15 de outubro de 2025
Já está disponível para download o e-book Lutas e Imaginações: abrindo caminho para a justiça na democracia brasileira. A coletânea, elaborada pelo Desjus – Seminários sobre Desigualdades e Justiça Social, oferece uma análise crítica sobre as falhas da nossa democracia e as desigualdades estruturais que persistem no país. A publicação nasceu dos encontros promovidos pelas Oficinas de Formação do DesJus em 2023, cujo propósito foi o de abrigar experiências de cocriação entre teoria política e lutas sociais no Brasil. Composta por cinco capítulos e nove ensaios, a publicação é um convite à reflexão e à ação, dialogando com os movimentos sociais e propondo a reimaginação de caminhos para um Brasil mais inclusivo, antirracista e igualitário. Na coluna de hoje do Boletim Lua Nova, divulgamos a apresentação do volume, elaborada pelos organizadores da coletânea, Raíssa Ventura e Lucas Petroni.
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A presente publicação, intitulada Lutas e imaginações: abrindo caminho para a justiça na democracia brasileira, é o resultado das Oficinas de Formação realizadas pelo grupo de pesquisa DesJus – Seminários de Pesquisa em Desigualdades e Justiça entre os meses de junho e outubro de 2023. O livro reúne os textos dos participantes dessas oficinas, que tiveram como tema a pergunta “Quais lutas e quais imaginações? Abrindo caminho para a justiça na democracia brasileira”. As Oficinas de Formação nasceram da proposta do DesJus de abrigar experiências de cocriação entre teoria política e lutas sociais por justiça no Brasil a partir do encontro de pessoas com saberes, pontos de vista, vocabulários e vozes diversos. Com isso, as oficinas objetivaram avaliar cinco agendas de intervenções políticas antirracistas e radicalmente igualitárias em curso no Brasil contemporâneo. Cada uma dessas agendas foi tematizada em uma Oficina de Formação e agora estão reunidas neste livro, que se divide em cinco capítulos.
O primeiro capítulo, “Lutas de transformação social”, nasceu da oficina Os desafios das lutas de transformação social, realizada no dia 16 de junho de 2023. A oficina foi conduzida pela professora e cientista social Flávia Mateus Rios, com mediação do sociólogo Uvanderson Vitor da Silva. O segundo capítulo, “Reparação histórica e econômica no Brasil”, é derivado da oficina Viabilização da reparação histórica e econômica no Brasil, realizada em 21 de julho, que contou com participação da economista Gabriela Chaves e da professora e pesquisadora Vanilda Santos, com mediação da economista Kenia Cardoso. “Queerlombo como espaço de re-existências (im) possíveis” é o título do terceiro capítulo, que nasceu da oficina Quilombos e queerlombos como espaços de re-existências (im) possíveis, realizada no dia 18 de agosto. A oficina contou com participação da historiadora Mariléa de Almeida e da escritora Tatiana Nascimento, e foi mediada pela antropóloga Amanda Medeiros Oliveira. O debate motivado pela quarta oficina, Privatização do espaço público e o direito à cidade: reconstrução de políticas culturais igualitárias, realizada em 15 de setembro pelo professor Guilherme Varella e pela curadora e consultora Karen Cunha, com mediação de Lucas Petroni, foi reunido no quarto capítulo, “Reconstrução de políticas culturais igualitárias”. Por fim, o quinto capítulo, “Crises ambientais: adaptações e reparações”, reúne os debates da oficina O ônus da justiça climática: mitigação e reparação, realizada pela professora Andréia Coutinho Louback e pela jornalista Mariana Belmont, também com mediação de Lucas Petroni.
Os encontros, ocorridos online e disponíveis no canal do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) no YouTube e no site do DesJus, partiram de dois pressupostos sobre o nosso horizonte político atual e de uma tese mais geral sobre o papel da teoria política na consolidação de instituições e relações políticas democráticas.
Além disso, cabe aqui recuperar o horizonte político no qual o projeto das Oficinas de Formação se inserem. Por um lado, houve a vitória eleitoral de uma frente progressista ampla nas eleições presidenciais realizadas em outubro de 2022. Essa coalizão se mostrou vital para a preservação da institucionalidade democrática no país e para o fortalecimento de grupos políticos e sociais que vinham se articulando em oposição às forças autoritárias politicamente organizadas que se estabeleceram na sociedade brasileira na última década. Por outro lado, apesar de o pleito eleitoral de 2022 poder ser interpretado como um importante passo para a consolidação da democracia brasileira – testada uma vez mais no pós-eleição, especialmente na insurreição golpista de 8 de janeiro de 2023 –, as forças democráticas de resistência continuam se deparando com entraves para colocar em curso um projeto político baseado na reconstrução da democracia brasileira em bases verdadeiramente antirracistas, inclusivas e igualitárias. Se não forem vencidos, esses entraves poderão rumar o país para um cenário que pode ser caracterizado como de falha na realização da democracia.
O primeiro pressuposto é o de que existem vários sentidos diferentes pelos quais as democracias podem falhar. Democracias podem falhar enquanto regimes políticos quando abandonam critérios mínimos de alternância eleitoral, de contestação pública de governos e ao permitir que o aparato estatal possa ser mobilizado para perseguir politicamente as forças de oposição. Contudo, a despeito de sua importância e urgência, essa falha de regime não é o único tipo de fracasso possível da experiência democrática. As instituições políticas fundamentais que caracterizam uma democracia podem falhar em produzir os resultados esperados de um regime democrático. Nesse sentido, instituições e arranjos específicos de uma democracia falham quando, por exemplo, as elites capturam a política eleitoral, ou quando o sistema de justiça é enviesado em favor de grupos poderosos e adquire tendências punitivistas contra grupos minorizados, ou ainda quando as garantias legais fundamentais do estado de direito não são respeitadas.
Finalmente, sociedades democráticas podem falhar ao não atender aos seus próprios ideais, fracassando na tarefa de respeitar princípios e valores morais fundamentais e que inclusive são garantidores de sua legitimidade – o que podemos chamar de falha aspiracional. Isso ocorre quando sociedades democráticas falham em respeitar o princípio de igualdade fundamental, por exemplo, ao permitir que a riqueza seja injustamente distribuída ou que certas formas historicamente enraizadas de injustiças estruturais se reproduzam. Falhas aspiracionais são índices graves do fracasso da democracia, na medida em que alienam minorias injustiçadas, potencializam atitudes autoritárias de grupos extremistas, além de fortalecer coalizões autocráticas internacionais em busca de displays de fraqueza e hipocrisia em regimes democráticos.
Ainda que cada uma dessas falhas seja logicamente independente entre si, é fácil constatar que existe uma relação importante entre as falhas de valores de sociedades democráticas, as falhas institucionais de democracias liberais e o colapso de democracias eleitorais. Essas falhas podem permitir identificar critérios avaliativos complementares para um mesmo regime político.
O segundo pressuposto é o de que, nesse contexto, a compreensão das atitudes e dos métodos de ação dos movimentos sociais – especialmente aqueles dedicados a identificar, criticar e transformar essas falhas em novas formas de vida democrática – pode nos ajudar a responder questões fundamentais sobre a natureza e as possibilidades práticas da justiça social na democracia brasileira. Por movimentos sociais entendemos, aqui, as formas organizadas, porém nem sempre institucionalizadas, de política de contestação por meio das quais grupos e setores sociais podem: (i) reivindicar atenção a direitos e necessidades vitais não satisfeitas ou relegadas ao segundo plano da pauta política nacional; (ii) conferir credibilidade a demandas e projetos políticos tidos como marginalizados ou absurdos pela esfera pública; e (iii) produzir esperança de que transformações sociais de larga escala são humanamente necessárias e politicamente factíveis, a despeito dos obstáculos culturais, sociais e políticos em seu caminho.É nesse sentido que podemos afirmar, seguindo as proposições de Michele Moody-Adams, que lutas e movimentos sociais extra-institucionais exercem a tarefa crucial de “abrir caminho” para a justiça.
Além do papel central para uma agência política eficiente e transformadora, movimentos sociais possuem uma dimensão epistêmica que nem sempre é apreciada pela academia e, em especial, pela teoria política. Nesse sentido, a cooperação entre movimentos sociais e a teoria política pode ser transformadora também para a reflexão teórica sobre a natureza e as fontes da justiça social. A política de contestação dos movimentos sociais nos ajudam não apenas a redesenhar as normas do debate público na arena da luta política, mas também a reconfigurar conceitos, discursos e, sobretudo, ideais que informam as discussões teóricas. Desse modo, compreendemos que cada uma das lutas por justiça social tematizadas nas Oficinas de Formação promovidas pelo DesJus representa uma forma de investigação política e moral aplicada.
A bem da verdade, a teoria política participa, junto com a cidadania e a agência política, da abertura e da criação de espaços para a justiça. Ela atua no sentido de definir, justificar e produzir juízos críticos sobre a natureza e as fontes da justiça; além disso, ela pode ajudar a reconstruir historicamente as disputas políticas e morais, fornecendo instrumentos que possam ser mobilizados pelos atores sociais do tempo presente no endereçamento e enfrentamento dos desafios da arena política. A teoria política pode construir utopias realistas – para ficarmos com um topos rawlsiano – sobre a vida política e, com isso, compor um guia prático para a transformação do mundo tal como nós o conhecemos. É essa a nossa tese mais geral sobre o papel da teoria política na consolidação das instituições e nas relações políticas democráticas.
Sem desconsiderar todos esses papéis possíveis da teorização sobre a política em uma sociedade democrática, o propósito das Oficinas de Formação do DesJus foi o de sustentar uma posição diferente. A teoria política não deve reivindicar uma autoridade especial nas lutas pela justiça social. Ao ser definida por suas tarefas normativas e críticas, ela deve ser capaz de nos colocar, enquanto teóricas, pesquisadoras e estudantes, em uma posição intelectual emancipada. Ou seja, em uma posição intelectual que nos capacite a produzir juízos próprios sobre os problemas normativos que nos cercam. É como parte desse modo de interpretar o lugar da teoria política que a humildade interpretativa e filosófica tem um papel especial.
No modo como o DesJus concebeu as Oficinas de Formação, o que chamamos aqui de humildade se expressa no reconhecimento de que os movimentos sociais progressistas brasileiros produzem conhecimento e fizeram (e continuam a fazer) contribuições indispensáveis para o pensamento social e político. Ao realizar tarefas de reivindicação de interesses, ao conferir credibilidade a projetos transformadores e ao fomentar a produção de esperança política, os movimentos sociais podem criar formas de práxis cognitiva socialmente condicionadas e produtoras de conhecimentos localmente enraizados, mas que carregam potencialidades de alianças que ultrapassam as fronteiras nacionais. Movimentos sociais progressistas são, de modo geral, movidos por convicções que justificam as suas lutas, e pela compreensão de que foram excluídos dos benefícios da cooperação social e do conjunto de direitos substantivos afirmados como parte do ideal de cidadania universal – direitos de igual liberdade, igual proteção da lei, direitos sociais substantivos garantidos.
As Oficinas de Formação do DesJus foram concebidas como um espaço em que essas trocas práticas e epistêmicas entre academia e militância pudessem se encontrar e florescer. Um lugar em que o conhecimento que nasce e se consolida pela abertura de espaços de luta e de ação política são tratados. como conhecimento crítico sobre a natureza e as fontes da injustiça brasileira; sobre a natureza e o conteúdo dos valores de uma sociedade democrática; sobre a determinação de um curso de ação coletiva que poderá conduzir a sociedade brasileira rumo à transformação social e à promoção e preservação da democracia.
Por fim, cumpre ressaltar que as Oficinas de Formação do DesJus foram realizadas com o apoio da Fundação Tide Setubal. O DesJus, núcleo de pesquisa abrigado no Cebrap, ao longo dos seus seis anos de atividades constituiu-se como um espaço de troca, de discussão e de produção intelectual entre diferentes públicos e gerações. Centradas em pesquisas em teoria e filosofia política contemporânea, as oficinas multidisciplinares promovidas pelo DesJus consolidaram a ideia de que precisamos construir e ampliar, em diálogo com atores e movimentos sociais, o vocabulário da ação e da transformação social, para seguirmos refletindo sobre as ideias de justiça e combatendo as desigualdades e as injustiças que conformam o nosso tempo. Com isso, o DesJus atua no sentido de aproximar ou reposicionar a teoria política no campo do debate público e da luta social, estimulando o exercício contínuo da reimaginação de novos caminhos para a promoção da justiça.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!