Vinicius Saragiotto Magalhães do Valle[1]
No presente artigo pretendo discorrer sobre a relação do PT com o segmento evangélico. Partimos de um breve levantamento sobre o comportamento eleitoral dos evangélicos e as alianças políticas desse grupo ao longo da nova república. Em seguida, partimos para os dados de intenção de voto do segmento nas eleições de 2022. O objetivo é demonstrar como o segmento evangélico se constituiu como a principal força anti-petista do cenário político brasileiro.
A relação dos evangélicos como PT na nova república
Os estudos sobre os evangélicos na política estão presentes há décadas na ciência política e na sociologia brasileiras. No período da nova república, esse grupo é acompanhado desde a constituinte (Pierucci, 1989). No período, Pierucci retrata os evangélicos, até então um grupo pequeno, como sendo compostos por um pequeno número de parlamentares de esquerda e uma fração maior que ele denomina de “nova direita”, que aliaria pautas conservadoras tanto na dimensão econômica quanto na dimensão moral (Pierucci, 1989). Talvez tenha sido a primeira vez que o termo “nova direita” tenha sido cunhado para caracterizar um grupo político no pós-ditadura. Posteriormente, é justamente essa aliança de pautas morais conservadoras com o conservadorismo também na esfera econômica – com o liberalismo econômico radical – que constitui um dos principais pontos da “nova direita” dos tempos atuais, conforme caracterizada por Camila Rocha (2021), e que desembocará no bolsonarismo.
Após a constituinte, na primeira eleição presidencial da nova república, em 1989, segundo Pierucci e Mariano (1992), a militância das lideranças pentecostais foram fundamentais para a eleição de Collor. Os autores trazem, inclusive, o depoimento do pastor José Wellington Bezerra da Costa, uma das figuras evangélicas mais importantes do Brasil, e que já era o principal líder das Assembleias de Deus naquele momento, afirmando que “quem elegeu o Collor foram os evangélicos” (Pierucci: Mariano, 1993).
Seguindo cronologicamente, as eleições de 1994 e de 1998, que tiveram como protagonistas Lula, do PT e FHC, do PSDB, apresentaram padrões semelhantes: ambas trazendo o segmento evangélico manifestando apoio preponderante ao candidato do PSDB. É o que retratam, a partir de estatísticas com o eleitorado, Pierucci e Prandi (1995) para o pleito de 1994 e Campos (2006) para o pleito de 1998.
A eleição presidencial de 2002 contou com um candidato evangélico: Antony Garotinho (PSB), ex-governador do Rio de Janeiro, membro da Igreja Presbiteriana e com boa circulação em diversas denominações evangélicas. Segundo aponta Bohn (2004), utilizando-se de dados do ESEB, Garotinho conquistou uma votação expressiva dos evangélicos, representando mais de 50% dos votos desse segmento.
Com a vitória de Lula (PT) em 2002 e o início dos governos federais sob o comando do PT, diversos parlamentares evangélicos, de distintas denominações, estiveram em partidos da base de sustentação parlamentar do governo. Chama atenção, inclusive, o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, que tendo o PRB como seu braço político (VALLE, 2018), esteve aliada ao lulismo até meses antes da conclusão do processo impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016. Vale constar também que pastores conservadores como Marco Feliciano, Magno Malta e Paulo Freire Costa também compuseram a base de governos petistas – inclusive os dois primeiros chegaram a defender o voto em Dilma Rousseff (PT) em 2010.
A relação entre o PT e os evangélicos ao longo dos governos petistas foi, entretanto, se abalando com o passar do tempo. Especialmente entre 2010 e 2014, essa relação ficou estremecida, a ponto dos principais líderes evangélicos se afastarem do governo e estabelecerem com o PT uma relação de antagonismo central. No cerne dessa polarização estariam as pautas de costumes, que inspiraram políticas petistas como o PNDH3, o PLC122/2006, que buscava regulamentar a criminalização da homofobia, e as diretrizes educacionais em prol do combate à homofobia nas escolas. Essas pautas antagonizaram as posições do PT e de movimentos feministas e LGBTTQIA+ com a dos evangélicos. No limiar da discussão, o pastor Marco Feliciano se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, gerando um efeito de comoção entre os evangélicos e os movimentos citados, e acirrando os embates (VALLE 2019).
A polarização entre evangélicos e PT, no esteio desses acontecimentos, foi se acentuando e se tornando, no discurso evangélico, uma polarização com a esquerda. Nesse sentido, o campo da esquerda foi associado pelos evangélicos a uma posição contrária à família e aos valores cristãos. Como resultado imediato desse processo, o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff apresentou um índice de 93% de votos da bancada evangélica pelo afastamento da ex-presidente. Já na eleição de Bolsonaro, em 2018, segundo dados da pesquisa do Instituto Datafolha na véspera do pleito, 68% do eleitorado evangélico declarou intenção de voto no atual presidente. Tamanha votação, pelas estimativas do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, teria garantido a eleição de Bolsonaro (Diniz Alves, 2018).
Evangélicos e Bolsonaro
O governo Bolsonaro, eleito sob o lema de “Deus, Pátria e Família”, se constituiu tendo entre o segmento evangélico uma das suas principais bases. Na formação de seu ministério, se destaca a nomeação Damares Alves, que esteve à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Damares Alves é o que chamam de “evangélica de berço”, filha de pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular, e com sua trajetória intimamente ligada à atuação religiosa. Sob influência do pai, se tornou também pastora, exercendo essa função primeiramente na própria Igreja Quadrangular, e posteriormente na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. Na política, havia sido assessora parlamentar e era uma das diretoras da ANAJURE – Associação Nacional de Juristas Evangélicos –, uma entidade com o objetivo de aumentar a influência evangélica no poder judiciário brasileiro.
Segundo Jacqueline Teixeira e Olívia Barbosa (2022), Damares seria muito mais que uma figura excêntrica que desviaria o foco das atenções para outras dimensões do governo de Jair Bolsonaro. Ao contrário, seria uma das peças mais importantes da composição governamental, visto que sua figura traz os evangélicos para a disputa dos marcos dos direitos humanos no país, a partir de uma concepção que coloca a família heteronormativa, a proibição do aborto e os papéis de gênero tradicionais no centro da agenda.
Além de Damares Alves, o evangélico presbiteriano Milton Ribeiro também ocupou um dos ministérios do governo Bolsonaro, o MEC. Em sua gestão, que foi de julho de 2020 a março de 2022, Ribeiro foi um dos porta-vozes da teoria de que a educação brasileira seria doutrinária – ou seja, converteria os jovens ao “esquerdismo”. Em uma das suas declarações, chegou a dizer que as Universidades incentivariam o “sexo sem limites”. A despeito dessa e de outras declarações que posicionavam o MEC como agente da “guerra cultural” bolsonarista, o principal marco da sua gestão foi o escândalo de corrupção o qual se envolveu. Ribeiro foi acusado de condicionar o destino de verbas do MEC à intermediação de pastores na transação, e por conta disso chegou a ser preso. Na ocasião, foi divulgado um áudio em que o ministro diz que, a pedido do presidente Bolsonaro, priorizava o destino de recursos para prefeituras cujos pedidos de repasse de verba haviam sido feitas por pastores.
As investigações sobre a gestão de Milton Ribeiro no MEC não foram até o momento concluídas, mas elas revelam uma característica importante do governo Bolsonaro: o acesso de pastores evangélicos ao poder foi expandido. Nos ministérios que dialogam e lidam com temas de interesse das igrejas, como a questão dos direitos humanos, do direito das mulheres e da educação, Bolsonaro nomeou figuras do meio evangélico. Além disso, nomeou um “terrivelmente evangélico” para o STF: André Mendonça. Ampliando o benefício das igrejas evangélicas, o governo Bolsonaro perdoou a dívida das igrejas, e aumentou a isenção de impostos para o salário de pastores.
O conjunto dessas medidas mostra a relação próxima do governo Bolsonaro com os evangélicos conservadores brasileiros. Ainda que os evangélicos sejam multifacetados e plurais, Bolsonaro soube dialogar com a maior parte do segmento, abrindo espaços no governo, expandindo benefícios à líderes e igrejas, além de construir um discurso em que as menções religiosas e a defesa da moralidade cristã conservadora estivessem sempre presentes.
Evangélicos e as Eleições de 2022
As pesquisas de intenção de voto ao longo da campanha eleitoral, até o momento da redação deste texto, mostram Bolsonaro como o amplo favorito entre o segmento evangélico. Tal resultado destoa tanto em relação ao conjunto do eleitorado brasileiro quanto em relação aos demais agrupamentos religiosos.
O gráfico a seguir, elaborado pelo agregador de pesquisas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)[2] mostra os dados de intenção de voto no eleitorado brasileiro:
Gráfico 1 – Intenção de voto geral para presidente
Os dados mostram, do momento sinalizado no gráfico em que as candidaturas são oficializadas, até a data de 20 de setembro de 2022, uma relativa estabilidade entre as intenções de Lula (PT) e Bolsonaro (PL). Lula aparece na frente com 43% dos votos, seguido por Bolsonaro, com 33%, e Ciro Gomes (PDT), com 7%. Brancos e nulos, por sua vez, contabilizam também 7%. O agregador de pesquisas não incorporou, até o momento, os votos da candidata Simone Tebet (MDB), que na pesquisa IPEC, divulgada em 19 de setembro, pontuou 5% das intenções de voto.
Os gráficos a seguir trazem os dados por segmento religioso.
Gráfico 2 – Intenção de voto entre Católicos
Entre os católicos podemos ver que a vantagem do candidato petista, Lula, sobre Bolsonaro (PL) é ainda maior, de 22 pontos percentuais. Caso a eleição fosse entre católicos, teríamos, segundo as pesquisas, a eleição decidida em primeiro turno a favor de Lula (PT).
Fato oposto temos quando olhamos o gráfico referente à intenção de voto entre os evangélicos:
Gráfico 3 – Intenção de voto para presidente entre evangélicos
Entre evangélicos, a situação se inverte, temos 50% das intenções de voto para o candidato à reeleição do PL, Jair Bolsonaro, enquanto o candidato petista alcança apenas 28% das intenções. Temos o exato oposto da situação anterior: caso o eleitorado fosse composto apenas de evangélicos, teríamos Bolsonaro (PL) eleito no primeiro turno.
Tal quadro não é uma surpresa para quem acompanha o universo evangélico no período. Ao longo dos últimos meses, vimos um esforço dos líderes das principais igrejas evangélicas do país para o apoio a Bolsonaro, inclusive com forte pressão sobre os fiéis. Eventos como a proibição de eleitores de Lula receberem a santa ceia, discursos sobre a incompabilidade entre o cristianismo e o voto na esquerda[3] se tornaram comuns.
Os demais segmentos religiosos são numericamente menores do que os católicos e evangélicos, que representam, segundo projeção do demógrafo José Eustáquio Diniz, respectivamente, 49% e 31% da população brasileira. No entanto, para fins de comparação, vale analisar os gráficos a seguir, com espíritas e sem religião.
Gráfico 4 – Intenção de voto para presidente entre espíritas
Gráfico 5 – Intenção de voto para presidente entre sem religião
Podemos conferir que, tanto entre espíritas quanto entre os sem religião, Lula (PT) aparece como amplo favorito, respectivamente com 54 e 51 pontos percentuais, contra 24% e 28% de Bolsonaro (PL).
Dessa forma, temos que, o favoritismo de Bolsonaro se dá apenas entre o segmento evangélico. Em outras palavras, as pesquisas mostram os evangélicos como o único segmento religioso na contramão do conjunto do eleitorado. De forma ainda mais significativa, caso pegássemos as variáveis de renda, região, gênero ou condição do município (capital ou interior), da última pesquisa IPEC antes da entrega deste texto, no dia 19 de setembro, não encontramos nenhuma segmentação que coloca Bolsonaro favorito como entre os evangélicos.
Considerando os dados de intenção de voto nas eleições de 2022, bem como o comportamento político dos evangélicos nas últimas décadas, podemos classificar o segmento como a principal força anti-petista da nova república. Com o crescimento dos evangélicos e a crescente importância eleitoral desse grupo, o estabelecimento de conexões com o segmento será questão de sobrevivência para as principais forças políticas do país.
*Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.[2]
Referências bibliográficas
ALVES, J. E. (2018), O voto evangélico garantiu a eleição de Jair Bolsonaro José Eustáquio. Ecodebate [online]. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2018/10/31/o-voto-evangelico-garantiu-a-eleicao-de-jair-bolsonaro-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/. ISSN 2446-9394.
BOHN, S. Evangélicos no Brasil: Perfil socioeconômico, afinidades ideológicas e determinantes do comportamento eleitoral. Opinião Pública, Campinas, v. 10, n. 2, p. 288-338, 2004.
CAMPOS, L. S. et al. Os políticos de Cristo – uma análise do comportamento político de protestantes históricos e pentecostais no Brasil. In: BURITY, J. A.;
GERARDI, Dirceu André; ALMEIDA, Ronaldo de. Agregador de pesquisas eleitorais por religião: consolidação de dados de pesquisas eleitorais com recorte religioso às eleições presidenciais de 2022. APP versão 1.0. São Paulo, 2022. Disponível em: https://cebrap.org.br/projetos/. Acesso em: 20/07/2022.
PIERUCCI, A. F. O.; MARIANO, R. O envolvimento dos pentecostais na eleição de Collor. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 34, p. 92-106, nov. 1992.
PIERUCCI, A. F. O. Representantes de Deus em Brasília: a bancada evangélica na constituinte. Ciências Sociais Hoje, São Paulo, n. 11, p. 104-32, 1989.
PIERUCCI, A. F. O.; PRANDI, J. R. Religiões e voto: a eleição presidencial de 1994. Opinião Pública, v. 3, n. 1, p. 20-43, jun. 1995.
ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: todavia, 2021.
VALLE, V. S. M.. Direita religiosa e partidos políticos no Brasil: os casos do PRB e do PSC. Teoria e Cultura, v. 13, p. 85-100, 2018.
VALLE, V. S. M.. Entre a religião e o Lulismo: Um estudo com pentecostais em São Paulo. 1. ed. São Paulo: Recriar, 2019. p. 264.
[1] Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade Santa Marcelina. E-mail: vinicius126@gmail.com
[2] Ver GERARDI, Dirceu André; ALMEIDA, Ronaldo de. Agregador de pesquisas eleitorais por religião: consolidação de dados de pesquisas eleitorais com recorte religioso às eleições presidenciais de 2022. APP versão 1.0. São Paulo, 2022. Disponível em: https://cebrap.org.br/projetos/. Acesso em: 20/07/2022.
[3] Ver: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/e-impossivel-um-cristao-ser-de-esquerda-diz-malafaia-a-revista/ e https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/igreja-universal-afirma-que-cristaos-nao-devem-compactuar-com-ideias-esquerdistas/
Fonte Imagética: Bíblia Sagrada no Culto Evangélico da Igreja Assembleia de Deus (foto de Jackson Samuel Costa/Unsplash). Disponível em < https://unsplash.com/photos/Kgaulll9nOY>. Acesso em 21 set 2022