Isabelle C. Somma de Castro[1]
As cenas de pessoas tentando fugir do Afeganistão após a volta do Taleban à capital do país, Cabul, são difíceis de suportar e de compreender. Como o grupo, que foi tão cruel com seus cidadãos e cidadãs durante os anos em que governou, símbolo máximo do patriarcalismo e da misoginia, conseguiu voltar ao poder depois de duas décadas de ocupação americana? Como eles renasceram após uma guerra que provocou a morte de quase 200 mil pessoas e consumiu US$ 1 trilhão? O que aconteceu com os esforços para o estabelecimento de um Estado seguro, democrático e por que não dizer, livre para que mulheres fossem mulheres?
O Afeganistão é uma formação clássica imperialista: linhas de fronteira foram traçadas em disputas entre russos e britânicos. Dentro desses limites, se encontravam vários grupos étnicos distintos, e que também foram separados de seus próprios iguais pela mesma demarcação. Sem litoral, montanhoso, carente de grandes recursos naturais, com comunidades avessas a uma identidade nacional, muitas vezes sem mesmo uma língua comum, o Afeganistão dispôs de poucas características que ajudassem na construção de um Estado-nação, como demonstrou a guerra civil de 1992 a 1996, vencida pelo Taleban.
Para piorar, a localização do país, uma encruzilhada da Ásia Central, provocou a cobiça de impérios. Britânicos tentaram duas vezes ocupar a região no século XIX e não conseguiram. Foram rechaçados pelos insurgentes locais. Soviéticos passaram grandes apuros e, também, saíram derrotados em 1989, depois de uma década com tropas no país. Agora foi a vez dos americanos que, mesmo depois de terem cantado vitória, estão saindo perplexos com a rapidez da reconquista do grupo fundamentalista.
Esse resultado trágico já era previsto por organizações de direitos humanos, especialmente, de direitos das mulheres. E por um motivo muito simples: as duas décadas da nova ocupação estrangeira do país se resumiram a um acúmulo de equívocos e omissões em série, que culminaram na retirada atabalhoada das tropas americanas e de seus apoiadores, os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), além dos próprios integrantes da administração afegã.
O primeiro erro cometido, central para o esforço de ocupação, foi dar total ênfase ao estabelecimento de um exército. A maior parte dos vultosos investimentos feitos no país foi na compra de equipamentos e treinamento militar. Tal escolha é fácil de atender quando conhecemos o lobby da indústria armamentista americana. A lógica foi fortalecer um Estado que se sustentasse pela força. O trágico é que todo esse armamento se encontra nas mãos dos integrantes do Taleban.
O gasto com equipamentos militares também não resultou em maior proteção para os cidadãos comuns. Enquanto as atenções se voltavam para garantir a segurança em regiões frequentadas pelos estrangeiros, como partes de Cabul, outras ficaram desprotegidas, sem que houvesse qualquer atenção para prevenção ou inteligência. Nos últimos meses, os soldados não receberam nem o soldo. Atentados a bomba, disputas que eram decididas por vias que não passavam pela justiça cresceram. Enquanto isso, os combatentes ganhavam novos recrutas e posições com a ajuda do lucrativo tráfico de ópio, e com a provável ajuda de atores estrangeiros, como o serviço secreto paquistanês e, provavelmente, o russo.
Nesses 20 anos de permanência no país, as tropas americanas se envolveram em atos de violência que provocaram repúdio entre os afegãos. A ocupação também privilegiou grupos e pessoas em detrimento a outros. E isso ocorreu desde o princípio. As negociações para o estabelecimento de um novo regime no país, que tiveram início nos acordos de Bonn, ainda em 2001, deixaram de lado vários atores locais que poderiam se envolver na reconstrução do país, além de atores regionais, como o Irã e o Paquistão.
O ressentimento com a ocupação americana também ajudou a inflar os quadros do Taleban, que pelo menos garantia proteção a seus novos recrutas. Outros, apavorados e sem alternativas, deixavam o país. Milhares de afegãos fugiram dessa situação nas últimas décadas, tentando chegar à Europa para buscar o que não tinham em casa: segurança. A grande maioria se encontra atualmente em condições sub-humanas em campos de refugiados da Turquia, Grécia, Paquistão. A crise humanitária que já era gigante tende a aumentar, considerando que agora muitos dos que estão em fuga são profissionais qualificados que sob o novo regime não terão nenhuma perspectiva de colocação.
Outra opção errônea foi estabelecer um sistema político que favoreceu as elites e os “coronéis” locais. Quando houve impasses na formação do governo nacional, em 2014, o governo americano interveio e dividiu o poder entre dois líderes impopulares, em especial por seu envolvimento em corrupção e favorecimento em contratos: Ashraf Ghani e Abdullah Abdullah. Ghani, antropólogo e economista que trabalhou durante décadas nos EUA e desembarcou no país somente em 2002, é o presidente que fugiu do país no dia da chegada dos talebans a Cabul. Segundo a imprensa internacional, embarcou num helicóptero com malas de dinheiro.
Várias denúncias contra os governos das províncias também demonstram que o problema da corrupção era generalizado. Mas não vamos culpar somente os afegãos. Dos quase US$ 1 trilhão que os EUA investiram no país, somente 2% foram para programas como purificação de água potável e educação, segundo informou Jeffrey Sachs. A maior parte do investimento serviu para cobrir, além dos gastos com equipamentos de segurança, as despesas das tropas americanas. Serviços básicos ficaram por conta de ONGs, que têm promovido uma série de iniciativas para pelo menos amenizar os principais problemas dos afegãos. Não houve, portanto, investimentos suficientes para melhorar a infraestrutura do país, educação básica, inclusão política, diminuição da mortalidade infantil ou materna. Faltaram incentivos para organizar a sociedade civil, promover direitos humanos, iniciativas que gerassem renda sustentável.
Como se não bastassem todos esses erros estratégicos, ainda houve traição: o governo do então presidente Donald Trump assinou um acordo de paz com os talebans que liberou milhares deles da prisão, e não incluiu a administração afegã. A saída das tropas foi marcada para maio de 2021, mas depois foi estendida para agosto. A partir daí, a tomada de Cabul pelos antigos inimigos era previsível e inevitável. E, pior, muitos daqueles que passaram os últimos vinte anos criticando o Taleban, que apoiaram a ocupação e trabalharam para os ocupantes, foram abandonados e viraram alvos preferenciais. Comunidades minoritárias, como hazaras, uzbeques e tadjiques, que são tão muçulmanos como os pashtuns, grupo étnico de onde vem a maior parte dos talebans, sabem que não podem contar com a sorte.
Mas a situação mais sensível é a das mulheres. As afegãs foram alçadas a garotas-propagandas da ocupação, apesar de não terem sido as principais beneficiárias das políticas e investimentos americanos. Algumas delas acreditaram que poderiam desafiar o patriarcalismo local, ignorar mandamentos medievais, e protagonizar o rumo de suas vidas nas grandes cidades. Mas foram traídas pelos ocupantes e, agora, a todas as afegãs somente restaram perspectivas lúgubres pela frente.
Para se informar sobre a situação das mulheres no Afeganistão, dê preferência a vozes femininas do país. A antropóloga Lila Abu-Lughod já tratou do assunto em um livro, “Do Muslim Women Need Saving?”, publicado após a invasão do Afeganistão em 2001. Nele, afirma que temos de ouvir as próprias muçulmanas para entender que existem contextos não muito distantes dos nossos mundos e vidas como pensamos, conectados a instituições estatais, familiares e comunitárias.
A antropóloga americana também chamou a atenção para o fato de que somente a violência de muçulmanos contra muçulmanas é destacada pela imprensa. Quando americanos bombardeiam lares e matam afegãs, israelenses atiram em palestinas e matam palestinas, o tema é naturalizado como sendo dano colateral. Nossa perspectiva tem um lado só. O artigo que deu origem ao livro de Abu-Lughod está traduzido para o português aqui. O texto, que virou um clássico, nunca perde a atualidade, para nosso azar.
Representantes fieis da comunidade estão no grupo Revolutionary Association of the Women in Afeghanisthan (Rawa), que desde 1977 defende os direitos femininos, e a Afghan Mission Women’s Mission. Há ainda muitas outras escrevendo ou dando entrevistas em sites progressistas como o Counter Pounch e Democracy Now. Elas têm muito mais a oferecer sobre a situação feminina no Afeganistão do que os especialistas do chamado Ocidente.
[1] É pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP), do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para o Estudo dos Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira (GTF/Unila). Concluiu pós-doutorado em Ciência Política (USP) e foi Visiting Scholar na Universidade de Columbia. Tem doutorado em História Social (USP) e Mestrado em Letras (USP). Contato: isasomma@hotmail.com
Referência imagética: The Guardian.
* Artigo originalmente publicado no site Marxismo Feminista. Reproduzido com autorização do site e da autora.