistas desses grupos realizaram, no dia 17 de agosto, um ato em frente ao antigo Ferro’s Bar, na Bela Vista, reivindicando a renomeação da rua para “Rosely Roth”, em homenagem à ativista responsável pelo levante lésbico.
Nesta ação, destacou-se a participação de um grupo de lésbicas que carregavam placas azuis confeccionadas com o apoio do Parquinho Gráfico, um espaço coletivo de experimentação gráfica da Casa do Povo. Essas placas simbolizavam uma placa de rua com o nome de Rosely Roth. Durante o evento, foi lido um trecho da protocolização do Projeto de Lei “Rua Rosely Roth”, apresentado pela Mandata Coletiva Quilombo Periférico. A leitura foi realizada por Débora Dias, ativista lésbica e co-vereadora pela Mandata Coletiva. Após o ato, houve a exibição do documentário Ferro’s Bar no Museu Judaico de São Paulo, localizado em frente ao antigo Ferro’s. A exibição foi seguida por uma conversa entre Débora Dias e Nayla Guerra, mediada por Daniela Wainer, do Gaavah.
Rosely Roth, além de ser integrante do GALF e porta-voz do Levante no Ferro’s, era uma lésbica assumida que buscava visibilidade para as existências lésbicas por meio de sua própria. Um episódio marcante de seu ativismo ocorreu em 1985, quando participou do programa de Hebe Camargo, tornando-se a primeira pessoa a falar sobre sexualidade lésbica em rede nacional. Suas ações se destacaram em uma época em que tanto a visibilidade de lésbicas em movimentos sociais quanto a vivência aberta e pública de sua sexualidade eram incomuns, devido à perseguição sistemática. Infelizmente, esse engajamento político teve um alto custo para a saúde mental de Rosely, resultando em um adoecimento psicológico que culminou em seu suicídio em 1990.
Diante disso, o evento ocorrido no dia 17 simbolizou a luta pelo direito ao dia, reafirmando as existências dissidentes de gênero e sexualidade que, historicamente, foram relegadas à noite. Esse ato faz parte do projeto “Rosely Roth: Uma vida se ilumina”, que conta com o apoio de organizações como o Arquivo Lésbico Brasileiro, La Perereka e o Museu da Diversidade Sexual. Além desse evento, é importante ressaltar que ocorreram inúmeras outras atividades realizadas em São Paulo e em outros estados brasileiros. Essas ações são fundamentais para garantir os direitos das lésbicas. O ato exemplificado já representa uma tentativa transformação conceitual do mundo, já que renomear a rua em homenagem à Rosely se trata de um meio de reafirmar, à luz do dia, a existência de uma lésbica que, em sua época, foi relegada à noite.
Atualmente, a noite continua a se configurar como um espaço potente para que as lésbicas resistam e recriem suas vidas a partir das sociabilidades que a vida noturna possibilita. A política do “Fervo também é luta”, que caracteriza o atual momento do ativismo lésbico, evidencia a continuidade da importância da vida noturna, refletida na organização de festas voltadas para um público lésbico nas cidades, indo além da concentração em bares. Isso demonstra a continuidade tanto da potencialidade noturna quanto a importância da luta por uma integridade plena à luz do dia. Apesar dos usos criativos da marginalidade como forma de resistência, ela não se sustenta isoladamente. No entanto, mesmo que a história não tenha sido gentil com pessoas marginalizadas, é necessário recriá-la, mesmo sem a promessa de conseguir, pois existir sob violências institucionalizadas já é, em si, uma impossibilidade.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
1 Graduanda em Ciências Sociais (USP) e pesquisadora do NDD/Cebrap. E-mail: nayanebrassaroto210@usp.br.
2 Este texto foi produzido no âmbito do Projeto Temático FAPESP “Crises da Democracia: Teoria Crítica e Diagnóstico do Tempo Presente” (Processo nº 19/22387-0). É fruto de uma pesquisa em andamento sobre contrapublicidade lésbica e feminista, alinhada à frente de pesquisa de Contrapúblicos Feministas do Subgrupo “Contrapúblicos” do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDD/Cebrap). A autora agradece às pesquisadoras que a acompanham no grupo de pesquisa de Feminismos, especialmente a Fabiola Fanti e Letícia Nunes Furlan, por suas sugestões e comentários. Ademais, a autora também agradece à equipe do Boletim Lua Nova pelas sugestões e comentários atenciosos.
3Citado em: LORDE, Audre. Nossos mortos em nossas costas. Rio de Janeiro: A Bolha Editora, 2021, p. 101.
4 Monique Wittig (1935-2003) foi romancista, teórica social e literária, ativista e poeta. Ela era uma escritora francesa lésbica que teve uma produção muito profícua no campo teórico, político e literário.
5 Jack Halberstam é um homem trans, professor de inglês, de literatura comparada e diretor do Instituto de Investigação em Estudos de Sexualidade, Gênero e da Mulher na Universidade da Columbia. Além disso, é autor de diferentes livros.
6 “Caminhoneira” é uma expressão nativa da comunidade lésbica brasileira e se refere às lésbicas que não performam a feminilidade.
7 Palavra da língua inglesa equivalente à lésbica caminhoneira.
8 Dinâmica de casal entre uma lésbica caminhoneira e uma lésbica que performa certos padrões estéticos de feminilidade.
9 “Sapatões não-bináries” é uma categoria nativa do ativismo lésbico que abrange pessoas lésbicas que não se identificam com as categorias binárias de homem e mulher.
10 Optei pelo termo “lesbo-ódio” porque compreendo, a partir de Gomyde, que o termo “lesbofobia” posiciona a violência direcionada às lésbicas como algo irracional, fruto de um medo. Sendo que, na realidade, trata-se de um ódio mobilizado estrategicamente por meio de inúmeras violências, entre elas, as violências supracitadas neste texto.
Referência imagética: São Paulo (SP), 17/08/2024 – Fotografia de uma intervenção simbólica na placa de rua no ato pela renomeação da rua para “Rosely Roth”, em celebração ao Mês da Visibilidade Lésbica, na Bela Vista. Foto: Nayane Brassaroto, gentilmente concedida pela mesma.