Maria Aparecida Azevedo Abreu1
7 de outubro de 2024
O Boletim Lua Nova republica texto de Maria Aparecida Azevedo Abreu, em homenagem aos 86 anos do professor Gabriel Cohn, publicado em 29 de setembro de 2024, no blog A Terra é Redonda. Agradecemos a autora pela autorização de republicação.
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Neste 29 de dezembro de 2024, Gabriel Cohn completa 86 anos. Visitá-lo recentemente e encontrá-lo bem-humorado, disposto e lúcido, para uma conversa de cerca de três horas, junto com Amélia Cohn, sua companheira de vida, foi uma daquelas alegrias que nos nutrem por semanas. Sou amiga de Gabriel há 24 anos, tendo sido orientanda dele durante os primeiros nove anos.
A amizade posterior certamente foi marcada por essa relação inicial, mas, hoje, tenho com Amélia e Gabriel um daqueles poucos e pequenos territórios emocionais e intelectuais seguros em que tudo pode ser dito, dada a confiança integral entre as pessoas que estão presentes. E justamente por isso, tudo é dito com muito cuidado e honestidade, reduzindo ao máximo ambiguidades. Esse exercício de uma comunicação voltada para a plena compreensão ainda me causa espanto, a cada vez que acontece.
Quando relembro a experiência de ser orientada por Gabriel Cohn, três imagens me vêm a memória: (i) a de ele regando, com uma garrafa de plástico, uma árvore que havia sido plantada perto de sua sala no edifício da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH da USP; esta atividade era tão recorrente que, em um de seus aniversários, dei de presente a ele um regador grande, também de plástico, recheado de gerberas; (ii) uma caminhada desde a FFLCH até a Praça do Relógio, onde ficamos andando e conversando sobre meu texto de qualificação de mestrado; (iii) as conversas de orientação que tive no estacionamento do prédio da Administração da FFLCH, durante alguns despachos ao sol, enquanto ele exercia a função de direção da Faculdade; despachos ao sol foram expedientes inventados por Gabriel Cohn para que ele passasse algum tempo de seu trabalho administrativo fora de sua sala, ao sol.
Essas três cenas fazem parte de uma relação orgânica com a universidade que talvez tenha se tornado mais comum com as novas gerações, após o processo de democratização pelo qual todas as universidades públicas – inclusive a USP – vêm passando. Para Gabriel Cohn, entre 2000 e 2008, quando se aposentou com 70 anos, de modo compulsório, era uma forma de existir. Ele em várias ocasiões disse que a USP lhe havia dado tudo: ali ele havia conhecido inclusive Amélia, e tinha alcançado todo tipo de reconhecimento pelo seu trabalho e sua entrega intelectual.
Sua entrega intelectual e sua capacidade de pensar e fazer perguntas em sala de aula, na forma de proposição de debate aos estudantes, eram espantosas. Vou mencionar apenas uma, na qual eu me pego até hoje: “no pacto social que dá origem ao soberano, de Hobbes, o súdito delega seu juízo ou sua vontade?”. Não tenho uma resposta para esta pergunta.
Esse professor e pesquisador, cujo rigor metodológico tinha como ponto de partida a humildade do pesquisador em relação ao seu objeto de pesquisa, estava no departamento de Ciência Política, dando a disciplina obrigatória de Teoria Política, que correspondia aos então chamados clássicos, que iam de Aristóteles até Marx, e várias eletivas de teoria política contemporânea, em que autores e temas do século XX eram abordados.
O que me levou a esse mundo de seriedade universitária foi uma pesquisa de dois anos de Iniciação Científica financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, durante minha graduação em Direito, e um processo de seleção razoavelmente concorrido. Saí da banca do processo de seleção pensando: “não importa o resultado, eu ainda vou estudar neste Departamento, que consegue reunir todos esses professores para um processo público de seleção”. Nenhum processo seletivo, em minha vida, foi mais exigente que este. Eram 20 vagas. Fui selecionada na posição 17. Na distribuição provisória de orientadores, Gabriel Cohn foi designado para mim.
E, então, foi pelo menos um semestre para que Gabriel Cohn se tornasse efetivamente meu orientador e anos de uma delicada desconstrução de uma prepotência juvenil e de sublimação de energia vital na forma de entrega intelectual. Nos nove anos de minha pós-graduação, além de aulas com Gabriel Cohn, fiz cursos com Gildo Marçal Brandão, que já nos deixou, Cícero Araújo, que atualmente é professor do Departamento de Filosofia da mesma Faculdade, Álvaro de Vita, professor já aposentado, Fernando Limongi, também aposentado, Renato Janine Ribeiro, professor aposentado do Departamento de Filosofia, Ana Paula Tostes e Leonardo Avritzer, estes dois professores visitantes que deram um curso.
Posso dizer que não tive uma aula ruim e que me preparei ao máximo para cada uma delas. A dedicação dos professores e dos colegas faziam com que o ambiente fosse estimulante. Tivemos greves e, pelo menos até onde eu me lembro, se a biblioteca estivesse fechada, os prazos de entrega de teses e dissertações se estendiam. A biblioteca não ficava aberta 24 horas, mas, nesses anos de 2000 a 2008 os horários foram se ampliando. Lembro-me de vê-la funcionando desde às 8h até as 22h30, abrindo aos sábados pela manhã.
Acabei de ler o livro de Marcia Rangel Cândido (2024) e eu mesma pesquiso igualdade de gênero, por isso tenho de dizer que não me orgulho de ter tido quase apenas professores homens. Nas bancas de meu mestrado e de meu doutorado, apenas homens. Por um tempo, essa quase exclusividade masculina no processo de obtenção de meus títulos acadêmicos foi um problema, para mim, principalmente porque apenas em 2012 li “O Segundo Sexo”, de Beauvoir, e somente em 2022 li a tese de doutorado de Sueli Carneiro, que deu origem ao livro “Dispositivo de Racialidade”. Mas, agora dizendo a mim mesma, com a ajuda de Cândido (2014), para os padrões da Ciência Política brasileira, naquele departamento havia uma razoável representação de mulheres. E ainda viriam, no período em que estive lá, Marta Arretche e Eunice Ostrensky. Em relação a Eunice, não fui sua aluna por um desencontro temporal, dada a afinidade de nossas pesquisas.
Naqueles anos, para mim, a desigualdade de gênero era, sim, um problema importante, mas eu honestamente acreditava que a igualdade seria apenas uma questão de tempo. Um ambiente como aquele acenava a um devir social que, somado ao contexto político, em que vivíamos – hoje o sabemos – a sofisticada disputa política entre os projetos políticos do PSDB e do PT, nos dava um otimismo quase eufórico.
Neste aspecto, mais uma vez, minha relação de orientação com Gabriel sempre foi um território de extrema confiança. Durante a pós-graduação, fui trabalhar na prefeitura de São Paulo e, lá, o Gabriel Cohn era o marido da Amélia. Além disso, Gabriel compartilhava com os estudantes, de forma muito orgulhosa e carinhosa, os feitos de seus filhos Clarice e Sergio.
Gabriel Cohn nunca foi o indivíduo maximizador de desejos. Sua existência, de uma integridade individual inquestionável, se afirmava coletivamente. Gabriel tratava a mim e a todos os estudantes com um respeito que, a meu ver, posso dizer apenas que era a tradução de seu modo de entender o que seria uma vida social democrática. Na minha relação de orientação, em minha memória, lembro-me de um sujeito extremamente paciente educando uma jovem pesquisadora. Um mestre. Em minha opinião, o melhor que eu poderia ter tido.
Dizer apenas “o melhor que eu poderia ter tido” é pouco para o que Gabriel compartilhava como professor e pesquisador. Eu vinha de uma formação em que aparências, retóricas, saídas argumentativas às vezes desleais, argumentos de rábula, eram permitidos, e, às vezes, até incentivados.
Pois Gabriel Cohn praticava exatamente o contrário disso. Pedisse a ele um exercício de erudição e ele apresentava uma pergunta inquietante. Viesse com uma pergunta estratosférica, ele nem se abalava para alcançá-la. Vou exemplificar com um episódio. A disciplina de Teoria Política Clássica tinha uma bibliografia bastante puxada, que chegava a dois livros em uma semana. Às vezes, um desses livros era de Quentin Skinner, para que fique claro o nível de esforço de leitura exigido. Um estudante fez um comentário sobre “A Guerra do Peloponeso” de Tucídides. Para mudar de assunto, Gabriel disse apenas: “eu não li, você pode expor o livro para nós todos?”. Essa foi apenas uma de suas saídas sempre inteligentes, elegantes e, frequentemente, bem-humoradas.
Esse estilo de Gabriel Cohn e seu bom-humor com meu estilo meio nerd fizeram com que eu me esforçasse para atenuar minha prontidão em absorver a tudo como uma esponja que há muito demandava por tanto repertório conceitual. A cada proposição minha ele concedia, moderava, se desinteressava ou aprofundava o interesse e, assim eu fui aprendendo a confiar sem controlar. Havia alguém ali bem mais exigente que eu, também mais talentoso, que iria garantir a razoabilidade da execução do projeto.
De toda a produção acadêmica de Gabriel Cohn, o artigo que eu carrego sempre comigo, é “Esclarecimento e Ofuscação: Adorno e Horkheimer hoje”. O artigo se inicia com uma definição de antissemitismo que é operacional para qualquer situação protofascista atual. Toda a reflexão de Gabriel Cohn sobre o tema do Esclarecimento e sobre a necessidade de uma interpretação crítica ao iluminismo, merece ser retomada quando temos em discussão o que é o real.
Recupero aqui uma passagem da entrevista feita por Ricardo Musse: “Claro que essas ideias de claridade e filtro são metáforas que estou usando aqui, o importante é que em ambos os casos a referência é a processos sociais, e não naturais como elas evocam. O equívoco iluminista consiste em supor que todo obstáculo à pura radiação de luzes é obscurantista (termo típico, no caso), pois beneficia os inimigos da razão clara e direta. No entanto, a iluminação direta, sem desvios e reverberações, só é boa para quem a emite (os dominantes social e culturalmente), não para quem a recebe em cheio (e por isso necessitaria dos filtros da capacidade de reflexão e de crítica)”.
Levando a sério o que Gabriel Cohn observou acima, comunicar-se claramente sem evasivas pode ser considerado algo somente passível de ser feito, sem violência, entre pares. Em qualquer outra relação, se aqueles que têm a posição favorável de definição do que é verdade, bom ou desejável falarem de forma extremamente direta, reforçarão o seu privilégio. Neste caso, a própria enunciação viria carregada de opressão.
Gabriel Cohn, ao menos desde 2000, nos momentos em que pude observá-lo, exerceu sua racionalidade crítica ao iluminismo de forma mais que rigorosa. Seu modo de relacionar-se é praticamente a comunicação não violenta em ato contínuo.
O que dizer de um sujeito que levou o refinamento e a delicadeza de suas relações sociais tão a sério?
Uma gravura de Goya marcou minha formação: o sonho da razão produz monstros. Pois a vigília delicada da racionalidade de Gabriel Cohn produziu os desejos intelectuais mais lúcidos.
Obrigada, mestre!
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
- Professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). ↩︎
Referência imagética: Colagem de fotos elaborada pelo Boletim Lua Nova a partir de imagens de Gabriel Cohn e Maria Aparecida Azevedo Abreu. Ambas imagens foram obtidas no blog A Terra É Redonda.