Erika Neder dos Santos1
09 de outubro de 2024
Introdução
A história das pessoas com deficiência é marcada por séculos de marginalização e exclusão social. Por muito tempo, elas foram consideradas incapazes de contribuir para a sociedade e, por isso, foram relegadas a uma posição de inferioridade e dependência. No entanto, pode-se dizer que, nas últimas décadas, movimentos sociais em defesa dos direitos das pessoas com deficiência têm buscado mudar essa realidade. Duas das principais correntes teóricas que influenciaram esse movimento foram os pensamentos de Michel Foucault e Martha Nussbaum.
Foucault defendia que a sociedade produz formas específicas de conhecimento e poder que servem para controlar e disciplinar determinados grupos sociais, como as pessoas com deficiência. Ele argumentava que a exclusão desses indivíduos não se deve apenas a uma questão médica ou biológica, mas é um processo social que envolve relações de poder. Já Nussbaum propõe uma abordagem baseada na capacidade, defendendo que todos os seres humanos possuem capacidades básicas que devem ser garantidas pelo Estado. Para ela, a igualdade de oportunidades e a inclusão social são fundamentais para a realização plena dessas capacidades.
Historicamente, as pessoas com deficiência têm enfrentado preconceitos e estigmas significativos. Este panorama é explicado por três modelos principais que evoluíram ao longo do tempo. Primeiro, o modelo da prescindência, prevalecente no início da Era Cristã, segregava as pessoas com deficiência, justificando práticas como a eugenia com base em crenças religiosas que viam a deficiência como um castigo divino. Esta visão resultava na marginalização ou eliminação dessas pessoas, consideradas inúteis para a sociedade.
Com o Iluminismo e a revolução científica no século XVIII, emergiu o segundo modelo, o médico, que redefiniu a deficiência como uma condição biológica ou patológica a ser corrigida ou tratada. Este modelo, embora integrador ao incluir as pessoas com deficiência na sociedade, impunha a elas a responsabilidade de se adaptar aos padrões sociais. Desconsiderava, assim, os fatores sociais e culturais que também contribuíam para a deficiência.
Entre o modelo médico e o atual modelo social, encontra-se o modelo biopsicossocial, que reconhece a deficiência como uma condição multifacetada influenciada por fatores biológicos, psicológicos e sociais. Este modelo adota uma abordagem holística, considerando não apenas a condição médica, mas também o impacto psicológico e social da deficiência. A intervenção deve, portanto, ser abrangente e integrada, promovendo a reabilitação com base em todos esses aspectos.
O modelo social, formalizado pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2006, considera a deficiência uma questão de direitos humanos e resultado de barreiras sociais impostas pela sociedade, como preconceito, discriminação e falta de acessibilidade. Este modelo defende a remoção dessas barreiras para garantir a inclusão plena das pessoas com deficiência na sociedade. A Convenção concluiu um processo de mudança de paradigma, destacando que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras sociais. Este modelo foi crucial para o desenvolvimento da Lei Brasileira de Inclusão de 2015, que promove os direitos das pessoas com deficiência e busca sua integração plena na sociedade.
A transição do modelo da prescindência para o modelo social representa uma evolução significativa na percepção das deficiências, movendo-se de uma visão segregacionista e patologizante para uma abordagem inclusiva que reconhece os direitos humanos e a necessidade de eliminar barreiras sociais. Isso reflete um avanço crucial na busca por uma sociedade mais justa e igualitária, onde todas as pessoas, independentemente de suas capacidades, possam participar plenamente e com dignidade.
A Convenção de 2006, por fim, instituiu o modelo social de inclusão (Barbosa-Fohrmann, 2016, p. 739). Tal modelo surgiu para designar que as causas da deficiência resultam da interação com as barreiras criadas pela própria sociedade, que não é apta a incluir efetivamente a participação de todas as pessoas, conforme o item “e” do preâmbulo da Convenção.
Dessa forma, esse modelo social da deficiência enfatiza que as barreiras sociais, como a falta de acessibilidade e a discriminação, são as principais causas da exclusão das pessoas com deficiência da sociedade. Essas barreiras podem impedir que as pessoas com deficiência acessem serviços, empregos, educação e outras oportunidades. Além disso, o modelo social destaca que muitas barreiras enfrentadas pelas pessoas com deficiência são criadas pelas atitudes e percepções negativas da sociedade em relação às pessoas com deficiência.
Esse modelo social, positivado pela Convenção sobre direitos das pessoas com deficiência, deu origem à Lei Brasileira de Inclusão nº 13.146/2015, que deve ser considerada um marco legal a respeito dos direitos das pessoas com deficiência.
A deficiência para Foucault
Michel Foucault nasceu em 1926 em Poitiers, França, e lá viveu até sua morte em 1984. Seu trabalho foi influenciado por várias correntes filosóficas e históricas do século XX, incluindo o existencialismo, o marxismo, a fenomenologia e a psicanálise. Começou sua carreira acadêmica estudando filosofia e psicologia, mas sua obra mais famosa é uma série de estudos sobre a história das ideias e das práticas sociais, incluindo Vigiar e Punir (1975) e História da Sexualidade (1976).
Nascido entre duas guerras mundiais, ele viveu em um período de grandes mudanças sociais, que influenciaram seu pensamento sobre poder e subjetividade. Em Os Anormais, Foucault (2002) argumenta que a noção de deficiência é uma construção social usada para marginalizar grupos considerados “diferentes”. Ele critica a ideia de que a medicina e as ciências sociais têm o poder de definir e controlar essas categorias, revelando como essas práticas são parte de um projeto maior de controle social.
Em Vigiar e Punir, Foucault (1975) examina como a sociedade moderna institucionalizou pessoas com deficiência, tratando-as como “anormais” e “inferiores”. Ele descreve como essas pessoas foram historicamente segregadas e submetidas a tratamentos desumanos. Foucault argumenta que o poder é difuso e se manifesta em todas as relações sociais, criando normas que marginalizam pessoas com deficiência. Essa construção social da deficiência serve para disciplinar e controlar esses indivíduos, limitando sua liberdade por meio de práticas como a institucionalização e segregação em escolas específicas para alunos com deficiência.
Essa categoria de “anormalidade” é usada para construir uma espécie de “outro” que é considerado inferior, patológico e perigoso para a sociedade. Ele também questiona a ideia de que a medicina e as ciências sociais têm o poder de definir o que é normal e o que é anormal e, portanto, de controlar a vida das pessoas. Dessa forma, o poder e o controle estatal estão intimamente ligados com essa construção social, de forma que essa construção da dialética da normalidade e da anormalidade é parte de um projeto maior de controle social, no qual certos grupos são rotulados como “anormais” e excluídos da sociedade.
A deficiência para Nussbaum
Já Martha Nussbaum (2020), filósofa contemporânea, argumenta que a deficiência deve ser vista como uma questão social e política, e não apenas médica ou individual. Ela defende a necessidade de políticas públicas inclusivas que garantam às pessoas com deficiência acesso a recursos essenciais para uma vida digna. A autora enfatiza que as pessoas com deficiência enfrentam obstáculos e barreiras em diversas áreas da vida, como acesso à educação, emprego, cuidados de saúde e participação social. Por isso, é necessário garantir que as políticas públicas sejam inclusivas e que as pessoas com deficiência tenham acesso aos recursos necessários para alcançar uma vida digna.
O enfoque das capacidades defendido por Martha Nussbaum (2020) preconiza a necessidade de se reconhecer uma teoria da justiça social que seja hábil a proteger a dignidade humana dos seres humanos. Somente por meio do oferecimento de todas as capacidades para cada pessoa é que será atingido o grau máximo de funcionalidade de cada pessoa, para que se possa, inclusive, falar em “florescimento” humano.
Nussbaum argumenta que as pessoas com deficiência têm direitos iguais e devem ser tratadas com dignidade e respeito. Ela enfatiza a importância de reconhecer a diversidade humana e de criar uma sociedade inclusiva e acessível para todos, independentemente de sua capacidade ou deficiência. Além disso, critica a maneira como as pessoas com deficiência são frequentemente discriminadas e marginalizadas na sociedade. Ela argumenta que isso ocorre devido a uma falta de compreensão e empatia em relação às suas experiências únicas e que isso deve ser abordado por meio de mudanças nas normas e práticas sociais.
A autora, assim, pretende responder uma indagação que se torna o elemento central de sua abordagem: o que uma pessoa seria capaz de ser e de fazer com sua própria vida? Dessa forma, os(as) autores(as) que defendem essa vertente da teoria das capacidades buscam oferecer uma grande variedade de liberdades substantivas e capacidades para as pessoas, para que elas mesmas possam optar por viver uma vida digna na visão delas mesmas (Nussbaum, 2020), ou seja, seu discurso sobre pessoas com deficiência é baseado em uma abordagem de justiça e igualdade, enfatizando a importância de uma sociedade inclusiva e acessível para todos, bem como o desenvolvimento das capacidades individuais para permitir que as pessoas com deficiência atinjam uma vida humana plena e significativa.
Conclusão
Como visto, o tema das pessoas com deficiência é bastante antigo. O papel que as pessoas com deficiência exercem na vida social também tem sido alterado com significativos vetores. Para os(as) autores(as), essas pessoas sempre foram marginalizadas, e cada abordagem tenta responder o objetivo dessa exclusão. Dessa forma, há importantes diferenças entre as abordagens de Nussbaum e Foucault. Enquanto Foucault enfatiza a importância do poder e de suas relações na construção das identidades e das desigualdades sociais, Nussbaum adota uma abordagem mais baseada nos direitos humanos e na capacidade funcional. Enquanto Foucault se concentra nas formas como as instituições e práticas sociais moldam as experiências das pessoas com deficiência, Nussbaum enfatiza a importância da inclusão e da participação plena dessas pessoas na vida social e política.
Entretanto, ambos defendem a ideia de que há práticas de discriminação e preconceito em relação às pessoas com deficiência que são injustas e violam seus direitos básicos. Dessa forma, é necessário promover a conscientização e a educação sobre a diversidade humana e as necessidades das pessoas com deficiência, a fim de construir uma sociedade mais justa e inclusiva para todas.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Luva Nova.
Referências bibliográficas
BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula. Os modelos médico e social de deficiência a partir dos significados de segregação e inclusão nos discursos de Michel Foucault e de Martha Nussbaum. Journal of institutional studies, v. 2, n. 2, 2016.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1975.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. O Cuidado de Si. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1976.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Martins Fontes, 2020.
- Advogada formada pela UERJ, mestre em direito pela UFJF, doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: erika.neder@gmail.com ↩︎
Referência imagética: Agência Brasil. “Presidenta Dilma Rousseff participa da Cerimônia de sanção do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão”. 6 jul. 2015. Fotografia de Wilson Dias/Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2015-07/dilma-sanciona-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-1582360036-3>. Acesso em: 15 jul. 2024.