Carlos Eduardo Rezende Landim1
Andréia Fressatti Cardoso2
11 de dezembro de 2024
Qual é o papel desempenhado pela Ciência Política em nosso tempo? De que forma o Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) foi moldado e, simultaneamente, moldou as diferentes conjunturas históricas e políticas do país? Em que medida sua proposta inovadora, marcada pela insígnia de uma “heterodoxia rebelde”, contribuiu para redefinir os paradigmas da Ciência Política brasileira? Essas e outras questões foram abordadas pelos participantes do seminário que marcou os 50 anos do Programa de Pós-graduação em Ciência Política (PPGCP) do IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizado nos dias 12, 13 e 14 de novembro de 2024.
Na mesa de abertura, Andrei Koerner, chefe do departamento de ciência política da Unicamp, indicou que os três dias de evento seriam um “momento de reflexão e memória, numa combinação entre retrospecção e prospecção na questão do presente”. Se Max Weber, no célebre escrito A Ciência como Vocação, ensina-nos que a ciência deve ter a capacidade de questionar pressupostos, superar dogmas e buscar a autonomia intelectual, sendo este um dos motores que impulsiona a renovação do pensamento, o que se evidenciou nos dias de discussão foi o testemunho de um espírito crítico vigoroso e comprometido com esses elementos. Tal espírito não apenas move a vocação dos atuais docentes e discentes do programa, mas permeia as trajetórias dos que em algum momento por lá passaram. As preocupações com os rumos do Brasil e o compromisso ético-político com a transformação social – além, evidentemente, do rigor metodológico e da qualidade das pesquisas – continuam a ser uma das marcas que sustentam o programa.
Fundado em 1974 com o curso de mestrado acadêmico – o doutorado foi criado em 2005 –, o programa foi idealizado com uma abordagem inovadora, fundamentada em uma sólida formação teórica e metodológica de caráter multidisciplinar. Disso nasceu aquela que seria sua principal marca, descrita ao longo do evento como “heterodoxia rebelde”. As diferentes mesas buscaram realizar uma reflexão sobre a trajetória do programa, entre continuidades e mudanças, e pensar a sua importância para a formação, percurso profissional e experiência intelectual, além das perspectivas para o futuro. A comemoração dos 50 anos do PPGCP foi organizada em três eixos: atividades de memória, que contempla as entrevistas preservadas no acervo digital CEDEC-CEIPOC e pesquisa documental no arquivo da pós-graduação para resgatar o panorama histórico e mapear as transformações que marcaram a trajetória do programa; a realização do seminário que relatamos aqui; e uma coletânea prevista para 2025.
No primeiro dia, realizou-se a mesa inaugural, com as professoras Rachel Meneguello, pró-reitora de Pós-Graduação na Unicamp, Andréia Galvão, diretora do IFCH, Alvaro Bianchi, coordenador do PPGCP, e Andrei Koerner. Nesta mesa, foi feito o convite para as demais mesas: o que foi e o que é o PPGCP, quais as propostas para seu futuro, mas também quais são suas características, marcas e legado. Foi a primeira vez que o PPGCP foi descrito em sua “heterodoxia rebelde” durante o seminário.
Essa marca é reconhecida pela quantidade de pesquisas de áreas e metodologias distintas que o PPGCP possui. Além de abrigar o Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), vinculado ao Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP), o programa desenvolve estudos que vão desde análises sobre Gramsci e Poulantzas até investigações sobre direito, política e movimentos sociais. Essa diversidade constitui uma potência criativa no âmbito da pós-graduação, proporcionando aos discentes a oportunidade de interagir com múltiplas perspectivas e interpretações acerca da Ciência Política. Um exemplo significativo dessa pluralidade foi destacado durante a conferência da professora Meneguello, na última mesa do primeiro dia do seminário. Na ocasião, Bianchi relembrou um episódio em que, durante a organização de um seminário sobre Lenin, Meneguello não apenas demonstrou interesse em participar, como apresentou uma análise detalhada sobre as origens da teoria dos partidos políticos, localizando no teórico político russo sua gênese.
Marcada em todo o evento, essa essência evidenciou-se também na mesa O Projeto “Memória dos 50 anos do PPGCP-Unicamp”. Nela, Koerner sintetizou as trajetórias mencionadas, ressaltando o esforço coletivo de realização das comemorações. Em seguida, Bianchi fez uma intervenção sobre a “pré-história” do projeto de resgate da história do programa. Em 2020, quando se iniciaram preparativos para os 50 anos do programa, propôs-se a seguinte reflexão: “se este programa quer ocupar na Ciência Política brasileira o lugar que lhe é de direito, nós precisamos escrever a nossa própria história”. Para tanto, a base para essa iniciativa deveria ser a ideia de que a excepcionalidade do PPGCP da Unicamp não é um resultado inesperado de um percurso independente, mas fruto de uma renitente convicção, que se materializou nas linhas de pesquisa e nas disciplinas desenvolvidas ao longo dos anos. Um aspecto importante da reflexão de Bianchi é a ênfase na continuidade do programa que, aperfeiçoando, adequando e ajustando às contingências, manteve-se fiel aos princípios e objetivos fundantes de uma “heterodoxia rebelde”.
Dando seguimento, Celly Cook Inatomi, que tem sua trajetória marcada em todos os níveis pelo programa, detalha o processo de construção dessa memória dos 50 anos do PPGCP e apresenta alguns resultados parciais. Ela descreveu dois movimentos: primeiro, o conjunto de entrevistas realizadas com docentes que desempenharam papeis fundamentais na história do programa; e, segundo, a análise preliminar dos arquivos do programa, que revelam documentos e registros essenciais para a compreensão de sua evolução ao longo dos anos. As entrevistas oferecem relatos sobre as diversas fases do programa e destacam aspectos relevantes de sua trajetória. A entrevista com Shiguenoli Miyamoto, por exemplo, traz um relato sobre os seus incansáveis esforços e a dificuldade de sedimentação da área de Relações Internacionais e Política Externa dentro do programa. Por outro lado, a entrevista com Rachel Meneguello evidenciou a pluralidade teórica e metodológica do PPGCP, além de sua prontidão e objetividade ao abordar os temas mais diversos dentro da Ciência Política.
O relato de Armando Boito Júnior, segundo Inatomi, foi especialmente revelador sobre o encadeamento histórico de diferentes momentos do PPGCP. Boito, além de narrar a trajetória do programa, fez uma reflexão crítica sobre a interdisciplinaridade – “não da interdisciplinaridade nela mesma”, mas na forma como ela pode ser utilizada sem muita reflexão. Houve momentos em que ela foi utilizada de forma mais administrativo-burocrática do que intelectual. Já a conversa com Sebastião Velasco e Cruz foi outro momento marcante nas entrevistas. Com sua habitual disposição e organização, Velasco e Cruz ofereceu uma análise detalhada sobre a criação do doutorado em Ciência Política. Ele explicou os objetivos, as razões e as dificuldades envolvidas na criação, e a maneira como essa ideia foi concebida tanto do ponto de vista intelectual quanto burocrático.
Em relação aos arquivos do programa, foram apresentados os resultados parciais da análise documental conduzida até o momento. Foram coletados 135 documentos, muitos deles com mais de 100 páginas. As principais fontes dessa documentação incluem o Sistema de Arquivo da Unicamp (Siarq), a secretaria do PPGCP, o site do IFCH, os currículos Lattes dos professores e arquivos pessoais de docentes. Ao resgatar a trajetória dos docentes do programa por década, destacou-se a interdisciplinaridade como uma de suas marcas registradas, refletida na formação de seu corpo docente, que durante o período inicial do programa abrangia linguistas, historiadores, filósofos, economistas e cientistas sociais. Essa característica teve maior ênfase até o início dos anos 2000, quando a área de Ciência Política passou por um processo de especialização, culminando na criação do curso de doutorado em Ciência Política na Unicamp. Inatomi também ressaltou as transformações ocorridas nas áreas e linhas de pesquisa ao longo das décadas, enfatizando a forma como essas mudanças contribuíram para moldar a identidade e o impacto do programa.
A heterodoxia também se apresentou no restante da programação do seminário. As mesas tiveram temas plurais, como luta de classes, gênero, construção democrática e participação, instituições e representação política, políticas públicas, as experiências na pesquisa sobre direito e os tribunais e pensamento político. Compostas por docentes do programa e pessoas que passaram ou tiveram sua trajetória marcada pelo PPGCP, os temas foram debatidos em conjunto com as memórias do programa e o legado que ele deixou para a ciência política brasileira nesses últimos 50 anos. Os demais participantes também reconheceram que a heterodoxia do programa carrega uma certa “rebeldia”, isto é, uma recusa de ter uma linha definidora do programa e o predomínio de uma perspectiva ou abordagem às custas das demais. A heterodoxia é necessariamente rebelde, ao questionar se há uma única forma de se fazer Ciência Política. Como lembrou Luciana Tatagiba na mesa “Participação, movimentos sociais e construção democrática, balanços e perspectivas”, a convivência, nem sempre fácil, entre essa diversidade de abordagens só é possível por causa dessa rebeldia.
Se o programa foi descrito pela expressão “heterodoxia rebelde”, podemos dizer que o seminário dos 50 anos teve como mote a presença da memória. O convite inicial à retrospecção e prospecção inseriu o programa em uma linha temporal em que passado e presente se vinculam para fazer uma aposta ousada para a vida futura. Evidenciou-se no evento um vigor compartilhado pelas diferentes gerações para continuar (re)inventando as práticas intelectuais com pluralidade e abertura a diferentes concepções e ideias. Conforme mencionado por Koerner na mesa “Experiências interdisciplinares em pesquisas sobre política e direito”, uma das marcas do departamento é acolher “rebeldes heterodoxos e transfronteiriços interdisciplinares”.
O evento não se limitou a rememorar o passado, mas propôs a construção de uma “memória do futuro” — um exercício de imaginação que exige reconhecer o lugar ocupado no passado e no presente como fundamento para projetar o futuro. Isso reflete um movimento constante de reinvenção, no qual diferentes gerações deixam suas marcas no programa e nos campos da Ciência Política e áreas correlatas no Brasil, expandindo horizontes e possibilidades acadêmicas, teóricas, políticas, epistemológicas e metodológicas. Nos 50 anos do PPGCP da Unicamp, esse esforço se iniciou com o projeto de coleta e preservação do passado pelas entrevistas realizadas pelo Acervo Digital CEDEC-CEIPOC. O legado deixado pelo programa foi evidenciado na homenagem aos professores Décio Saes, Shiguenoli Myiamoto, Evelina Dagnino e Walquíria Leão Rego. As mesas e as conferências de Rachel Meneguello, Armando Boito Junior e Sebastião Velasco e Cruz fizeram o exercício de vincular o passado com o presente. Quando damos um passo atrás e tomamos o seminário em conjunto, vemos a vida futura.
Todas as mesas foram transmitidas no Youtube, e podem ser conferidas no canal do IFCH-Unicamp.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Mestre e Doutorando no PPGRI San Tiago Dantas (Unicamp, Unesp, PUC-SP), bolsista CAPES. Editor do Boletim Lua Nova e associado ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações aqui expressas são de responsabilidade do autor e não necessariamente reflete a visão da CAPES. E-mail: carlos.landim@unesp.br. ↩︎
- Mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo, com uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo n. 2020/14387-8). Membra da equipe editorial do Boletim Lua Nova e associada ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). E-mail: afressatticardoso@gmail.com. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de completa responsabilidade da autora e não necessariamente refletem as opiniões da FAPESP. ↩︎
Referência imagética: Cartaz de divulgação do Seminário de Comemoração dos 50 anos do Programa de Pós-graduação em Ciência Política do IFCH-UNICAMP, disponível nas redes sociais do Acervo Digital CEDEC-CEIPOC.