Henrique Curi[1]
A eleição para o governo do estado de São Paulo em 2022 tem disputa partidária inédita desde o processo de redemocratização que o Brasil passou em 1988, com a promulgação da Constituição Federal. O sistema partidário paulista, historicamente, possui dois partidos protagonistas: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB – antes PMDB) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Os dois partidos, além de ocuparem o Palácio dos Bandeirantes desde 1982[2], lideram a porcentagem de prefeituras conquistadas entre 1992 e 2020[3] (Gráfico 1). Analisar a política partidária em São Paulo exige que nomes como Orestes Quércia e Mário Covas apareçam como elementos fundamentais para o sucesso dos partidos.
Gráfico 1. Porcentagem de prefeituras conquistadas pelo MDB e PSDB (1988-2020)
Identificados como atores políticos “municipalistas”, Quércia e o PMDB ficaram conhecidos por tal prática principalmente a partir de 1982, com a interiorização da sigla (SADEK, 1986). O fenômeno consistiu na mudança das bases eleitorais do PMDB: da Grande São Paulo para pequenos municípios. A inserção de novos partidos à esquerda que disputavam o eleitorado nos grandes municípios diminuiu a competitividade do PMDB nesses lugares. Somando isso à entrada de elites mais tradicionais no partido, à gestão pemedebista do governo do estado (Franco Montoro eleito em 1982; Orestes Quércia em 1986) e ao fenômeno do “quercismo”, o partido ampliou seu sucesso eleitoral nos municípios paulistas menores (BIZZARRO NETO, 2013).
Mesmo com o aumento de partidos após a retomada das disputas eleitorais pós-redemocratização, o PMDB permaneceu como uma das principais forças eleitorais em São Paulo. Porém, o protagonismo que o partido assegurava foi perdido com o passar dos anos. Seu dissidente, o PSDB, emergiu em 1988 com grande potencial eleitoral a partir de elites partidárias do próprio PMDB, já com alto apelo eleitoral e um elevado número de candidaturas e vitórias em prefeituras em 1992. A partir de 1996, consolidou-se como principal adversário do PMDB nos municípios. É iniciada, assim, a trajetória tucana enquanto partido dominante no território paulista.
A ascensão do PSDB em São Paulo, com a vitória do governo estadual em 1994, coincidiu com a vitória nacional do partido para a presidência da República. Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso, respectivamente, foram os candidatos vitoriosos sob a sigla PSDB. O partido continuou a lançar quadros políticos para as disputas nacionais após os dois governos consecutivos de FHC: são os casos de José Serra (duas vezes), Geraldo Alckmin e Aécio Neves, todos derrotados. No estado de São Paulo, Serra, Alckmin e João Doria foram os candidatos responsáveis por manter o maior número de vitórias consecutivas por um partido na arena estadual – de 1994 até 2018.
Com um número majoritário de lideranças paulistas na formação do partido tucano, os problemas paulistas historicamente tendiam a ganhar estatura nacional dentro partido (CARDOSO, 2003) – desta vez, a sintonia de problemas atingiu a performance eleitoral do partido nas duas arenas. Em 2022, tanto na disputa nacional quanto na estadual paulista, o PSDB vive um contexto inédito. Na disputa pelo Planalto, foi a primeira vez desde 1989 que o partido não apresentou um candidato para disputar a presidência do país. Já no estado de São Paulo, o partido até apresentou candidatura[4], mas não chegou sequer ao segundo turno. O texto discutirá os rumos tomados pelo partido principalmente nestes dois contextos.
As eleições presidenciais no Brasil foram marcadas, durante vinte anos, pela disputa entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o PSDB. O protagonismo dessas legendas frente ao maior cargo do país rendeu mais vitórias ao PT – elegendo suas candidaturas de 2002 a 2014. Porém, após as eleições de 2014, pleito em que o partido tucano chegou mais próximo de vencer desde 2002, tudo levava a crer que o PSDB estava estabelecido como principal oposição ao governo petista e que esta posição estava, não apenas assegurada, mas com potencial de forte crescimento em seu apoio até a próxima eleição presidencial, em 2018. Desde então, o PSDB confirmou as expectativas em 2016 e se tornou o partido com maior número de prefeituras conquistadas e população governada no país.
O crescente descontentamento frente os governos do PT, o aumento do antipetismo (BORGES; VIDIGAL, 2018; FUKS; RIBEIRO; BORBA, 2020; SAMUELS; ZUCCO, 2018) e a figura do PSDB como principal oposição pode ter sido avaliada, internamente no partido tucano, como um contexto de natural sucessão no governo petista após tantos anos amargando a segunda colocação nacional. A eleição de 2016, neste sentido, foi ponto crucial para o partido. Novos candidatos viáveis eleitoralmente passaram a figurar entre as possíveis escolhas para o eleitor e, mais importante, o discurso “antipolítica” ditou o tom de diversas candidaturas – inclusive algumas do PSDB. Mesmo com novidades no terreno das candidaturas, o partido aparentemente soube se apropriar da ascensão de demandas relacionadas à rejeição à política tradicional e ao PT e, como já dito, obteve excelente desempenho nos municípios em 2016. O discurso “antipolítica”, porém, não trouxe bons resultados aos tucanos no longo prazo.
De 2016 a 2018, o protagonismo da oposição ao PT não foi sustentado pelo PSDB. A ascensão de novas lideranças ligadas ao campo ideológico da direita colocaram em xeque a importância do PSDB enquanto partido fundamental para derrotar o petismo no Brasil. A ascensão de organizações não-partidárias em protestos contra o então governo Dilma Rousseff (PT), como o Movimento Brasil Livre, e a radicalização do discurso contra o PT, também impulsionado por nomes pouco conhecidos na política partidária e mesmo políticos de longa carreira que reconheceram a oportunidade para alavancar seu alcance eleitoral, rebaixaram o PSDB enquanto apenas “mais uma” força eleitoral contra as administrações petistas a nível nacional – fragmentando, assim, o campo de atores viáveis para vencer o PT nas urnas.
Aliás, o partido tucano tinha um obstáculo a mais em relação aos seus novos “companheiros”: a desconfiança do eleitor em relação aos partidos políticos. O Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) de 2018 deixou clara a avaliação negativa das instituições sobre sua atuação com 63,2% das respostas como “Ruim” ou “Péssimo”. O desafio a ser superado, principalmente pelos já tradicionais partidos, envolve, além de diferentes estratégias para melhorar sua avaliação frente ao eleitorado, o reconhecimento da situação negativa por parte de seus próprios quadros. Para o PSDB, a necessidade de reinvenção da sigla foi considerada por elites partidárias externas ao partido, mas também por novas lideranças tucanas quando algumas declarações foram dadas após o fracasso eleitoral nas eleições gerais de 2018.
A estratégia de reinvenção[5] é adotada em geral quando se busca resgatar a força eleitoral e a imagem de um partido notório atingido frontalmente por seu frágil desempenho eleitoral[6]. Em 2018, o PSDB obteve seu pior desempenho na disputa nacional em toda sua história, com 4,76%[7] dos votos. Além disso, de 2014 para 2018, o partido passou da terceira para nona maior bancada na Câmara dos Deputados e menor número de governadores estaduais eleitos desde 1990. Em 2022, a situação piorou. Além de não apresentar candidatura para o Executivo nacional, o PSDB foi de 29 parlamentares eleitos para 13, não conseguiu a eleição de um senador e disputará o segundo turno em 4 estados: Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Paraíba e Pernambuco[8]. Em todos os casos, o candidato tucano ficou em segundo lugar no primeiro turno. Entre todos os resultados, o mais impactante foi o fato de o PSDB ter perdido seu principal reduto eleitoral, o estado de São Paulo.
Em São Paulo, as candidaturas de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Fernando Haddad (PT) conquistaram 42,32% e 35,70%, respectivamente, e impuseram a maior derrota que o PSDB poderia ter tido em 2022. A disputa no segundo turno entre Tarcísio e Haddad também confirma a presidencialização da disputa no território paulista. O primeiro é apoiado pelo atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), e o segundo é do mesmo partido de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Este tipo de disputa, envolvendo candidatos apoiados pelos principais postulantes ao cargo nacional, não ocorria desde 2010 – quando Geraldo Alckmin (PSDB) venceu em primeiro turno e Aloizio Mercadante (PT) foi o segundo candidato mais votado.
Gráfico 2. Porcentagem de municípios em que o PSDB obteve maior votação para governador no primeiro turno em São Paulo (1990-2022)
A votação de Rodrigo Garcia (PSDB) alcançou 18,40% do eleitorado paulista – a pior votação do partido desde 1990, quando o PSDB disputou o governo estadual pela primeira vez[9]. Além disso, como demonstrado no gráfico 2, o partido venceu em apenas 8,1% dos municípios: um recorde negativo desde 1994. A máquina paulista nas mãos do PSDB por 28 anos terá fim em 2022 e cabe avaliar os recentes passos que o partido tomou de uns anos para cá. A eleição para governador do estado de São Paulo foi decidida em primeiro turno de 2006 a 2014 – o PSDB era bem avaliado pelo eleitorado paulista e, dessa forma, recompensado nas urnas. Em linha histórica, a eleição de 2016 confirmou o favoritismo tucano nas eleições municipais e o partido continuou como a sigla com maior número de prefeituras no estado – marca que carrega desde 1996.
Em 2018, porém, a estratégia do partido em manter candidatos “antipolítica” começou a dar sinais que a sigla entrava em um processo de desgaste. O candidato ao governo estadual, João Doria, conseguiu uma vitória apertada contra Márcio França (PSB) apenas no segundo turno – quebrando com a sequência de largas vitórias do partido já em primeiro turno no estado.
O movimento antipolítica, contra candidaturas e partidos mainstream, aparenta ter sido um suicídio a uma sigla tão tradicional no sistema partidário brasileiro. O PSDB parece ter caído na armadilha da nova oposição, à direita, brasileira e trouxe para si bandeiras que o partido não poderia aceitar, como o apoio a candidaturas abertamente ligadas ao comportamento antidemocrático de Jair Bolsonaro. Em uma ganância de anos para vencer o PT, o partido abriu as portas para o bolsonarismo e a bandeira da (nova) antipolítica, encampada já em 2016, trouxe consigo o desprendimento de novas alas do partido ao regime democrático. O resultado foi, para além da maior expressão de opiniões antidemocráticas, o fortalecimento gradual de candidaturas e legendas de menor expressão, pouco desgastadas frente ao eleitor, e a diminuição da relevância eleitoral do partido tucano. O protagonismo da oposição brasileira frente ao PT escorreu pelas mãos do PSDB até ser encampada por um candidato, uma liderança abertamente autoritária e nada fiel ao regime democrático – caso, claro, de Jair Bolsonaro e de candidatos que se aproximam do atual presidente na tentativa de aumentarem suas votações nas urnas.
O inédito não é surpresa para o PSDB. Após estrear na eleição presidencial de 1989 com 11,51% dos votos, o partido de apenas seis anos conquistou o principal cargo do país em primeiro turno. Foi sua primeira experiência frente ao inédito – e com louvores. Desta vez, o processo se deu de maneira gradual e amarga para os tucanos. Durante o processo, alguns derrotados: o PSDB, a oposição democrática brasileira e, por fim, o regime político (ainda) vigente.
*Este texto não expressa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
BIZZARRO NETO, F. PMDB: organização e desenvolvimento em São Paulo (1994-2010). 2013. Mestre em Ciência Política – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013. Disponível em: <http://acervus.unicamp.br/index.asp?codigo_sophia=909347>. Acesso em: 12 maio 2022.
CARDOSO, F. H. Um líder que marcava posições. In: FERREIRA, M. M.; SARMENTO, C. (org.). Mário Covas: a ação conforme a pregação; uma revolução ética em São Paulo. São Paulo: Fundação Mário Covas, 2003.
BORGES, A.; VIDIGAL, R. Do lulismo ao antipetismo? Polarização, partidarismo e voto nas eleições presidenciais brasileiras. Opinião Pública, v. 24, p. 53–89, abr. 2018.
FUKS, M.; RIBEIRO, E.; BORBA, J. From Antipetismo to Generalized Antipartisanship: The Impact of Rejection of Political Parties on the 2018. Brazilian Political Science Review, v. 15, 2 dez. 2020. Disponível em: <http://www.scielo.br/j/bpsr/a/gNzK3nfgyJcKTcTmMGsTNdC/abstract/?lang=en>. Acesso em: 19 out. 2022.
IGNAZI, P. The four knights of intra-party democracy: A rescue for party delegitimation. Party Politics, v. 26, n. 1, p. 9–20, 1 jan. 2020.
SAMUELS, D. J.; ZUCCO, C. Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil. [S.l.]: Cambridge University Press, 2018.
SADEK, M. T. “A Interiorização do PMDB nas Eleições de 1986 em São Paulo”, in M. T. Sadek (org.), Eleições 1986: História Eleitoral do BrasilSão Paulo, IDESP/Vértice, 1989.
[1] Doutorando em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. Fulbright Visiting Scholar no Department of Government (Harvard University) e pesquisador do CESOP.
[2] O MDB venceu as eleições de 1982, 1986 e 1990. Já o PSDB saiu vencedor das disputas entre 1994 e 2018.
[3] Juntos, MDB e PSDB conquistam desde 1988, em média, 21,1% das prefeituras no estado de São Paulo. Historicamente, o terceiro partido que mais venceu eleições para prefeito na série é o PFL/DEM: em média, 12,4% de prefeituras vencidas pela sigla.
[4] Vale ressaltar que a candidatura apresentada destoa do histórico de postulantes tucanos ao cargo. Em 2022, Rodrigo Garcia foi o escolhido para disputar pelo PSDB. O então vice-governador era filiado ao PFL/DEM desde 1994 e apenas se filiou ao partido tucano em 2021, em um claro movimento para representar o PSDB na pretendida reeleição. Dessa forma, Rodrigo seria o candidato do PSDB e João Doria, então governador, pleitearia a presidência da República.
[5] Atingido por fraco desempenho nas eleições em 2006, o Partido da Frente Liberal (PFL) mudou seu nome para Democratas (DEM) – https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90636.shtml. Acesso em 10/10/2022.
[6] Quando o partido perde sua capacidade de “correia de transmissão”, aumentam as chances de ser contestado e sofrer uma queda em relação ao seu papel enquanto instituição representativa dos interesses dispostos na sociedade. Nos últimos anos, como aponta Ignazi (2020, p. 9), há um movimento de “delinking” dos partidos políticos frente a sociedade e uma tendência maior ao emparelhamento estatal. Ignazi (2020) aponta importantes modificações ao longo do tempo para análise desses movimentos: (a) a imagem pública do partido, ou seja, como são percebidos e considerados pela opinião pública; (b) a organização interna do partido, como se dá seu funcionamento e participação dos membros; (c) a posição do partido no sistema político, como o partido é capaz de realizar linkage entre sociedade e Estado e como performa no que se refere a representação. O delinking entre sociedade e partidos políticos constrangeu os partidos políticos a constantes modificações em seus modelos de organização e atuação a fim de recuperar seu prestígio social a qualquer custo.
[7] Dado obtido através do sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
[8] A federação partidária com o Cidadania não foi considerada na conta das cadeiras conquistadas.
[9] Na época, o candidato Mário Covas recebeu 15,19% dos votos válidos.
Fonte Imagética: Logo do partido no sítio eletrônico do diretório estadual de São Paulo. Disponível em <https://tucano.org.br/>. Acesso em 21 out 2022.