Esta série especial do Boletim Lua Nova reúne reflexões críticas elaboradas por graduandas, mestrandas e doutorandas selecionadas por meio de edital de monitoria que acompanharam o Colóquio Internacional “Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (Séculos XIX-XXI)”, realizado de 26 a 29 de novembro de 2024, com financiamento do Instituto Beja, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Longe de exercerem funções estritamente logísticas, essas pesquisadoras transformaram o Colóquio em um laboratório de formação acadêmica e política: acompanharam os debates, dialogaram com as/os palestrantes e produziram textos de relato‑reação que combinam descrição empírica e análise conceitual das mesas‑redondas. O texto que a leitora ou o leitor tem em mãos é fruto desse trabalho coletivo.
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Júlia Batista Bernardes Farias1
Stefani Silva Souza2
28 de maio de 2025
A mesa-redonda “Gênero, raça e punição”, integrante do Colóquio Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (séculos XIX e XX), reuniu três vozes centrais para a análise crítica dos impactos do sistema penal sobre mulheres negras: Mary Jello, representante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e do coletivo Por Nós; a professora Jules Falquet, cuja pesquisa enfoca as interseções entre gênero, classe e colonialidade; e Regina Lúcia dos Santos, geógrafa, especialista em educação étnico-racial e coordenadora do Movimento Negro Unificado de São Paulo (MNU-SP). Ao articular experiência vivida, engajamento político e produção acadêmica, a composição da mesa possibilitou uma abordagem interseccional robusta das dinâmicas de punição, exclusão e resistência que marcam a realidade das mulheres negras no Brasil e na América Latina.
A primeira intervenção coube a Mary Jello, que iniciou reiterando seu compromisso com a luta antiprisional no país. Além de representar a RENFA, Jello integra o coletivo Por Nós, surgido na zona leste de São Paulo e formado por mulheres egressas e sobreviventes do cárcere, com o propósito de romper lógicas coloniais e escravistas ainda presentes no sistema penal.
Em seguida, Jello relatou sua trajetória. Egressa do sistema prisional — permaneceu privada de liberdade por nove meses, em 2007 —, ela destacou que o encarceramento decorreu de um contexto de vulnerabilidade agravado por problemas de saúde e precarização trabalhista. Quando atuava em uma instituição financeira, sofreu um acidente vascular cerebral; simultaneamente, sustentava os filhos e auxiliava os pais. Diante da inexistência de apoio estatal e de dificuldades laborais, viu-se atraída pela proposta de ingressar no tráfico de drogas. Após conquistar a liberdade, foi contratada pela Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo , passo crucial para sua reinserção social, sobretudo porque se encontrava afastada dos estudos havia 42 anos.
Jello concluiu enfatizando que o aprisionamento incide em três eixos — corpo, mente e pena/multa — e defendendo a expansão de políticas públicas que amparem mulheres impactadas pelo sistema penal. Entre os objetivos centrais do movimento antiprisional, destacou a necessidade de cobrar a efetiva implementação dessas políticas.
A professora Jules Falquet, que participou remotamente, abriu sua exposição destacando que o encarceramento, hoje, configura-se menos como medida de reparação social e mais como negócio — em especial nos ramos imobiliário e hoteleiro. Há unidades prisionais, observou, em que as pessoas privadas de liberdade são obrigadas a pagar pela própria alimentação. Nessa lógica, a prisão converte-se em uma verdadeira “cadeia produtiva”: pessoas presas trabalham para empresas externas, não apenas para a manutenção das instalações, gerando lucro para terceiros.
Em seguida, Regina Lúcia dos Santos tomou a palavra, apresentando-se como geógrafa, especialista em Educação Étnico-Racial e coordenadora do Movimento Negro Unificado de São Paulo (MNU-SP). Sua reflexão partiu da provocação: “que mulher é essa que é punida no Brasil?” A partir daí, sublinhou aspectos históricos da condição da mulher negra escravizada — expropriada, tratada como mercadoria e forçada a reproduzir mão de obra. Recordou, também, que o Brasil é o terceiro país que mais encarcera pessoas no mundo (superado apenas por China e Estados Unidos) e que 70 % das mulheres presas são negras, das quais 80 % respondem por tráfico de drogas, crime sem violência direta contra a pessoa.
Santos prosseguiu argumentando que violência e punitividade são naturalizadas na sociedade brasileira, comparando tal normalização às perversidades impostas às mulheres negras na escravidão — muitas eram estupradas pelos senhores e, em seguida, castigadas por mulheres brancas movidas por ciúmes. Hoje, afirmou, a mulher negra é frequentemente chefe de família empobrecida, mãe solo e trabalhadora em ocupações subalternas.
No interior das prisões, essas mulheres continuam expostas a múltiplas violações. Primeiro, as unidades não oferecem estrutura adequada: faltam itens básicos de higiene e cuidados íntimos. Além disso, diferentemente dos homens, as mulheres encarceradas não têm direito à visita íntima. Somam-se a isso abandono familiar, alimentação insuficiente e escassa assistência médica. Santos destacou ainda a situação de gestantes privadas de liberdade: a legislação garante seis meses de convivência com o bebê para amamentação, mas, no Estado de São Paulo, esse direito vem sendo sistematicamente negado.
Diante das reflexões apresentadas por Mary Jello e Jules Falquet, Regina Lúcia dos Santos sustenta que a reestruturação do sistema punitivo brasileiro é urgente. Segundo a geógrafa, a punição no país opera também como mecanismo de controle sobre corpos negros femininos e, por conseguinte, de desarticulação paulatina das famílias. É preciso, enfatiza, desnaturalizar essa perversidade histórica. Ela propõe três passos iniciais: (1) revogação da Lei de Drogas; (2) formulação de políticas que atendam às necessidades das pessoas egressas; e (3) implementação de programas sociais que garantam seguridade familiar às mulheres negras após o cárcere. Para Santos, a sociedade deve assumir corresponsabilidade, pois a desestruturação das famílias negras é produzida pelas próprias dinâmicas estatais.
A mesa dedicada ao encarceramento de mulheres negras evidenciou, de forma contundente, os mecanismos históricos e estruturais que sustentam a criminalização desses corpos. A narrativa em primeira pessoa de Mary Jello, mulher egressa, integrante da RENFA e do coletivo Por Nós, desconstruiu estigmas ao mostrar como o desamparo estatal a conduziu ao cárcere; seu testemunho revela a atuação brutal e silenciosa do sistema penal sobre corpo, mente e subjetividade. Em diálogo, a análise de Jules Falquet denunciou o caráter lucrativo do encarceramento, no qual o trabalho prisional se converte em engrenagem produtiva, distanciando o discurso de justiça da realidade das instituições penais.
Na sequência, Regina Lúcia dos Santos ofereceu uma abordagem interseccional ao destacar que 70 % das mulheres presas no Brasil são negras e 80 % delas respondem por tráfico de drogas, crime sem violência direta contra terceiros. Sua fala explicitou as múltiplas camadas de violência que atravessam essas mulheres, do passado escravocrata ao presente carcerário: ausência de condições básicas nas unidades femininas, negação do direito à visita íntima e ao convívio com filhos recém-nascidos, além de abandono familiar, alimentação insuficiente e assistência médica precária. Ao defender a revogação da Lei de Drogas, a valorização de políticas de reinserção e a criação de programas de seguridade para mulheres egressas, a mesa reafirmou a urgência de uma reforma profunda do sistema punitivo brasileiro, ancorada em justiça social, memória e reparação histórica.
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