Esta série especial do Boletim Lua Nova reúne reflexões críticas elaboradas por graduandas, mestrandas e doutorandas selecionadas por meio de edital de monitoria que acompanharam o Colóquio Internacional Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (Séculos XIX-XXI), realizado de 26 a 29 de novembro de 2024, com financiamento do Instituto Beja, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Longe de exercerem funções estritamente logísticas, essas pesquisadoras transformaram o Colóquio em um laboratório de formação acadêmica e política: acompanharam os debates, dialogaram com as/os palestrantes e produziram textos de relato‑reação que combinam descrição empírica e análise conceitual das mesas‑redondas. O texto que a leitora ou o leitor tem em mãos é fruto desse trabalho coletivo.
Sofia Zuca Portugal Pudles[1]
11 de junho de 2025
A Mesa-Redonda 4 do Colóquio Internacional: Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (Séculos XIX–XXI) ocorreu em 29 de novembro de 2024, das 16h30 às 17h45 (horário de Brasília), na sala Alfredo Bosi do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP).
A atividade teve como tema “Memória, justiça e reparação dos povos originários” e contou com a participação, nesta ordem de exposições, de Ana Carolina Alfinito Vieira, advogada com atuação na área indigenista; Erileide Domingues, liderança guarani-kaiowá do Mato Grosso e única representante indígena na mesa; e Edmundo Antônio Dias Netto Júnior, procurador da República em Minas Gerais, especializado em direitos dos povos tradicionais. Após as falas, foi aberto o espaço para perguntas do público.
A discussão teve como eixo central a continuidade das violências históricas contra os povos indígenas, inclusive perpetradas pelo próprio Estado brasileiro. Ana Carolina Alfinito Vieira destacou que o país atravessa um contexto persistente de ataques aos povos originários, observando que tanto o governo atual quanto os anteriores sustentaram políticas extrativistas. Como exemplo, mencionou o caso de Carajás, descrito por ela como um espaço de extrativismo “bioético” — apesar da ausência atual de fauna e flora na região.
Vieira explicou o conceito de extrativismo, apontando que demandas por água potável, proteção ambiental e direitos territoriais são frequentemente classificadas como inviáveis pelos agentes que controlam os processos decisórios. Segundo ela, tais interesses econômicos priorizam a exploração de recursos naturais e a degradação ambiental, em detrimento dos direitos das populações afetadas. Ressaltou ainda que o campo jurídico pode funcionar como um espaço de resgate e preservação da memória, sendo fundamental para a garantia de direitos daqueles que enfrentam os impactos do modelo capitalista de exploração.
A advogada também sublinhou que a atividade mineradora exige grande produção de energia, demandando extensas áreas territoriais. Ao retomar o caso de Carajás, relatou que diversos povos originários foram expulsos de suas comunidades para a construção de infraestruturas de geração energética — processo que, além de violento, não foi acompanhado de qualquer reparação. Muitos indígenas, segundo ela, perderam a vida durante as remoções forçadas.
Ainda no âmbito da discussão sobre geração de energia, Ana Carolina Alfinito Vieira destacou que, nos debates contemporâneos, é comum a defesa da transição energética com base na bioenergia. No entanto, ela chamou a atenção para o fato de que esse tipo de produção energética exige uma quantidade extremamente elevada de minério para manter o funcionamento dos maquinários envolvidos. Assim, segundo sua análise, o Brasil está se preparando para ser ainda mais explorado pela mineração, com a maior parte dos recursos extraídos destinados à exportação — especialmente para países da União Europeia e da Ásia.
A segunda participante a tomar a palavra foi a liderança guarani-kaiowá Erileide Domingues, que iniciou sua intervenção com uma afirmação de grande relevância para a compreensão do contexto histórico brasileiro: o Brasil, afirmou ela, foi invadido — e não descoberto —, uma vez que já existiam sociedades plenamente constituídas no território, cujos integrantes foram assassinados em um processo de genocídio que, segundo sua leitura, persiste até os dias de hoje.
Na sequência, Domingues compartilhou aspectos de sua trajetória pessoal, ressaltando sua condição de liderança jovem e mencionando o papel que exerce ao lado de seu avô, atualmente com 106 anos. Contou que o maior sonho do avô é a demarcação das terras de seu povo — uma reivindicação ainda não atendida pelo Estado brasileiro.
A partir desse relato, Domingues criticou a atuação estatal, afirmando que o governo continua promovendo a morte de indígenas e parece utilizar a demarcação de terras como uma forma de compensação tardia por essas perdas. Nesse contexto, ela proferiu uma frase de forte impacto, que sintetiza a condição histórica vivida pelos povos originários no Brasil: “A gente só tem conquista derramando nosso próprio sangue.”
Em seguida, a liderança relatou episódios recentes de mortes de indígenas durante manifestações por acesso à água potável. Para ela, a luta dos povos originários inclui também a defesa do reflorestamento, uma vez que as altas temperaturas e os desastres climáticos que se intensificam na atualidade são consequência direta do desmatamento. Ainda assim, enfatizou, os responsáveis por esses danos ambientais seguem impunes — quem sofre são os inocentes.
O último expositor antes da abertura para perguntas foi Edmundo Antônio Dias Netto Júnior. Atuando como procurador da República em Minas Gerais (PRMG), o palestrante destacou as violências cometidas pelo Estado contra os povos originários. Mencionou, entre outros exemplos, documentos oficiais que registram a morte de indígenas classificados como “arquivo morto” — expressão que designa documentos relevantes que, embora preservados, não estão sendo utilizados nem acessados.
Dentro dessa perspectiva, Dias Netto Júnior abordou a intensificação da violência contra os povos indígenas durante o regime militar (1964–1985), indicando que, nesse período, ao menos 8.353 indígenas foram mortos. Ressaltou, no entanto, que esse número é possivelmente maior, já que os dados foram sistematicamente apagados ou ocultados no contexto da ditadura, dificultando o pleno conhecimento sobre a extensão das violações cometidas.
Encerradas as exposições principais, foram abertas as perguntas à mesa. A primeira foi dirigida especificamente à Ana Carolina Alfinito Vieira e tratou da atuação contraditória da mineradora Vale, a maior do país. A pergunta destacava a aparente hipocrisia da empresa, que, ao mesmo tempo em que promove a destruição de territórios, ambientes naturais e comunidades tradicionais, financia projetos que se apresentam como comprometidos com uma cultura “bioética”.
Em sua resposta, a advogada afirmou que essa é uma estratégia deliberada da empresa, que busca construir uma imagem pública de proximidade com o povo, ao passo que, na prática, atua em sentido oposto aos interesses populares. Vieira destacou que a Vale procura inserir-se em todos os aspectos da vida cotidiana — seja no consumo cultural, alimentar ou material —, tornando-se onipresente no cotidiano brasileiro. Trata-se, segundo ela, de uma tentativa de normalizar a atuação da empresa e associá-la ao bem-estar social, apesar de os impactos reais de suas atividades resultarem em profunda degradação ambiental e social, motivados exclusivamente pela lógica do capital.
A segunda pergunta que veio dos ouvintes dizia respeito ao papel da universidade na luta pela preservação ambiental e pela defesa dos direitos dos povos indígenas. A questão foi especialmente significativa, considerando que a mesa ocorreu na Universidade de São Paulo — a maior da América Latina — e que o público era majoritariamente composto por estudantes e pesquisadores.
Edmundo Antônio Dias Netto Júnior considerou a pergunta “muito pertinente” e enfatizou que esse é um ponto que merece reflexão profunda. Reforçou que a academia tem um papel essencial nessas lutas. Os palestrantes reiteraram que as universidades devem assumir o compromisso de abordar essas realidades, frequentemente ausentes dos currículos e debates institucionais, e buscar romper com a lógica de uma única visão de mundo. Para isso, é necessário reconhecer e valorizar a existência de múltiplas realidades — especialmente aquelas vividas por populações historicamente marginalizadas.
Com essa reflexão, encerrou-se a Mesa-Redonda 4 do Colóquio Internacional: Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (séculos XIX–XXI), deixando ao público presente provocações importantes sobre o contexto brasileiro, particularmente no que se refere à situação dos povos originários e à questão ambiental. O evento reforçou o chamado à responsabilidade coletiva, convocando cada participante a defender essas causas em seus espaços de atuação e convivência.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
[1] Sofia Zuca Portugal Pudles é bacharelanda de Ciências Sociais na FESPSP e pesquisadora de gênero, feminismos e violência contra povos indígenas. ORCID: 0009-0007-3790-1434. Email: sofia.zucaportugalpudles@gmail.com .